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Vila rica das queimadas

JACOB, Paulo. Vila rica das queimadas. Rio de Janeiro: Emebê, 1976.

Jamescley Almeida de Souza
Ilustração: Léo Tavares

Nascido em Belém, mas registrado em Manaus, e possuindo ascendência sefardita, Paulo Jacob (Manaus, AM, 1921 – Manaus, AM, 2003) teve sua vida marcada por estas duas áreas: o Direito e a Ficção. Em relação à primeira, foi juiz de direito, desembargador, presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas e professor universitário. Quanto à segunda, foi autor de uma das mais profícuas produções ficcionais da literatura de expressão amazonense, com 13 romances publicados ao longo de quase quatro décadas (1964-1999).

Membro da Academia Amazonense de Letras, Paulo Jacob atuou como cicerone da Amazônia, um divulgador da cultura, mostrando aquilo que sociólogos e antropólogos fazem por meio de suas ciências. Desse modo, ele destacou em sua produção a cor, a vida e a cultura do lugar; as paisagens que caracterizam a região, assim como uma galeria de saberes, técnicas e costumes tradicionais infundidos em sua gente e difundidos por ela, trocas e relações que o romancista exibe em seus livros, como é o caso de Vila rica das queimadas, publicado no Rio de Janeiro em 1976.

Quinto romance do autor, Vila rica das queimadas conta a história de como se deu a chegada e a aculturação dos sírio-libaneses na Amazônia, aí popularmente chamados pelos locais de “turcos”: “turco é pessoal prestimoso. Se a gente tem dalgum melhor de comprar, deve a regatão”. Por meio das personagens Nagib, Jamil e Zarife, Jacob busca mostrar como o povo árabe se tornou, ao final do século XIX e no início do século XX, um dos pilares da cultura da Amazônia.

O Jornal do Comércio de 9 de março de 1976, periódico manauara que publicou matéria sobre o lançamento da obra, enxergou-a como uma visita do escritor ao mundo dos “regatões, com os mascates dos rios, com os batelões e gaiolas da Amazônia, estes geralmente capitaneados por um ‘árabe’, que era como os caboclos carinhosamente chamavam os sírio-libaneses”.

Vila rica das queimadas pode ser classificado como um romance histórico, o primeiro de Jacob, temática à qual o autor voltaria apenas catorze anos depois, em 1990, com Um pedaço de lua caía na mata. Não sem razão, a história de Nagib, Jamil e Zarife vai dialogar com outras obras posteriores que ficcionalizaram a imigração árabe na Amazônia, tais como E Deus chorou sobre o rio (1984), de Elizabeth Azize, e Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum. Isto é, como, ao chegar à Amazônia, o sírio-libanês se embrenhou pelos rios com sua coragem, força incansável e habilidade para os negócios. Vila rica das queimadas compartilha, ainda, aspectos intertextuais com romances brasileiros que trataram da imigração árabe em outras terras brasileiras, tais como As aventuras de um mascate libanês (2003), de Jabal Lubnàn.

O romance tem quinze capítulos e sua voz narrativa é dada a Nagib, filho de Jamil. É por sua perspectiva que se pode ver a família deixar a cidade natal de Hama, na Síria, e seguir para Beirute. A saudade pelo chão natal acomete a todos, trazendo à tona o sentimento de apego pela “terra deixada, saudosos de pai, mãe”. Do Líbano, seguem para Manaus, durante o período áureo da borracha: “marzão aberto, alonjos topando céus. Pai de evindo pro Amazonas, mãe na companha”. A força motriz dessa mudança era o sussurro que atingiu o mundo, avisando que a “borracha [estava] fartando dinheiro. Falações muitas, paragem de ganho fácil”.

Ao chegar à capital amazonense, de “muita beleza, enricada, luxenta”, a família segue para o bairro dos Remédios, de frente para o Rio Negro, historicamente conhecido por abrigar a colônia árabe durante os anos de imigração. O contraste entre uma Manaus da Belle Époque ostentada e vivida por aqueles que enricaram com o comércio da borracha e aqueles que ficaram de fora desse desenvolvimento salta, aí, aos olhos do leitor. Se, durante o trajeto para o bairro dos Remédios, Nagib comenta sobre os enormes casarões com aparência de hotel, quando ele chega ao seu local de moradia o encontro é com uma casa em “destragação. Soalho solto, as vigas estroçadas de cupim”. Esse aspecto sócio-histórico trazido por Paulo Jacob para Vila rica das queimadas é muito atual, dado que é comum encontrá-lo em pesquisas que versam sobre o período áureo da borracha no Amazonas: o fato de que o fausto que aí se criou não atingiu a todos.

Assim, Jamil começa ganhando seu sustento como vendedor ambulante, mascate nas ruas, vulgarmente chamado pelos manauaras à época de “tec-tec”, dado que este tipo de trabalhador percorria as antigas ruas da cidade ao som de marteletes de madeira, anunciando os seus variados produtos. “Pai andava adistado, vitrine nas costas. Até em Flores se dava de ir”.

