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Saia da frente do meu sol

CHARBEL, Felipe. Saia da frente do meu sol. Belo Horizonte: Autêntica Contemporânea, 2023.

Samara Lima
Ilustração: Léo Tavares

Philippe Lejeune (2014) afirma que as tradicionais autobiografias registravam as memórias de pessoas ilustres e de reconhecida relevância para a sociedade. O teórico francês igualmente afirma que seu interesse pelo gênero teve início com a tentativa de também conferir importância à vida do homem anônimo. A relação entre o gênero e a tentativa de magnificar o pequeno é interessante, pois, nos últimos anos, é possível perceber uma “guinada subjetiva” (Sarlo, 2007) nas produções contemporâneas em consequência da valorização da exposição pública da intimidade, dos relatos de experiências pessoais e do interesse pelas vidas comuns.

E é justamente lançando um olhar para “alguém sem muito brilho” da sua família, à medida que também explora seus próprios impasses, que o escritor, ensaísta e professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Felipe Charbel (Rio de Janeiro, RJ, 1977), constrói Saia da frente do meu sol. Trata-se de uma narrativa estruturada em torno do seu tio-avô, Ricardo, que ocupou um lugar marginal na história familiar e foi “um agregado a vida inteira”: primeiro morando no quartinho de fundos no apartamento da irmã mais nova e, nos seus últimos anos, no quartinho do apartamento da mãe do autor.

Depois de um almoço de Natal na casa de sua mãe, o narrador encontra uma caixa de sapatos no armário, que tinha pertencido à sua avó, repleta de itens familiares, entre os quais uma série de fotografias de seu falecido tio. A certidão de óbito de Ricardo ali contida atesta que ele não “deixou filhos, não deixou bens, não era leitor e faleceu sem testamento conhecido”. É valendo-se desse pequeno acervo que Charbel questiona o que sobra dessa vida sem registro e sem herança e busca acessar minimamente a existência dessa figura enigmática.

A obra é dividida em quatro partes e, no primeiro capítulo, “Seu tio está vindo morar com a gente”, aparecem as primeiras impressões do narrador em relação ao seu tio. No decorrer do texto, Ricardo é descrito como uma pessoa reservada, de “temperamento irascível”, com uma existência envolta em segredos e que desenvolveu uma paralisia nas pernas sem um diagnóstico oficial, possivelmente associado à sífilis neurológica. Entretanto, se no primeiro plano apresenta-se uma versão decrépita do personagem, que para muitos era considerado um estorvo, é igualmente nesse capítulo que o narrador já deixa entrever uma espécie de burburinho que circulava entre seus familiares sobre quem seu tio-avô tinha sido antes da doença.

As imagens fotográficas que o narrador encontra e que são reproduzidas na narrativa desempenham um papel fundamental na sua investigação sobre a vida anterior do personagem. Citando John Berger, o narrador afirma que “o verdadeiro conteúdo de uma fotografia é invisível” e que “ao registrar o que foi visto, sempre e por sua própria natureza se refere ao que não é visto”. Assim, a cada encontro com as fotos de Ricardo, que ilustram momentos significativos de sua vida, desde a juventude até a idade adulta, o autor interroga o que vê. Ele observa as pessoas retratadas na cena e como se relacionam entre si, o local da captura, suas poses e vestimentas, ao passo que se empenha “para enxergar algo mais, para perceber algo que se insinue entre uma coisa e outra”. É a partir do momento que ultrapassa a evidência da imagem, em sua tentativa de captar o que não é visto e encontrar “os traços de vidas que vazam pelas rachaduras do papel”, que ele se depara com uma outra versão de seu tio.

O que seu olhar e suas interpretações sobre as imagens revelam é uma versão mais vaidosa e malandra de Ricardo, com um cigarro na mão, com ar zombeteiro de quem tem sempre uma “tirada certeira brotando na sua cabeça” e cria sua própria ficção diante da câmera. Alguém que se diverte e dorme ao relento nas matas e nas praias, que faz os outros rirem e que “canta aos berros num baile de Carnaval”.

