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Subúrbio

BONASSI, Fernando. Subúrbio. São Paulo: Scritta, 1994.

Sílvia Capanema
Ilustração: Léo Tavares

Fernando Bonassi (São Paulo, SP, 1962) é um autor que transita entre a prosa literária (romance e contos), a dramaturgia, o cinema, a televisão, a crônica jornalística e a publicidade, o que o insere num coletivo de autores e roteiristas que marcaram a produção brasileira nos anos 1990 e 2000.

Nascido em São Paulo, Bonassi apresenta essencialmente diferentes facetas, sempre cruas, miseráveis, abandonadas e violentas, do mundo urbano ou suburbano. O romance Subúrbio (1994) representa uma referência fundamental para a consolidação do estilo de escrita do autor. A narrativa é realista, em alguns momentos fantasmagórica, mas sempre num estilo seco. A perspectiva de revolta e indignação de Bonassi com a condição humana no Brasil do seu tempo é transformada numa escrita cuja estética consiste justamente em representar o grotesco, o abjeto, o horrível em cada página. De fato, nada no livro é belo, nenhum dos 74 capítulos numerados e sem título foge à regra.

A história acontece em São Caetano, subúrbio operário da grande São Paulo, no chamado ABC paulista. Os principais personagens são um casal de velhos, sem nomes próprios e identificados apenas como o velho e a velha, que se detestam, mas vivem sob o mesmo teto por guardarem um vínculo de sobrevivência mínima, quase uma fatalidade da qual não podem escapar. A velha não tem renda própria fora da aposentadoria do velho; o velho precisa de alguém que o salve nos momentos frequentes de embriaguez e alcoolismo. Mas ambos vivem como se um esperasse a morte do outro. Moram numa casa pobre, pequena, feia, em estado precário e de acentuada degeneração, onde não dividem o mesmo quarto. O velho dorme no quarto de casal, a velha numa cama que adaptou no corredor. Essa separação marca, de certa forma, o “tempo da narrativa”.

A história se passa no tempo da velhice do casal decadente, tempo que é sempre evocado, de forma repetitiva, como “no tempo em que aconteceu essa história”. O texto é dividido em duas partes. Cada uma delas é marcada por uma “tara sexual” diferente do protagonista, o velho. A primeira parte retrata a obsessão, consequência da frustração sexual, do velho pela vizinha que ele observa tomar banho através de um buraco que perfura na parede do banheiro de sua casa. Reforçando o grotesco das cenas, o velho observa também a tristeza do marido da vizinha, um homem condenado a portar uma bolsa de colostomia. A segunda parte, que acentua ao máximo a perversidade humana, é marcada pela obsessão do velho pela “menina”. A narrativa sobre a pedofilia, envolvente, porém repulsiva e macabra, anuncia que algo trágico deverá se produzir. O quê? Como? A menina é apresentada como uma verdadeira “presa” do velho, condição que se cria como consequência do abandono afetivo e material proveniente de sua condição suburbana e pobre.

Todos os personagens da história são anônimos e representados por sua condição profissional, de idade ou de situação (o jovem do bar, a menina, o vizinho, a vizinha, o pai da menina, a testemunha de Jeová, o motorista). São todos moradores do subúrbio. O texto é escrito com muitas descrições dos espaços e também com digressões para outros momentos da vida do velho (no trabalho, no bar, na interação rápida com outros moradores, com os chefes do Jogo do Bicho ou em conversa com o vizinho, na porta da escola da menina), bem como para alguns momentos da vida da velha (um fim de semana de viagem de ônibus, sua vida na cozinha ou no quintal da casa, a infecção que levou à amputação de dois dedos do pé – “ainda bem que foram só dois dedos”, palavras de “consolo” do médico).

O texto também é marcado por um cotidiano de dificuldades econômicas no qual quase nada acontece. Assim, o tédio e a feiura provocam mal-estar no leitor, embora a narrativa não seja entediante, mas envolvente, ritmada pela secura dos termos utilizados. Onde nada acontece, algo terrível há de acontecer, e o leitor é envolvido nessa espera.

Tudo no subúrbio e na vida do casal de “velhos” é feio. Eles se insultam, falam pouco, o ambiente descrito é asqueroso. Uma vida sem sentido e repleta de frustrações. Talvez as únicas passagens mais doces do livro estejam na caracterização da menina, mas que antecipam a perversão do protagonista e o desfecho fatal, ápice do horrível e do cruel, a pedofilia, o assassinato, o linchamento.

Como sair disso? A narrativa e a história não fornecem saída, de forma proposital. A condição suburbana do livro é uma condição miserável, marcada pelo espaço e pelo tempo. No meio de tanta decadência e depravação, de tanta feiura e frustração, da falta de comunicação entre os personagens principais, só resta o fim da história. Difícil não pensar no livro como uma metáfora da condição do Brasil nos anos 1990, também retratada em outras obras literárias. Um romance que retrata a descrença e a impotência humana diante de uma condição social imposta em um país desigual, miserável por definição, sem saída, um impasse, no qual a velhice é sinônimo de decadência e a juventude representa apenas a vulnerabilidade e o desamparo.

O livro é produzido em um contexto em que a periferia ainda é subúrbio. Ele surge antes da explosão do movimento hip hop nas periferias brasileiras, antes da centralidade que assume a questão racial e antes de uma nova contracultura. De certa forma, o subúrbio de Subúrbio não existe mais como representação no Brasil de hoje. Ele não é, ainda, a periferia.

O velho e a velha funcionam como metáforas de um subúrbio em constante decadência, destinado a desaparecer no imaginário dominante, sem, contudo, abrir espaço para uma lógica menos violenta ou menos excludente. Trata-se, portanto, de uma mudança de linguagem. A obra de Bonassi, longe de provocar empatia ou qualquer tipo de sublimação, apresenta um excelente retrato do Brasil suburbano no pós-ditadura, um país que permanece distante dos ideais de “civilização”, cultura, prosperidade e igualdade.

Para saber mais

CRUZ, Aldécio de Sousa (2009). Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP7V3GHU/1/tese___ad_lcio_de_sousa_cruz.pdf. Acesso em: 22 set. 2024.

FERNANDO Bonassi (2024). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoas/1738-fernando-bonassi. Acesso em: 10 jul. 2024. Verbete da Enciclopédia.

LIMA, Mariângela Alves de (1996). Bonassi alia violência e pobreza. O Estado de S. Paulo, 4 out. 1996. Caderno 2.

SILVA, Maurício (2007). Histórias de rua ou sexo & violência: o realismo suburbano de Fernando Bonassi. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 98-104. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18123/14913. Acesso em: 22 set. 2024.

SILVA, Mauricio (2011). A narrativa minimalista de Fernando Bonassi. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 28, p. 47-58. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9102. Acesso em: 31 ago. 2024.

Iconografia

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Como citar:

CAPANEMA, Sílvia.
Subúrbio.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 fev. 2025.

Disponível em:

3527.

Acessado em:

19 maio. 2025.