Com a ajuda dos demais sírio-libaneses, Jamil consegue montar seu próprio negócio, demonstrando a histórica veia que esse povo tem para o comércio. Até este momento, enquanto a família se estabelece na cidade, o espaço romanesco de Vila rica das queimadas é predominantemente urbano. O divisor de águas da trama se dá com a acusação de que Jamil teria abusado de uma menor de idade. Ele passa “dois dias preso, na pior maltratança”. Uma vez solto, e aconselhado por seus compatriotas, Jamil compra um barco, nomeia-o de “Flor da Síria” e parte para viver suas peripécias pelo espaço rural amazônico, tornando-se um mascate nos rios. A partir daí o espaço romanesco muda radicalmente, trocando a cidade pelo campo.

Jamil decide levar essa vida de sazonalidades amazônicas, aportando de vila em vila, ao lado do filho, Nagib, e do caboclo Quirino. É com este que o sírio-libanês aprende a se amazonizar: passa a gostar de se alimentar de peixe, de dormir em rede, de tomar muito banho, de beber água na cuia, além de ficar bronzeado: “Tomou do feitio, costumeiro da terra. Um pouco mais queimadio, escurado”. Jamil, entretanto, nunca abandonará seu afeto pelo seu chão, a amada Síria. Foi somente a Amazônia que passou a fazer parte deste círculo de afeto. A Síria e o Amazonas agora comportam a sua existência. A primeira é o lugar da infância e da juventude de Jamil; o segundo é um “terrão bondoso” que ele aprendeu a amar e a quem ele promete “nunca mais de largar”.

Nagib, por sua vez, enamora-se por uma dessas caboclas com que a “comitiva” topou em suas andanças pelos rios amazônicos. Maria Rita era de Vila Rica das Queimadas, lugar de mulher bonita, “cada um femão, faz gosto se vê. Mulher de boniteza é ali mesmo, seu menino”. Maria Rita, “a cunhantã bonita dos arraiais de santo”, arrebata o coração de Nagib com um amor penetrante. Seu encanto e sedução influenciam o jovem sírio-libanês e o relacionamento entre os dois adiciona um novo elemento à identidade e cultura locais, enriquecendo a já existente diversidade da região.

Mais do que revelar a aculturação da colônia sírio-libanesa na Amazônia, mostrando como esse médio-oriental se caboclizou, Vila rica das queimadas suscita uma reflexão a respeito de duas questões históricas e urgentes: a causa indígena e a relação judaico-árabe. É relevante o fato de Jacob ter colocado como título de um romance o nome que recebeu uma terra indígena após ela ter sido queimada e seus habitantes terem sido dizimados. Cumpre lembrar que o autor foi um ardoroso defensor da demarcação das terras indígenas durante a Constituinte de 1988, tendo auxiliado membros do Senado quanto a esse tópico.

Sobre a relação judaico-árabe, tão abalada em várias partes do mundo, a dedicatória do romance mostra que, na Amazônia, esses dois médio-orientais formaram uma amizade que serve de exemplo para todos os povos. O destaque é que este romance não é tão somente uma homenagem de um judeu sefardita para a colônia sírio-libanesa no Amazonas, como está registrado em seu paratexto. Vila rica das queimadas teve o apoio de muitas damas da sociedade sírio-libanesa de Manaus, que usaram de toda a sua influência para que, como apontou o Jornal do Comércio, o lançamento do novo livro de Paulo Jacob tivesse “a desejada repercussão”, como é o caso de Yvone Aucar Seffair, Nadia Aucar e Selma Bomfim.

No plano sócio-histórico, sobretudo no que diz respeito à Amazônia, o romance é uma espécie de resgate da cultura dos regatões, dos mascates dos rios, dos homens que ajudaram a desbravar o território, desafiando perigos para levar suas bugigangas enquanto as trocavam pelas “drogas do sertão” amazônico. Vila rica das queimadas traz esse olhar sobre a ocupação da Amazônia, iniciada pelos sírio-libaneses e concretizada, posteriormente, pelos nordestinos. Tais mascates das águas foram os primeiros shoppings centers da Amazônia e acabaram por alterar positivamente a identidade e a cultura local.

Para saber mais

ARAUJO, Orny (1976). Vila rica das queimadas, de Paulo Jacó, em lançamento. Jornal do Commercio, 29 out. 1976.

SOUZA, Jamescley Almeida de Souza (2021). O espaço romanesco em narrativas ficcionais de Paulo Jacob: topoanálise e geograficidade. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus.

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Como citar:

SOUZA, Jamescley Almeida de.
Vila rica das queimadas.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

21 jan. 2025.

Disponível em:

3592.

Acessado em:

19 maio. 2025.