MUNDURUKU, Daniel. Todas as coisas são pequenas. São Paulo: Arx, 2008.
Giulia Campos
Ilustração: Théo Crisóstomo
Todas as coisas são pequenas é uma narrativa sobre reconexão e ressignificações existenciais, que descreve e celebra a potência de forças indígenas ancestrais. A partir das situações vividas por Carlos, o protagonista, o leitor é guiado numa viagem que fala de questões filosóficas e existenciais profundas, que reconfiguram o modo de ver e pensar do protagonista, e, consequentemente, do leitor. O romance é um dos mais de 62 livros publicados por Daniel Munduruku (Belém, PA, 1964), tendo sido publicada em 2008, compondo, junto com outras 18 obras, o momento que até agora parece ser o de maior produção do autor, de 2006 a 2011.
Munduruku, que também é ativista da causa indígena, ator, professor e filósofo, faz parte do grande movimento de escritores que, integrados ao movimento pela luta dos direitos indígenas, compõem o que convencionou-se chamar de literatura indígena, ou seja, expressões estético-literárias, políticas e de práxis que contribuem para a publicização da luta indígena no Brasil (Dorrico, 2018). Entre os seus muitos romances, contos e histórias infantis, Munduruku traz como tema a diversidade cultural indígena, com foco nas ramificações filosóficas das culturas originárias.
Munduruku é mestre em antropologia social e doutor em educação pela Universidade Federal de São Paulo e é um dos mais influentes pensadores e ativistas indígenas da atualidade. Também fundou o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI) e atualmente é diretor-presidente do Instituto Uk’a – A Casa dos Saberes Ancestrais, uma ONG e também selo editorial especializado na temática indígena. É um autor premiado no Brasil e no exterior e venceu dois Prêmios Jabuti e o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor livro infantil, entre muitos outros. Em Todas as coisas são pequenas, Munduruku focaliza em especial o tema da desconexão e solidão do homem ocidental, e da potência filosófica e existencial da ancestralidade e filosofia indígenas, propondo uma reconexão.
Em entrevista para a revista Rascunho,em 2021, quando perguntado acerca do tema da solidão e da desconexão do indivíduo com forças coletivas, Munduruku disse acerca da geração brasileira criada para ser “alguém na vida”: “É uma geração que não sabe mais olhar para trás para buscar sentidos da existência. É uma geração voltada para a ficção chamada futuro. Reconectar-se exige — como a palavra diz — uma volta, um retorno, uma inflexão” (Saavedra, 2021). É a partir dessa perspectiva que somos apresentados ao protagonista, Carlos, no início da narrativa do romance.
A premissa de Todas as coisas são pequenas é um acidente de avião na Floresta Amazônica, que funciona como catalisador para descobertas e mudanças drásticas na vida de Carlos, o protagonista. Ele se envereda em uma jornada de ressignificação de valores e crenças, num processo de desconstrução e reconstrução de seu próprio ser. Composto por 15 capítulos, logo no primeiro, o leitor é apresentado às reflexões existenciais do protagonista, um angustiado empresário brasileiro de sucesso: “Começo minhas reflexões pensando nos vazios da existência”. Por meio de suas reflexões acerca da sociedade brasileira e de suas conclusões acerca das próprias vivências, ganhamos acesso ao universo de Carlos, com suas crenças, sua amargura e suas angústias.
Após anos de trabalho e dedicação pouco íntegra à aquisição de riquezas, Carlos decide tirar férias e ir para a Grécia, rememorar seus anos de educação e deleite filosófico e (tentativa em vão) divertir-se com a própria solidão. Porém, alguns dias antes da viagem, ele recebe um chamado familiar: a morte eminente de sua mãe. Decide, contrariado, interromper seu itinerário em alguns dias para visitar sua mãe em seu leito de morte, em sua cidade de origem no Mato Grosso, onde vivem, de maneira bem menos luxuosa, os seus irmãos. Não chega a tempo e envereda-se em uma disputa com seus irmãos acerca da herança deixada pelos pais. Mesmo a partir da evidência de que seus irmãos precisam da herança para pagar o tratamento de sua falecida mãe, Carlos opta, de forma egoísta, por disputar o pouco deixado pelos seus pais e rompe com os irmãos quando eles não o compreendem, decidindo partir no mesmo dia em seu avião particular.
Amargurado, ele adormece e tem um sonho-presságio em que seus pais caminham tristes rumo ao infinito. Ao acordar, Carlos se dá conta de que o avião está caindo. É a partir da queda do avião, no quarto capítulo, que a “nova história” do protagonista começa. Após sobreviver à terrível batida e queda de seu avião, Carlos se vê sozinho na Floresta Amazônica, um organismo vivo que o aterroriza. Com fome, sede e ferido, ele caminha pela floresta em busca de água, sem sucesso: “passei a imaginar uma forma de conseguir água potável. Já tinha visto em filmes do Tarzan que era possível tirar água de cipós existentes na floresta. Mas que cipós eram esses? Que floresta era essa?” Após caminhar por horas sem encontrar água, Carlos se vê perdido.
