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Dor fantasma

GALLO, Rafael. Dor fantasma. São Paulo: Biblioteca Azul, 2023.

Mariana Marise Fernandes Leite
Ilustração: Léo Tavares

Dor fantasma é o segundo romance do escritor Rafael Gallo (São Paulo, SP, 1981). O autor, que hoje vive em Portugal, é também produtor musical, compositor, músico e professor. Com essa obra, que conecta diretamente literatura e música, ganhou o prêmio José Saramago em 2022. Antes disso, mesmo com sua breve trajetória literária, já havia sido reconhecido com seu primeiro romance, Rebentar, recebendo o prêmio São Paulo de Literatura em 2016, e com seu livro de contos Réveillon e outros dias, com o prêmio Sesc de Literatura em 2012.

Ainda que seus dois romances tenham tido notável reconhecimento, há entre eles uma diferença-chave. É o que aponta o autor em entrevista concedida a Iara Biderman para a revista Quatro cinco um em 2023: seu primeiro romance trata da mãe, enquanto o segundo trata do pai e do patriarcado.

Rebentar, complementa-se, é a história de uma mãe que lida com a dor do desaparecimento de seu filho há cinco anos. Dor fantasma, por sua vez, é a história de um pianista e professor de piano que orienta todos os aspectos de sua vida a partir do que acredita ser a única maneira correta de viver, a tradição, um espelho do que acredita ser a perfeição. Em seu papel de pai, o protagonista desse romance encontra dor na existência de seu filho, que para ele é a concretização de algo que nunca alcançaria a almejada perfeição. Para o leitor, em concordância com Inês Pedrosa, a relação entre pai e filho é a concretização do analfabetismo afetivo dos homens, resultado da estrutura patriarcal que sustenta ainda hoje as relações familiares.

O protagonista de Dor fantasma é Rômulo Castelo, um pianista que persegue a execução perfeita de Rondeau Fantastique, de Franz Liszt. Esta, que é sua obsessão principal, parte de um desejo despertado desde a infância por seu pai, o maestro George Castelo, que lhe havia contado não haver nenhum intérprete vivo que fosse capaz de tocar à perfeição a peça de Liszt.

A história de Rômulo Castelo é contada em quatro partes: “Coda”, “Exposição”, “Desenvolvimento” e “Cadenza. Como detalha Luiz Paulo Faccioli em seu texto sobre o livro, as três primeiras partes do romance são nomes das partes da forma-sonata – provável influência da formação de Gallo na música –, uma estrutura de composição da música clássica, e a última, “Cadenza”, é outro termo tomado da música, que indica “o momento de um concerto reservado ao solista para que ele exercite sua virtuosidade”.

Nessas quatro partes, observa-se primeiro um Castelo, renomado professor e intérprete de piano, prestes a se lançar em uma turnê internacional com um concerto do qual faz parte sua almejada execução da composição de Liszt. Esse mesmo homem tem um emprego estável em uma universidade, vive com a esposa e o filho em um espaço urbano e é responsável pelos cuidados do pai em uma casa de repouso.

Obcecado pela perfeição e incentivado desde a infância ao rigor e à tradição para alcançar seus objetivos musicais, o pianista instaura a severidade em todos os campos de sua vida: seus alunos devem executar peças à perfeição; seus colegas de trabalho, assim como ele, devem almejar as execuções perfeitas, como da primeira vez em que foram eternizadas; seu papel com sua família enquanto homem deve ser o de um marido e um pai que dá o suporte material para que a mulher exerça seu papel de esposa e cuide do filho, que, por sua vez, deveria vir à sua imagem e semelhança e seguir um futuro promissor. Em consequência disso, alunos, colegas de trabalho e familiares, com suas falhas, seu sentimentalismo e suas fraquezas, não têm relevância para Castelo. Já seu filho, nascido com uma deficiência, é, para ele, um eterno desvio de rota, condenado a jamais alcançar a grandeza do pai.

O caminho em direção à execução perfeita de Rondeau Fantastique por Rômulo Castelo é, no entanto, interrompido por um grave acidente: na saída da universidade, o pianista é atropelado por uma motocicleta. Em resultado, o homem sofre vários ferimentos leves e um que será o ponto de partida para seu declínio: a danificação da mão direita e a sua inevitável amputação.

