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Um copo de cólera

Nassar, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Cultura, 1978.

Maria Eduarda Brum Silva Gomes
Ilustração: Nina Nunes

É incomum, em literatura, autores com uma dicção ficcional tão própria que, já no ato de estreia, fixam-se no cânone. Mais inusual ainda é quando esses autores, por decisão própria, mantêm a sua produção enxuta, afastando-se do ofício de escritor depois do reconhecimento da crítica. É o caso de Raduan Nassar (Pindorama, SP, 1935), que conteve a unicidade, complexidade e força de sua escrita em apenas três livros: Lavoura arcaica (romance, 1975), Um copo de cólera (novela, 1978) e Menina a caminho (contos, 1994).

Nassar, filho de imigrantes libaneses, mudou-se do interior para a capital do estado de São Paulo na década de 1950. Conforme Felinto (2021), o autor manteve-se em Pinheiros, trabalhando no armarinho da família paralelamente aos estudos nos cursos de Letras, Direito e Filosofia, este último, formação em que se licenciou. Na década seguinte, dedicou-se ao jornal semanal que mantinha com os irmãos, até sua estreia literária, no ano de 1975.

Depois do sucesso obtido com a crítica e o público, Nassar abdicou da literatura e passou a se dedicar à agricultura, ofício este que durou três décadas, até que, como fazendeiro, aposentou-se e retornou para a cidade de São Paulo. A exemplo de sua inclinação às causas sociais e ao fazer científico, Nassar doou a fazenda onde residiu durante 30 anos para a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), de modo a, em suas palavras, “retribuir” o que a sociedade brasileira lhe ofertou.

A escrita empreendida por Nassar é arquitetada, em um de seus pilares, pela densidade e robustez de sua linguagem. Os três livros publicados foram escritos quase que simultaneamente, durante a década de 1970, alçando um projeto literário bastante sólido e encerrado – haja vista que não foi acrescido desde então.

É notável que a ficção nassariana ganha muita força na condensação dos textos em formas breves. Impera, tanto na estrutura formal, como no conteúdo dos livros, um eixo organizador sempre limítrofe, que se vale de poucas personagens, cenários e instrumentos para desenrolar situações, elas também fronteiriças, difíceis ou intrincadas, que tratam de personagens com problemas e conflitos psicológicos patentes.

Em Um copo de cólera, segunda publicação de Nassar, a forma da novela é utilizada de modo circular, abrindo inúmeras trilhas significativas, as quais não se deixam esgotar. No âmbito do enredo, o livro organiza, em sete partes, o conflito e a resolução de uma briga de casal. São eles: “A chegada”, “Na cama”, “O levantar”, “O banho”, “O café da manhã”, “O esporro” e, novamente, “A chegada”.

Esmiuçando e localizando a trama, é dado o espaço de uma chácara, em meio rural. Depois de uma noite de amor tórrido, e relativa tranquilidade, a cólera do narrador, “Ele”, é disparada por um motivo fútil: a invasão de formigas em sua cerca-viva. A partir do descontentamento, ele arrasta a mulher e os funcionários da chácara para o núcleo de sua chaga, fazendo-os, especialmente “Ela”, interlocutores de sua raiva.

Com o avanço do desabafo, que ganha peso a cada página, as respostas e considerações da companheira só o encolerizam mais, até a evolução para a agressão física. Em determinado momento, ela vai embora e, quando retorna, assume a narração da última parte da novela, encerrando (ou, melhor, recomeçando) o ciclo, agora enternecido – e sem disputas – como no início.

O enredo aparentemente simples, pela força de sua composição febril, ganhou inúmeras angulações críticas ao longo dos anos, desde a sua publicação. Destacando a análise de Tânia Pellegrini (1997), temos uma parte da crítica que se dedicou a perceber as implicações do espaço rural e do espaço urbano na literatura de Nassar. A autora demonstra que a novela tensiona elementos antigamente associados à literatura regional, como a terra, a família e o homem, com contemporâneas ferramentas narrativas associadas à ficção urbana, como a incerteza, o existencialismo e a angústia.

