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Lábios que beijei

SILVA, Aguinaldo. Lábios que beijei. São Paulo: Siciliano, 1992.

Carolina Montebelo Barcelos
Ilustração: Léo Tavares

Dividido em 17 capítulos, intitulados a partir de acontecimentos ou personagens, a “escritora”, alcunha do narrador-personagem, discorre sobre uma gama de figuras que moravam ou frequentavam aquela Lapa: travestis, prostitutas, cafetões, policiais – os “cana duras” –, criminosos, malandros, mendigos e drogados.

Inspirado em Jean Genet, um dos expoentes da chamada estética marginal do século XX, o narrador expõe que decidiu, em 1968, abandonar a coluna que escrevia para o Última Hora. Três meses depois de ter pedido demissão, já com pouco dinheiro, foi morar na “bira”, ou birosca, em um quarto exíguo no então Ferro de Engomar, perto dos Arcos da Lapa. Foi a partir de então que conheceu os diversos personagens que atravessam o romance. A esse respeito, sobressaem-se dois: Débora e Alemão.

Débora é uma travesti e cafetina a quem muitos no local deviam respeito e devoção. Também era temida por ser boa de briga. Conhecida como “a bicha que voava”, por sempre evadir-se de batidas policiais em sua casa, na rua Frei Caneca, Débora pula de uma altura considerável da janela após o policial vaticinar: “Pula, veado, que assim vai se esborrachar todinho lá no chão, e a gente não tem mais o trabalho de lavrar o flagrante”, dá cambalhotas no ar e some, para retornar posteriormente. Segundo o narrador, o sonho dela era ser dona de casa para cuidar do marido e dos filhos, mas a sua precária condição era a de “rainha dos falidos”. Em um meio eivado de violência e adversidades, o voo performático de Débora confere graça e ironia em alguns momentos do romance. A sua imagem metamórfica também varia, ao longo das páginas, da imponente figura, mesmo que em seu robe estampado descosturado, àquela que sucumbe a drogas injetadas nas veias para suportar a dureza em que vive.

A relação do narrador com Débora é de muito respeito e amizade. É ela quem primeiro lhe fala do Alemão, “o cara que anda aprontando lá na Lapa”, e o aconselha a evitá-lo. No entanto, o narrador logo conhece o Alemão e tem com ele um relacionamento sexual e amoroso bastante conturbado, a ponto de, na época, acreditar que os anos que viveu com ele tenham sido “um verdadeiro inferno”. Boa parte do romance é atravessada por esse relacionamento homoafetivo. A despeito de todos os percalços que viveu com o Alemão, incluindo sumiços, passagens pela prisão e envolvimentos com crimes e drogas, o narrador pondera que, sem ele, sua vida não teria tanto significado no sentido da experiência que viveu. Ainda que Débora o tenha alertado sobre o problema que seria o Alemão em sua vida, é ela quem o consola quando ele decide abandoná-lo, “embora continuasse apaixonado por ele”. Não obstante o mundo da transgressão em que o Alemão sempre se encontra, não há, por parte do narrador, qualquer juízo de valor. Antes, trata-se de personagens cujos projetos de vida não se interseccionam.

Há diversos outros personagens no romance que orbitam ao redor do narrador, do Alemão e de Débora. Entre eles, Vera Regina, assistente de Débora, que depois se torna também cafetina na zona de prostituição do Mangue; Daniela, travesti cabelereira, que mantém amizade com o narrador desde os tempos de infância no Recife e o ampara financeira e emocionalmente quando ele precisa de dinheiro ou se encontra às voltas com a relação conturbada com o Alemão; o soldado Bentes, que trabalha em uma das prisões para onde o Alemão é levado, mas que mantém com o narrador certa relação; Twist, uma prostituta que tenta suicídio algumas vezes, e em uma delas é salva pelo narrador e pelo Alemão.

Há também personagens de nomes reais com quem o narrador de alguma forma tem contato ou se relaciona. É o caso, por exemplo, do então líder estudantil Jean Marc van der Weid e do líder comunista Diógenes Arruda Câmara, ambos presos políticos no presídio Ilha das Flores, para onde o narrador é levado e permanece por setenta dias. Com o primeiro, o narrador tem um brevíssimo contato, pois no contexto ambos eram os únicos incomunicáveis e isolados. Posteriormente, quando sai da incomunicabilidade, o narrador passa a dividir cela com Câmara.