Se o que se vê na fotografia é o “retorno do morto”, graças ao caráter espectral do sujeito retratado, como o narrador aponta ao falar sobre Roland Barthes, aquele que enxerga e o que suas especulações promovem é “o retorno do vivo”. Essas imagens permitem ao narrador e ao leitor confrontar aquelas de Ricardo oferecidas pelos comentários sussurrados nas festas e reuniões de família: “o petulante, os escombros de um ser humano, o inquilino do quartinho de fundos, o homem que arrastava pela vida um balde de mijo”.

Em diversos momentos, o narrador comenta sua crença na impossibilidade de reconstruir a vida de alguém, assumindo de antemão o “fracasso” que é narrar o outro, comentando ainda a dificuldade de capturar totalmente o que as fotografias expressam. Esse jogo de incerteza, em que o documento não compactua plenamente com o dizível, aumenta ainda mais o mistério em torno do personagem, pois adiciona camadas mais complexas à narrativa, e permite ao leitor a construção de sua própria visão sobre quem Ricardo pode ter sido.

Um aspecto essencial da obra diz respeito à questão da homossexualidade (ou bissexualidade) do personagem. Já no final da obra, o narrador encontra um conjunto de fotos de Ricardo apenas com outros homens, em um “saquinho plástico dentro de outro saquinho plástico”, no fundo da caixa amarela. Dentre todas, as fotos na praia são as que carregam um maior apelo erótico. É possível pensar que o sigilo do conteúdo das fotos e o quartinho dos fundos, que era o único lugar que cabia ao tio Ricardo, estejam associados ao ato de esconder algo que não era bem visto aos olhos da família e da sociedade da época. O que justifica o fato de a doença do tio ser considerada, pelos parentes, um “problema moral”.

O narrador não fixa uma orientação sexual para Ricardo. O que faz, e instiga o leitor a fazer, é aprofundar a reflexão sobre a análise das imagens, sobre as memórias dos “não-ditos” e sobre as sentenças que ouviu ao longo da vida, como: “Seu tio era um homem de vícios”; “Tinha um ou outro desvio, mas não era má pessoa”; “Se amigou dos cantores da época” e “Até que não dava pinta”, evitando, dessa forma, reproduzir a violência do olhar dos outros sobre a vida do tio.

A dinâmica entre passado e presente, que diz respeito à lógica da imagem fotográfica, é parte essencial da constituição da narrativa. O vai e vem temporal está presente nas flutuações da memória do narrador, na maneira como maneja as fotografias e as interroga, bem como na narração fragmentária da vida de Ricardo e de sua história familiar. A narrativa não investiga apenas a vida do tio do autor, mas é também uma investigação sobre si próprio, sua família, e os inconvenientes que surgem desde o momento em que decide concentrar-se em narrar sua história (“Falando dele, é de mim que falo”). Isso fica evidente na opção formal, que reúne, em meio ao enredo, trechos de diários, fotos das anotações e as discussões sobre o projeto do livro que ora se lê, incorporando, assim, o próprio processo de escrita à feitura da obra.

Em Janelas irreais – um diário de releitura (2018), Charbel relê algumas obras importantes para sua formação como leitor, ao passo que revela pequenos dramas pessoais que são disparados justamente pelas releituras realizadas, deixando então nebulosas as experiências dos personagens dos romances e as nuances da sua própria vida. Da mesma forma, Saia da frente do meu sol é uma narrativa híbrida, que, ao mesclar diferentes linguagens e gêneros literários, ficção e realidade, aposta numa prática de escrita instável e suscita questionamentos sobre as possibilidades da literatura hoje.

Para saber mais

CHARBEL, Felipe (2018). Janelas irreais: um diário de releitura. Belo Horizonte: Relicário.

CHARBEL, Felipe (Entrevistado). (2023). Conversas contemporâneas [Podcast]. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ww31EluWeUQ. Acesso em: 11 jul. 2024.

LEJEUNE, Philippe (2014). O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

SARLO, Beatriz (2007). Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Iconografia

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Como citar:

LIMA, Samara.
Saia da frente do meu sol.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 fev. 2025.

Disponível em:

3525.

Acessado em:

19 maio. 2025.