Ir para o conteúdo

Aqui, no coração do inferno

VERUNSCHK, Micheliny. Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá, 2016.

Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Léo Tavares

Micheliny Verunschk (Recife, PE, 1972) é escritora e historiadora. Possui mestrado em Literatura e Crítica Literária e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Em 2004, foi finalista do prêmio Portugal Telecom – atual Prêmio Oceanos – com o livro Geografia íntima do deserto (2003). Em 2015, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (2014), obra que também foi finalista do Prêmio Rio de Janeiro de Literatura. Entre outros trabalhos, é autora dos romances O som do rugido da onça (2021), vencedor do Prêmio Jabuti de 2022 na categoria “Romance Literário”; Caminhando com os mortos (2023); e do livro de contos Desmoronamentos (2022).

Aqui, no coração do inferno (2016) é a primeira narrativa de uma trilogia que explora as estruturas históricas e sociais responsáveis pelo exercício e manutenção de diferentes formas de violência. Os outros dois romances da Trilogia infernal são O peso do coração do homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018). Em Aqui, no coração do inferno, a narradora-personagem, Laura, se propõe a contar uma história que começou com a prisão de um garoto pelo pai dela, um delegado. A narrativa se desenrola a partir da detenção desse adolescente de 14 ou 15 anos, acusado de assassinato. Para Laura, porém, o menino carregava algo que a fazia sentir-se próxima a ele, uma conexão que logo percebeu. O garoto, retraído e cabisbaixo, aguardava na cozinha da casa do delegado enquanto as chuvas passavam para, em seguida, ser encaminhado à Febem. Laura descobriu que ele havia sido levado para casa porque as pessoas queriam linchá-lo, e a delegacia local – “uma casinha mal-arranjada” – não oferecia segurança. Ela desconfiava se a acusação – canibalismo – que recaía sobre o garoto realmente tinha sustentação. No mínimo, queria compreender as razões e os detalhes por trás do suposto crime, incluindo quem eram as vítimas. No entanto, seu pai, evasivo, não fornecia informações e apenas recomendava às filhas que não se preocupassem.

O ritmo da narrativa se assemelha a uma carta, aspecto que a própria narradora-personagem faz questão de destacar. A narrativa funciona como uma espécie de quebra-cabeça e caça-palavras, nos quais as peças vão mais ou menos se organizando a partir daquilo que é recortado da realidade espaço-temporal da narradora: uma palavra solta, aqui, um olhar remediado, ali, um silêncio incompleto acolá. A narradora-personagem constrói sua percepção a partir desses elementos, que revelam a ruína familiar e também coletiva. Ela projeta sua leitura daquela realidade, captando os detalhes que, em outros momentos, poderiam escapar. “É preciso ficar de olho vivo, porque, num jogo desses, os detalhes podem confundir, quem não merece acaba indo pra debaixo da terra, e bandidos e heróis podem trocar de papel de um jeito que, às vezes, a gente pode não saber mais quem é quem”.

Uma das ações de que ela se vale para juntar essas peças soltas é abrir clandestinamente as gavetas do pai para revirar e ler os relatórios e inquéritos. Aos poucos, Laura foi se acostumando ao vocabulário policial. Ela conta das vezes em que precisou, por exemplo, anotar as palavras que lia nos documentos guardados e não conhecia, para pesquisar no dia seguinte. “E precisei aprender a colar um pedaço de história no outro”. A narradora-personagem imagina as histórias por trás dessa papelada, dos registros incompletos, dos papéis um pouco desorganizados, da ausência de um ponto-final.

Ela vai, então, colando os recortes de história que, afinal, constituem a sua própria experiência. E vai construindo os desfechos e suas próprias conclusões a partir dos elementos e fragmentos que testemunha, observa e procura compreender. Ela se coloca diante desse conjunto de imagens fragmentadas, que se encontram por meio da interseção entre a mudança com o pai e a irmã para essa cidadezinha do interior onde o pai atuava como delegado, a rotina na escola e em casa, e a história desconhecida do garoto preso ali na cozinha de casa. Laura desejava mesmo, nos últimos tempos, ler algo sobre o caso do rapaz, mas só conseguia, naqueles dias, juntar os pedaços do que ouvia ao seu redor. “Mas o que juntei, mentira ou verdade, exagero até, já dava uma boa história”.

Na prateleira da casa, poucos livros: apenas alguns manuais sobre inquérito policial e uma Apostila de Formação Antiguerrilha. A filha, por sua vez, sentia que precisava de muito mais do que aquela prateleira oferecia. Uma das saídas para Laura era recorrer aos livros da biblioteca da escola. O pai dela também guardava documentos de identidade de várias pessoas em um envelope em casa. “Eram todos ou quase todos jovens em suas fotografias, algumas meio desbotadas”. E a narradora-personagem se perguntava: “Que histórias esconderiam aqueles rostos?”. No meio desses documentos, estava o da mãe biológica de Laura, morta em um suposto afogamento, conforme o pai contava às filhas. Porém, a narradora-personagem desconfiava que o inferno não estava só lá fora, no vizinho, mas também debaixo do próprio teto. Ela sabia que o pai, delegado que assumiu a função em uma cidadezinha do interior, carregava muito do passado consigo. Ele tinha uma perspectiva própria de moral, justiça e dever. O papel do delegado no romance, somado às informações incompletas sobre seu passado, são aspectos que ajudam a refletir sobre a forma como cada indivíduo e grupo social se relaciona com o mundo e com as outras pessoas; como cada um vê a si mesmo e ao outro; e como a construção ética de cada sujeito é orientada pela percepção individual e coletiva que ele tem da realidade. E tudo isso molda e interfere nas concepções de justiça e moral, que podem ser mais democráticas, humanistas e inclusivas ou, por outro lado, mais arbitrárias, reacionárias e excludentes, e que cada sujeito acaba por incorporar.

