PRADO, Adélia. Cacos para um vitral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Marina Maximiano Ferreira de Souza
Ilustração: Marlova Aseff
Adélia Prado (Divinópolis, Minas Gerais, 1936), poeta, romancista, contista, professora e filósofa, dedicou-se ao magistério por cerca de vinte anos, até que a escrita se tornou sua principal atividade. Embora escrevesse desde os 14 anos, foi somente aos 41 anos que fez sua estreia oficial na literatura, com a publicação do livro de poesias Bagagem (1976). Dois anos depois, lançou O coração disparado (1978), obra que lhe rendeu o prêmio Jabuti. Em 1979, estreou na prosa com Solte os cachorros, seguido do romance Cacos para um vitral, lançado em 1980. Em 2024, Prado foi agraciada com os prêmios Machado de Assis e Camões, destacando sua importância e relevância no cenário literário.
Seus textos exploram temas do cotidiano e a condição da mulher, com foco recorrente em sexo, religião e morte – temas que, segundo a própria autora, constituem o tripé central de sua obra. Esse eixo se faz presente em versos do poema “O modo poético”, datado de 1991, nos quais escreve: “é em sexo, morte e Deus,/que eu penso invariavelmente, todo dia./É na presença d’Ele que me dispo,/e muito mais, d’Ele que não é pudico/e não se ofende com as posições no amor”. Para Prado, o corpo e o sexo são simultaneamente eróticos e sagrados, “tudo isso numa aceitação natural” (Souza, 2012).
Cacos para um vitral é uma narrativa em terceira pessoa que conta a vida da personagem Maria da Glória Fraga, “quarenta anos nas costelas”, professora do interior, casada com Gabriel, com “tantos filhos, tanto medo e tanta coisa miúda para resolver”. A partir de fragmentos da história de vida de Glória, constrói-se a personagem – mãe, profissional, esposa e dona de casa –, sendo sua vida composta de pequenos momentos do dia a dia que, juntos, formam um mosaico literário, uma obra completa e significativa que revela a beleza e a magia que se escondem na vivência diária, frequentemente subestimada. Ao dar voz e valor a essas pequenas vivências, a autora convida o leitor a enxergar a grandiosidade presente nas atividades mais simples e rotineiras, como na passagem em que Glória descreve “como é bom pegar o ônibus das cinco da tarde em Belo Horizonte”: “O céu pegando tons de crepúsculo […]. Café, massas, condimentos, chocolates […]. Uma compaixão transbordante por tudo que existe”.
Logo no início da obra, o leitor é confrontado com o medo da morte “através do envelhecimento e a perda da beleza física” (Souza, 2012), por meio da morte de Dona Zilá, vizinha de Glória. Segundo Bessa (2008), ao contrário de Solte os cachorros, em que a protagonista vive uma crise com a chegada da velhice, em Cacos para um vitral, o tom é marcado por uma melancolia mais profunda, “meio alegre e com vontade de chorar”, meio desesperadora: “há três dias Glória dormia sem travesseiro e tomava gelatina no leite”, estaria “envelhecendo de modo desencadeado?”. No entanto, a religiosidade da protagonista oferece um refúgio diante das adversidades da vida, explorando-se essa dualidade de maneira profunda. Glória busca na fé a força para lidar com suas angústias e seus questionamentos: “A poesia é de Deus, D. Zi tinha morrido, D. Cessa sofria, e a vida era maravilhosa!”.
A religiosidade está presente de forma marcante nas reflexões da protagonista sobre o erotismo. Para ela, o ato sexual é visto como uma expressão divina – “Para quem tem fé […] Deus se mete nestes assuntos todos” –, abordando-se as “suas possíveis inquietações diante do dilema entre prazer e culpa”, conforme coloca Ricardo Silva Gomes, no artigo “Adélia Prado: interdito, transgressão e erotismo” (2016). Para ele, a narrativa explora tanto os desejos imediatos quanto os anseios mais profundos, que impactam não só o corpo, proporcionando satisfação física, mas também a alma, trazendo questões mais complexas, como culpa, prazer e significado. A obra problematiza essa dualidade – religião e sexo – de maneira natural e inquietante, e “fica evidente que a mulher […] procura entender o próprio corpo como uma condição de felicidade permitida por Deus” (Souza, 2012).