Ludibriado pelos sons da floresta que mudam a todo momento, aterrorizando-o, ele tropeça e cai de um barranco de muitos metros. Ao acordar, Carlos se encontra em uma rede, com as pernas imobilizadas e uma touca de barro. Está sendo cuidado por um velho indígena. Esse personagem, chamado primeiro de “homem vermelho” e depois de pajé, é figura-chave na jornada de transformação que Carlos inicia. Nos diálogos com esse pajé que salva a sua vida e com as lições que ele, pacientemente, tenta lhe ensinar, Carlos passa a rever suas crenças e a refletir sobre seus próprios caminhos no mundo e os caminhos da humanidade.
O pajé renomeia Carlos, chamando-o de Irihi, que significa “teimoso”, e após algum tempo de diálogos e aprendizados juntos, anuncia a jornada que Irihi percorrerá: “Irihi vai ter que limpar o corpo e a mente para enxergar a verdade que mora dentro das pedras, dentro das folhas, dentro de cada ser vivo, nas cavidades das montanhas e nas profundezas dos rios. Depois, Irihi ganha nome e volta para a cidade”. O leitor é levado junto com Carlos a esse processo de ressignificação de valores e crenças, que se convertem em reflexões críticas sobre o modo de vida ocidental, e propõem, na mesma medida, uma nova valorização simbólica da cosmovisão indígena que é apresentada pelo pajé e por sua comunidade.
Embora a fortuna crítica acerca da obra de Munduruku seja extensa, especialmente dentro da seara teórica acerca da literatura indígena contemporânea, poucos são os trabalhos que se dedicam à análise de Todas as coisas são pequenas. A tese de doutorado Daniel Munduruku: o autor-índio na aldeia-global, de Marco Aurélio Navarro (2014), é um exemplo. Navarro descreve a novela como uma evidência da habilidade de Munduruku de promover, a partir de um enredo, uma crítica aos tempos pós-modernos, definidos por Navarro como “tempos líquidos” em uma referência à teoria do filósofo polonês Zygmunt Bauman. Navarro também fala sobre como o narrador estabelece a ideia da floresta como “outro locus da narrativa”, que serve não para romantizar a forma de vida indígena, mas para apresentar sua cosmovisão.
Nesse sentido, outra análise que chama a atenção é a de Eurídice Figueiredo, no artigo “Eliane Potiguara e Daniel Munduruku: por uma cosmovisão ameríndia”, em que a crítica literária analisa as descrições da filosofia do mundo indígena, ornamentosamente escritas por Munduruku em sua narrativa: “Daniel Munduruku faz uma revisão da história e da filosofia ocidental para apontar que os índios não são nem selvagens nem primitivos, que as verdades são muitas”. Talvez Figueiredo tenha apontado aqui a maior qualidade de Todas as coisas são pequenas, a forma como a novela contrapõe a filosofia ocidental e a indígena.
Por meio da jornada de Carlos, ou Irihi − que é renomeado ainda uma outra vez dentro da narrativa −, Munduruku apresenta, via personagem do pajé, um percurso de ressignificações: partir de uma realidade materialista e capitalista − definida como “sociedade envolvente” por Eliane Potiguara em Metade cara, metade máscara − para chegar a uma “nova” perspectiva que na verdade é antiquíssima. Conjugando o imaginário e o lúdico, Daniel Munduruku propõe, nas 159 páginas de Todas as coisas são pequenas, novas realidades não apenas para os povos indígenas, mas para toda a humanidade, com uma narrativa que envolve e transforma.
Para saber mais
BEZERRA, Ligia (2022). “The City and the Forest: Lessons on Consumption in Daniel Munduruku’s Todas as coisas são pequenas.” Contemporary Brazilian Cities, Culture, and Resistance. Ed. Sophia Beal and Gustavo Teixeira Prieto. Hispanic Issues On Line 28: 184–204. Disponível em: https://conservancy.umn.edu/server/api/core/bitstreams/fecdd944-d631-48a1-bf08-fb3aa03eb695/content. Acesso em: 6 jul. 2024.
DORRICO, Julie.; DANNER, Leno. Francisco.; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando. (Orgs.) (2018). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre, RS: Editora Fi.
SAAVEDRA, C. (2021). Olhar pra trás para saber quem somos. Rascunho, o Jornal de Literatura do Brasil, no. 251. Disponível em: https://rascunho.com.br/liberado/olhar-para-tras-para-saber-quem-somos/. Acesso em: 6 jul. 2024.
NAVARRO, Marco Aurélio. (2014). Daniel Munduruku: o índio-autor na Aldeia-Global. Tese (Doutorado em Letras) − Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Disponível em: https://adelpha-api.mackenzie.br/server/api/core/bitstreams/8f7b988e-a967-4f70-8aa1-fd0caf867db6/content. Acesso em: 6 de jul. 2024.
FIGUEIREDO, Eurídice (2018). Eliane Potiguara e Daniel Munduruku, por uma cosmovisão ameríndia. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 53, p. 291-304, jan./abr. 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10345. Acesso em: 6 jul. 2024.
POLASTRINI, Leandro Faustino (2019). Transculturação e identidades na obra de Daniel Munduruku. Porto Alegre, RS: Editora Fi.
POTIGUARA, Eliane. (2019). Metade cara, metade máscara. 3. ed. Rio de Janeiro: Grumim Edições.
Iconografia