O pai de Laura tinha uma “síndrome de herói” e queria aplicar seu próprio critério de justiça e ordem. A narradora-personagem também relata a relação com o pai e a madrasta. Esta se casou com ele após a morte da mãe biológica das meninas. A madrasta “se veste como a mulher de um delegado deve se vestir”, como dizia o pai das garotas. Diferentemente da mãe biológica das meninas, que, contrariando o então marido, foi para a faculdade depois que as filhas cresceram, a madrasta não estudava. Ela tentava criar várias explicações para as ações do pai das garotas, como prender um menino de 14 anos e enviá-lo para a Febem. “Minha madrasta tem muitas explicações, um arsenal delas, e sempre acha que sabemos como papai é. Não sabemos. Mas vamos descobrindo”. A narradora-personagem preferia o silêncio e a postura de não confronto em relação às atitudes e decisões do pai. Já a irmã mais velha era mais inconformada: questionava, gritava e demonstrava abertamente seu descontentamento.

O pai, por sua vez, portava consigo um orgulho e satisfação distintos ao trazer preso esse garoto para casa. Ele dizia à filha que assassinos que matam alguém com raiva ou paixão deixam rastros, vestígios, marcas. O delegado, ao contrário, “é da turma dos discretos”, mas é uma discrição que, aos poucos, vai deixando seus vestígios, recortes, relatos e testemunhos incompletos, incertos. Em casa, as gavetas e a maleta com chaves. A irmã mais velha da narradora-personagem pergunta ao pai, em tom acusativo, o que ele fazia em 1964 e 1968. “Papai diz que só cumpria ordens e que nem gostava do governo tanto assim, mas que, quando pegaram um dos líderes subversivos, ele teve que bater no cara num corredor polonês”. Ele dizia combater a ameaça subversiva.

Laura cresceu cercada por esse mundo no qual os critérios de justiça eram suscetíveis aos diferentes interesses; num mundo onde, para o pai dela, o linchamento era excessivo, mas o corredor polonês era razoável; num mundo em que, para o marido da tia, a propriedade privada era um bem maior a ser protegido, mas convivendo numa certa normalidade com as desigualdades que tornavam alguns muito ricos e outros sem nada para comer. São contradições e inconsistências dos personagens – e do país – que aparecem ao longo da narrativa. Num trecho, a narradora-personagem lembrou que uma vez foi fazer uma atividade escolar na casa de uma amiga e lá viu um homem, o tio da garota, com os dedos sem unhas, como “salsichas pálidas”. Ela então, quase que repentinamente, lhe perguntou o que tinha acontecido, ao que ele retrucou: “Você sabe muito bem o que aconteceu”. Laura projeta, então, a história desse garoto preso por meio dos fragmentos que ela resgata da história da sua própria família.

A narrativa se constitui, assim, dos fragmentos, da imaginação, do que se pensou sobre esse garoto, sobre o passado do pai da narradora-personagem. Ela demonstra como a construção narrativa do menino, sua trajetória até ali, depende dela, do que ela vai interpretar da realidade dos personagens e quais respostas ela dá para as evidências meio borradas e incompletas diante de si, das peças que ela vai juntando e de tantas outras ausentes. E, assim, ela formula uma história de sua família e da coletividade, do Brasil, das nossas estruturas de violência. “Minha cabeça nunca está vazia, por isso ela não pode nunca ser chamada de oficina do diabo. Ela trabalha o tempo inteiro”. Ela conta que aprendeu a ler o Brasil com os professores de português e de história. O Brasil, na perspectiva que aprendeu, era “o país do futuro”. O romance fala desse “país do futuro” que leva consigo marcas profundas do passado e remediações, equívocos e distorções do presente, além de um futuro que se revela como projeto inacabado, que se constrói em cima das limitações e dos interesses antagônicos do presente, marcadamente enraizado pelas violências e descontinuidades do passado.

Para saber mais

FONSECA, Laura Marins Ramos Rodrigues (2023). Ditadura e literatura no Brasil: a “Trilogia infernal” e o potencial reparador da manutenção da memória. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Letras Português) – Universidade de Brasília, Brasília.

CRUZ, Lua Gill da (2022). Compondo temporalidades: o colonial e a ditadura nas narrativas brasileiras do século XXI. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 65, p. 1-14. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/44381. Acesso em: 15 jul. 2024.

Iconografia

Tags:

Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
Aqui, no coração do inferno.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 jan. 2025.

Disponível em:

3645.

Acessado em:

19 maio. 2025.