Outra personagem abordada no romance, amiga do narrador, a quem ele inicialmente se refere como “estrela-travesti”, é Rogéria. Foi, aliás, no cabaré Casanova, após seu show no Teatro Rival, que Rogéria, em meio às apresentações de suas colegas, entre elas Daniela, foi, de certa forma, a ligação entre o narrador e aquele com quem ele teria uma brevíssima relação. Trata-se de Mariel Mariscot, policial pertencente à Scuderie Lecoq – organização paramilitar que atuava como grupo de extermínio –, então em um relacionamento oficial com a atriz Darlene Glória, mas que mantinha um caso com Rogéria.

Todos esses personagens, boa parte deles representativos de estereótipos de um imaginário sobre a Lapa, compõem a cartografia de Aguinaldo Silva do bairro e suas adjacências. Desse modo, ao longo do romance, percorrem-se as ruas Frei Caneca, Carioca, Visconde de Maranguape e Riachuelo, o restaurante Capela, as leiterias Bol e Brasil, “uma espécie de território livre onde todos – de policiais a bandidos, passando pelas putas, estudantes, jornalistas e travestis – se reuniam para o último chope antes do amanhecer”, o bar Indígena, a praça da Cruz Vermelha, o Cine Íris, a praça Tiradentes, a Cinelândia e o bar e restaurante Amarelinho, o Passeio Público, a praça Paris, o Aterro do Flamengo e o Museu de Arte Moderna, e o hospital Souza Aguiar – conhecido como Seu Aguiar, pois evitava-se nomeá-lo por considerarem mau agouro.

Ao passo que os personagens moram ou trabalham na Lapa, ou ali frequentam, testemunha-se sua desfiguração em função do plano de urbanização em pleno funcionamento, algo de que o narrador e alguns personagens se ressentem. Desse modo, alguns estabelecimentos comerciais fecham, casas e sobrados são demolidos, ruas e quarteirões são destruídos para se tornarem avenidas. Em meio a essa transformação, alguns personagens adoecem ou morrem, metáfora de ruína, pois a imagem que subjaz é a de que o plano de urbanização é um projeto de destruição. Assim, quando o narrador, no ano de 1990, data em que o romance é escrito, retorna à Lapa para tentar fazer emergir em sua memória o vivido nos anos em que lá morou, conclui que: “Não havia mais nada, na Lapa de agora, que me permitisse reconstruir a de então”. Há nessa passagem, assim como em outras, uma certa nostalgia da Lapa de outrora, desde críticas à estética de novas ruas e estabelecimentos, como o Circo Voador, a percepções de que com o projeto de urbanização “a própria Lapa morria”.

Em alguns momentos do livro, mormente perto do final, o narrador faz algumas reflexões acerca da escrita do romance e do porquê de escrevê-lo. Assim, explicita que seu desejo é o de traçar um retrato da época, afastando-se das narrativas de cunho político dos anos de 1969-1970, para dedicar-se a personagens comuns, “seres que também amavam, sofriam, que nem ao menos sabiam que os militares mandavam no país”. Desse modo, diferentemente do que pensava antes de se mudar para a Lapa, de que em vez de ser seu cronista, seria um insignificante morador, Aguinaldo Silva logra traçar uma cartografia afetiva do bairro e suas adjacências, assim como põe em relevo os invisíveis da sociedade carioca, os que estão à margem dos padrões socialmente aceitos. Em vista disso, embora Lábios que beijei tenha um caráter de autoficção, a maioria dos personagens não têm, como em muitas narrativas (auto)biográficas, a notoriedade de políticos, artistas ou sujeitos históricos, mas são aqueles que fazem parte da memória do autor e representam figuras que povoam o imaginário urbano da Lapa de outrora.

Para saber mais

GARCIA, Wilton (2020). Diversidade contemporânea em Lábios que beijei. Temática, v. 16. n. 5, p. 93-107. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/tematica/article/view/52205. Acesso em: 18 jul. 2024.

HOLANDA, Helder de Araújo (2012). A representatividade do espaço na expressão de subjetividades homoeróticas em três narrativas de Aguinaldo Silva. Dissertação (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande. Disponível em: http://tede.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/tede/2591. Acesso em: 18 jul. 2024.

LUSTOSA, Isabel (2001). Lapa do desterro e do desvario: uma antologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.

SILVA, Alessa Patrícia Dias da (2014). O imaginário da Lapa: apogeu, decadência e reconstrução. Dissertação (Mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24765/24765.PDF. Acesso em: 18 jul. 2024.

Iconografia

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Como citar:

BARCELOS, Carolina Montebelo.
Lábios que beijei.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 jan. 2025.

Disponível em:

3651.

Acessado em:

19 maio. 2025.