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Terrapreta

CARELLI, Rita. Terrapreta. São Paulo: Editora 34, 2021.

Caroline Barbosa
Ilustração: Dona Dora

A escritora e ilustradora Rita Carelli (São Paulo, SP, 1984) é também atriz e diretora de cinema e teatro. Suas primeiras publicações são a coleção de livros-filmes Um dia na aldeia (2018) e livros infantis A história de Akykysiã, o dono da caça (2018), Minha família Enauenê (2018), Amor, O Coelho (2021) e Menina Mandioca (2022). Terrapreta (2021) é seu primeiro romance.

Em Terrapreta, o narrador parte do ponto de vista de Ana e de como ela experiencia a comunidade indígena, rejeitando respostas prontas e explorando a lacuna do desejo de saber o que não se sabe. Carelli realiza o que José Miguel Wisnik (2023) chama de “obliquação”, a posição na qual um autor se coloca a fim de habitar um lugar transversal a partir do qual é “ao mesmo tempo e conjuntamente” sujeito e objeto do que narra, observando-se como “o eu de um outro”. Nesse movimento identificado por Wisnik como próprio da ficção, o escritor estabelece um “pacto mágico” com o leitor, pois ao mesmo tempo em que é um outro, há um contrato claro de que não pode ser efetivamente esse outro.

Carelli é filha do documentarista e antropólogo Vincent Carelli, e desde a infância está em contato com comunidades indígenas. No entanto, sua obra não explora a ambiguidade de sua biografia, remetendo a elementos diretamente relacionados à sua vida. O mote da narrativa concentra-se no choque cultural, no olhar para o outro, no aprender a viver junto.

Ana, a personagem principal, é uma jovem de classe média de quinze anos, que mora em São Paulo. A menina acorda atrasada certa manhã e sua mãe a leva de carro para a escola. Tudo parece se encaminhar para apenas mais um dia comum. No entanto, uma notícia inesperada se apresenta: a mãe sofreu um infarto fulminante, e o pai, que estava distante há um tempo, foi o responsável chamado para dar a notícia à filha.

Entre ficar na casa da avó materna e viajar com o pai antropólogo para o Alto Xingu nesse momento de luto, a segunda opção é a que prevalece. Na comunidade, a jovem percebe que é motivo de riso para os indígenas, sem que se sinta propriamente vítima de bullying. Ali ela é apenas diferente: “O riso divertido deles não era o riso maldoso dos colegas de escola, ali parecia que rir de tudo era esporte generalizado e Ana se sentia surpreendentemente livre em seu não-lugar”.

Ana entra em contato com costumes distintos dos que ela cultivava em São Paulo, mas vive a comunidade de peito aberto. Constrói amizades e afetos, depara-se com desejos e anseios e transita entre a calmaria da natureza e o turbilhão de emoções pela mudança da infância para a puberdade, assim como pela perda da mãe.

O romance é narrado em terceira pessoa, adotando um tom íntimo e poético, elaborado com base em figuras de linguagem que querem desenhar as emoções da personagem: “Uma pontada aguda perfura algum encanamento interno, fazendo minar uma gota no canto do olho. O ônibus sacoleja, lá fora, uma vaca pasta, o vazamento persiste”.

Dividido em capítulos curtos, o romance é estruturado em três partes. A primeira delas, intitulada “Tempestade”, apresenta a mudança geográfica de Ana, seu contato com um modo diferente de vida, o conhecimento das tradições indígenas. As transformações que ela experimenta durante a adolescência encontram correspondência na celebração do Kuarup, uma “festa para lembrar os mortos”, em que a comunidade homenageia os que partiram e marca o fim do período de reclusão das meninas que menstruaram e que estavam sendo preparadas para saírem como mulheres feitas perante a comunidade. Uma delas, Kassuri, torna-se uma amiga querida de Ana.

No decorrer da narrativa, principalmente no contato inicial da personagem com os habitantes do Alto Xingu, o leitor é levado a conhecer diversas lendas que fazem parte do imaginário da comunidade, como a relação dos irmãos Sol e Lua na origem do Kuarup, a explicação de como surgiu o pequi, a história de Anakinalo e o perigo do bicho-espírito. No fim da obra, a autora destaca que todos os nomes indígenas foram inventados.

Como o romance não é linear e mescla tempos distintos, na segunda parte, “Sob a Terra”, percebe-se que Ana reflete sobre essa vivência junto aos indígenas, muitos anos depois, já morando em Paris. E o faz para escrever uma tese. O diário que manteve à época é enviado do Brasil por alguém misterioso. Ana resolve então retornar ao Alto Xingu, alarmada com as notícias das queimadas e pelo temor de que algo aconteça com seu pai e com os amigos que deixou para trás.

Nessa seção, o narrador, que até então se mantinha em terceira pessoa, modula-se para a primeira pessoa, emulando o diário de Ana. As perspectivas de terceira e primeira pessoa se alternam, proporcionando uma experiência narrativa que combina a objetividade dos eventos com as emoções e reflexões íntimas da personagem: “Sinto uma estranheza ao pensar que a aldeia está plantada sobre um cemitério, que as raízes das casas e do pátio são os túmulos dos ancestrais. Depois penso na cova improvisada aos pés da pitangueira do nosso quintal onde enterrei as cinzas da minha mãe. Não era tão diferente”.

Na última parte do romance, “Novos tempos”, a narrativa retoma o diário de Ana, documentando os desdobramentos de seu retorno ao Brasil e seu esforço para cicatrizar antigas feridas, além de reatar o vínculo com seu pai, agora um importante aliado na luta pela sobrevivência dos povos indígenas.

Terrapreta insere-se em uma tradição literária que explora as vivências do “outro”, enquanto reconhece a posição do narrador como sujeito que parte de uma perspectiva externa. Esse movimento, presente também em obras como O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), de Micheliny Verunschk, traz a cosmogonia indígena para o centro da forma romanesca, a fim de interpelar o presente e questionar nosso modo de viver junto.

Para saber mais

GAMAL, Haron (2022). Entre incêndios e tempestades, o renascer. Rascunho, n. 261. Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/entre-incendios-e-tempestades-o-renascer/. Acesso em: 1 jun. 2024.

WISNIK. José Miguel (2023). Ficção ou não. Revera, São Paulo,v. 3, p. 126-150. Disponível em: http://site.veracruz.edu.br:8087/instituto/revera/index.php/revera/article/view/7. Acesso em: 26 maio 2024.

Iconografia

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Como citar:

BARBOSA, Caroline.
Terrapreta.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 fev. 2025.

Disponível em:

3529.

Acessado em:

19 maio. 2025.