Há também críticas detidas nas tensões de gênero na novela. As personagens de Um copo de cólera são tratadas apenas pelos pronomes “Ele” e “Ela” e as inscrições do corpo, do erotismo e do poder são centrais nas manifestações dos gêneros em disputa. O jogo, a que ambos dizem “sim”, desenrola-se de modo a pôr a briga do casal em uma espécie de beco sem saída, arrastando o leitor para a sua digressão infinita, expressa sobretudo no capítulo que recebe o nome “O Esporro”.

Outro modo de iluminar a novela é levando em consideração o contexto sócio-histórico em que o livro foi escrito e publicado. O cenário da literatura brasileira da década de 1970 é bastante complexo. Com o recrudescimento da ditadura (1964-1985) a partir do Ato Institucional n. 5, de 1968, autores e editoras estavam sob a mira dos censores do regime. Nesse sentido, a realidade social em que o contexto cultural estava mergulhado não poderia se eximir de representar, na literatura, as repressões do período. Não é diferente em Um copo de cólera. É fato que os temas e a construção narrativa dos livros de Nassar não aparentam, à primeira vista, fornecer uma denúncia explícita dos abusos do período. No entanto, uma análise detida do jogo de poder estabelecido pelas personagens bem como o ceticismo e a ironia que empreendem em suas interações servem para esse propósito.

Se a dinâmica espiralar do debate entre o casal coloca a novela longe da literatura de denúncia que vigorava na década de 1970, conforme afirma Perrone-Moisés (1996), o livro fornece a contaminação das relações individuais pelo discurso do poder, além do discurso, carregado por Ele, marcado pelo fascismo. Tais elementos servem, a seu modo, para compor uma denúncia bastante íntima às estruturas sociais e das famílias existentes durante o regime autoritário.

Seja qual trilha narrativa a que se queira perseguir, os nós que compõem e tecem a novela não se deixam afrouxar completamente pelo leitor. O entranhamento narrativo que a novela fornece, na realidade, serve mais para tensionar e desorganizar a leitura do que para oferecer respostas claras a respeito do enredo e da forma. De algum modo, o livro age para encolerizar até o ato da leitura. A linguagem, aqui, apresenta-se sempre em teste, inventiva, não se deixa arrefecer da febre e do ritmo estabelecidos desde a primeira linha. O livro ocupa o seu lugar irrevogável no cânone da literatura brasileira contemporânea, sobretudo pela sua capacidade de interpelar e envolver o leitor com a febre da cólera que descreve.

Para saber mais

ANTUNES, Benedito (2021). Política e forma literária no último quartel do século XX. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 62, p. 1-13. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37433. Acesso em: 30 jun. 2024.

FELINTO, Marilene (2021). Sabedoria e arte de viver: uma conversa com Raduan Nassar. Quatro Cinco Um, São Paulo, Edição n. 41, jan. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/entrevistas/literatura/literatura-brasileira/sabedoria-e-arte-de-viver/. Acesso em: 1 out. 2024.

LIMA, Thayse Leal (2006). O mundo desencantado: um estudo da obra de Raduan Nassar. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

PELLEGRINI, Tânia (1997). Raduan Nassar: masculino e feminino, contemporâneo. Brasil/Brazil, Porto Alegre, v. 17, p. 9-26.

PERRONE-MOISÉS, Leyla (1996). Da cólera ao silêncio. Cadernos de Literatura Brasileira. Raduan Nassar. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, n. 2, p. 61-77, set.

Iconografia

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Como citar:

GOMES, Maria Eduarda Brum Silva.
Um copo de cólera.

Praça Clóvis: 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 fev. 2025.

Disponível em:

3586.

Acessado em:

19 maio. 2025.