Esse acontecimento, que é também o ponto de partida para que se conheça o protagonista do romance para além de sua obsessão pela música, leva o leitor de Dor fantasma à segunda e à terceira partes, “Exposição” e “Desenvolvimento”. O pianista, agora amputado, sente a “dor fantasma”, a dor que o amputado em estresse pós-traumático sente no membro ausente. Essa dor aos poucos revela ao leitor um irredimível protagonista, que, demovida sua habilidade musical, é um irremediável adulto intransigente, que projeta uma imagem de si com tamanha retidão que jamais poderia ser alcançada por qualquer outro ser humano que cruze seu caminho.

Narrando minuciosamente seu protagonista e sua egocentrada visão de si e do mundo, o narrador de Dor fantasma apresenta ao leitor, ao longo da “Exposição” e do “Desenvolvimento”, as inúmeras possibilidades de redenção desse homem, as quais, em um texto de cunho romantizado, facilmente seriam desfechos emocionantes para um pianista intransigente. A todas essas inúmeras possibilidades, no entanto, responde um protagonista inflexível, que jamais se desloca da projeção de sua autoimagem. Essa movimentação instaura diante do leitor um ser humano com ares de repulsão.

Castelo é um personagem a tal ponto esmiuçado por seu narrador e identificável para o seu leitor que muito recorda o paradoxo do personagem da ficção apresentado por Antonio Candido: “De fato, como pode a ficção ser? Como pode existir o que não existe?”. Isso porque, ainda que ares de repulsão possivelmente se instaurem no leitor de Gallo diante desse personagem ficcional, esse mesmo ser fictício é facilmente identificável em inúmeros homens que habitam a realidade: Rômulo é o marido e pai ausente que sustenta sua família financeiramente; é o professor tradicionalista que pressiona seus alunos pela perfeição; é o intérprete que persegue a execução musical perfeita; é o indivíduo incapaz de lidar com a deficiência, com a fraqueza, com o sentimentalismo alheio e com o drama familiar; é, enfim, o que há de repulsivo no humano. Dor fantasma, portanto, é um interessante exemplo do que Candido aponta ser a concretização de “certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste [do romance]”.

Assim, a “dor fantasma”, título do romance, apresenta-se não só como a dor de seu protagonista diante do membro ausente, mas também, em certo nível, como a dor do leitor diante dos fantasmas sociais, das ausências, que se manifestam por meio do protagonista das mais diversas formas e alcançam o leitor por meio da narrativa que se apresenta.

Quanto ao ritmo narrativo do romance, sua divisão parece levar o leitor a um concerto, assim como aquele que o protagonista almeja: apresenta-se o protagonista; diante dele, coloca-se uma reviravolta que leva ao clímax da narrativa e, pouco a pouco, a cada rompante do protagonista, a cada expectativa de redenção rompida, anuncia-se um encerramento, que se coloca diante do leitor em “Cadenza, anunciando o solo final daquele cuja história se conta.

Para saber mais

CANDIDO, Antonio (2007). O personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A personagem de ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva. p. 51-80.

FACCIOLI, Luiz Paulo (2023). Um romance em forma-sonata. Rascunho: o jornal da literatura no Brasil, Porto Alegre, n. 278, jun. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/um-romance-em-forma-sonata. Acesso em: 4 ago. 2024.

GALLO, Rafael (2023). Rafael Gallo: escritor paulista lança romance vencedor do prêmio Saramago sobre a derrocada de um artista e a masculinidade catastrófica. [Entrevista concedida a] Iara Biderman. Quatro cinco um, São Paulo, n. 67, jun. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/entrevistas/fichamento/rafael-gallo. Acesso em: 4 ago. 2024.

RAFAEL GALLO. [Site institucional]. Disponível em: https://www.rafaelgallo.com.br. Acesso em: 4 ago. 2024.

VENCEDOR do Prêmio José Saramago, Rafael Gallo fala do romance Dor fantasma (2023). TV Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/tv/programas/leituras/2023/05/vencedor-do-premio-jose-saramago-rafael-gallo-fala-do-romance-dor-fantasma. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Como citar:

LEITE, Mariana Marise Fernandes.
Dor fantasma.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

24 jan. 2025.

Disponível em:

3649.

Acessado em:

19 maio. 2025.