Os espaços domésticos, como quintais, cozinhas e igrejas, “compõem cenários para as cenas cotidianas que ficam gravadas na memória” (Bessa, 2008) e se tornam o palco de profundas reflexões sobre aspectos fundamentais da existência humana. Esses ambientes cotidianos, localizados no Brasil, mais precisamente no interior do estado de Minas Gerais, são transformados em pontos de meditação sobre a vida, a morte e o amor. Assim, Prado revela a beleza que reside nas experiências diárias e nas rotinas aparentemente comuns, mostrando que até mesmo o mais simples dos contextos pode ser carregado de significado. Um exemplo disso é o processo de preparo do xarope de D. Cessa, descrito com um olhar poético: “[…] o agrião de D. Cessa, que ia colocar com açúcar numa vasilha funda e levar ao forno. O calor ia derretendo o açúcar e a mistura ‘vai virando um xarope muito ótimo para doença do peito’”. Para Glória, a cena evocava a mesma emoção suscitada pelo “matinho detrás da janela de tia Palmira, samambaia misturada com buquês de noiva, moita de azedinha e funcho”. Era a descoberta do “tesouro: […] nos canteiros, no matinho, no xarope”, que D. Cessa “queria a qualquer custo sem poder explicar a mais funda razão do seu querer”. A poesia, como reflete Glória, era divina, “e a vida era maravilhosa!”.
Segundo Bessa (2008), a metáfora do vitral é fundamental para entender a construção do romance de Adélia Prado. No livro, a narrativa é composta por fragmentos da vida da personagem Maria da Glória Fraga – “retalho de poesia dá uma excelente prosa”, “mas é preciso paciência com os retalhos, com os cacos” –, que, ao longo do tempo, se unem para formar uma unidade coesa. Cada fragmento, como um caco de vidro, contribui para a formação de um todo maior, refletindo a complexidade da vida humana. Essas passagens, reveladas em momentos em que a protagonista escreve em seu caderno, apresentam um sentimento de frustração com as relações humanas e a própria espiritualidade. Diz Glória, subvertendo o Salmo 23: “O Senhor é meu Pastor e tudo me falta, tenho onde cair morto, certamente terei quem com um olho me chore e outro me ria. Bom é ser como a pedra que é vazia de si”.
A voz feminina na obra retorna para dentro de si mesma, fazendo uma autorreflexão: “mulher faz tudo”. Nesse cenário, destaca-se o papel da mulher como quem estrutura e organiza a vida familiar e social. De acordo com Bessa (2008), a escritora valoriza as experiências e características que são tradicionalmente associadas ao papel feminino, como pode ser visto no poema “Casamento”, de 1991, que retrata uma cena amorosa de cumplicidade conjugal: “Há mulheres que dizem:/Meu marido, se quiser pescar, pesque,/mas que limpe os peixes./Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,/ajuda a escamar, abrir, retalhar e salgar”. Contudo, na obra em questão, é possível notar que a autora explora as complexidades desse papel e a luta das mulheres contra as implicações impostas pela própria condição de ser mulher. Em uma passagem, Glória reflete sobre a injustiça da divisão de tarefas – “Odiava nos serviços domésticos a excomunhão automática dos machos, o privilégio.” –, enquanto ela e as filhas Maria e Rita “sofriam o peso da cozinha e da casa”.
Cacos para um vitral é fundamental para compreender a contribuição de Prado, autora reconhecida principalmente por sua poesia, à prosa brasileira. A obra transcende a simples narrativa do cotidiano, e, por meio da personagem Maria da Glória Fraga, a autora oferece um olhar sensível e crítico sobre a vida feminina, integrando elementos de religiosidade e erotismo em uma narrativa que ressoa com a complexidade da existência humana.
Para saber mais
BESSA, Raimunda Alvim Lopes Antônio (2008). A arte de um vitral: fragmentos do cotidiano em Adélia Prado. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais. Disponível em: https://bib.pucminas.br/teses/Letras_BessaRA_1.pdf. Acesso em: 3 maio 2024.
GOMES, Ricardo Silva (2016). Adélia Prado: interdito, transgressão e erotismo. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v. 9, n. 25, p. 137-154, fev./maio. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/23190. Acesso em: 29 set. 2024.
PRADO, Adélia (1991). Poesia reunida. São Paulo: Siciliano.
SOUZA, Jossineide Maria de (2012). Mística e cotidiano em Cacos para um vitral de Adélia Prado. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Sergipe, Sergipe. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/5834/1/JOSSINEIDE_MARIA_SOUZA.pdf. Acesso em: 3 maio 2024.
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