Ir para o conteúdo

Primeira carta aos andróginos

SILVA, Aguinaldo. Primeira carta aos andróginos. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.

Fábio Figueiredo Camargo
Ilustração: Léo Tavares

Em 1975, Aguinaldo Silva (Carpina, PE, 1944), jornalista e fundador, juntamente com João Silvério Trevisan e Darcy Penteado, entre outros, de O Lampião da Esquina — jornal de temática homossexual editado entre 1978 e 1981, durante a ditadura militar —, lança Primeira carta aos andróginos. Este é o quinto livro publicado em uma carreira iniciada em 1960, muito antes de começar a escrever para a televisão, onde se consagraria como escritor de telenovelas. A trama queer, antes mesmo de a teoria existir, apresenta um narrador em primeira pessoa que se divide entre ele e seu duplo, Salomão/Davi, levando os leitores a percorrer as ruas do Recife enquanto seu corpo masculino, em plena transição, converte-se a uma configuração feminina, processo que mais tarde seria denominado transexualização.

A narrativa, que algumas vezes passa à terceira pessoa utilizando o discurso indireto livre, é dividida em três partes: I) “Cavalo louco”; II) “Guerra em trânsito” e III) “Botão”. As duas primeiras narram as agruras da transformação do corpo do narrador no planeta Terra, enquanto a terceira conta as aventuras do narrador no Planeta Faeton. Esta última, provavelmente influenciada pela ficção científica feminista de Ursula K. Le Guin (A mão esquerda da escuridão, de 1969), exemplifica a possibilidade de outra vida sem o peso da organização heteronormativa e generificada do planeta Terra.

O livro dialoga, desde o título, com a “Primeira Carta aos Coríntios”, de suposta autoria de Paulo de Tarso, o profeta iconoclasta cristão. Enquanto o texto bíblico visava a organizar a vida devassa dos cidadãos de Corinto para que abraçassem as leis do deus cristão, o texto de Silva ilumina o outro lado da questão: a vida dos marginalizados, das minorias e dos cidadãos de segunda classe, considerados abjetos por uma conduta sexual inapropriada aos dogmas cristãos.

Com esse desvio ou subversão do texto bíblico, Silva apresenta personagens marginais que atuam como peças centrais na destruição dos baluartes da tradicional família, organizada em torno de valores como castidade e pureza. O enredo exibe a personagem principal sendo violada pelo próprio pai, tendo relações sexuais com homens casados e assumindo sua sexualidade dissidente na zona boêmia do cais do Recife. Ao final do romance, psicodélico e utópico, o protagonista desembarca em outro planeta, onde passa a viver em uma nova sociedade, mais inclusiva e livre, em contraposição ao universo terrestre.

Na história, o leitor encontra uma sequência de cenas sexuais que refletem o empenho do autor em integrar o homoerotismo à literatura brasileira, explorando o excesso de sexualidade. No total, são 19 cenas em um enredo que conta com 134 páginas, o que indica uma produção considerável para o contexto da época, marcada por uma ditadura militar que impunha censura a muitos livros no Brasil.

O protagonista reflete sobre sua orientação sexual ao recordar sua infância e a atração que sentia pelo vizinho, especialmente por seu sorriso. Ele menciona que se recorda de algo que antecede sua própria existência, um desejo que irrompe em uma sexualidade que não pode ser contida. Dessa forma, Primeira carta aos andróginos é uma obra significativa, que aborda a temática homoerótica sem se deixar levar pela patologização da sexualidade, que ainda era prevalente nas representações de personagens homossexuais nos anos 1970. Embora a narrativa não aborde a homossexualidade sob o estigma da doença ou do erro de uma conduta dita desviante, Silva não deixa de apresentar a dificuldade diária do sujeito homossexual de se assumir publicamente perante a sua comunidade. Para tanto, a expressão “lodo”, que acompanha a narrativa reiteradamente, visa a preencher a imaginação do leitor com a ideia de uma sexualidade suja, pegajosa, algo que remete a excrementos e restos. O cheiro constante do esperma que entra pelas narinas do protagonista corrobora essa percepção de um ato libidinoso e proibido, o que, ao invés de reforçar a patologização, joga para o leitor a reflexão sobre a vida difícil do protagonista ao não ser aceito pela sociedade.

As vozes narrativas em primeira e terceira pessoa se intercalam no enredo para permitir que o leitor se aproxime ao máximo das sensações confusas que o protagonista experimenta durante sua iniciação sexual, vivida como um ato de extrema violência, mas que culmina em saciedade dos desejos. Assim, o leitor fica em suspenso ao presenciar o estupro da personagem cometido pelo pai e, simultaneamente, a alegria sentida ao ganhar sorvetes depois disso. A desordem narrativa ressalta a desordem interior do menino, que confunde as formas de prazer que lhe são oferecidas: uma aplaca a fome e a outra o desejo sexual. Sorvete e sêmen se equivalem em sua percepção, pois ambos escorrem para dentro de seu corpo, misturando o alívio do refrescamento, o remorso de sentir prazer em uma relação incestuosa, o gozo, a dor – física e emocional – e o cansaço decorrentes do ato.

Além de sofrer com um pai abusivo, a mãe do protagonista, que se veste de preto e usa saltos altíssimos enquanto carrega um chicote, o explora, levando-o à prostituição. Desse modo, as relações com sua família são prejudiciais, complicando ainda mais sua vida. Outro cenário da narrativa é o Pocilga’s Bar, onde a personagem se apresenta em forma travestida. O nome do bar evoca a ideia de um espaço imundo, refletindo o ambiente de lodo e sujeira em que a história se desenrola, predominantemente no porto ou em suas proximidades, onde se misturam os aromas de maresia, lama e sêmen. A atração pelos genitais masculinos e o odor dos corpos se entrelaçam, fazendo com que o leitor perceba as várias relações do narrador. O texto aguça os sentidos do leitor; o narrador relata observações, toques e sabores, criando uma narrativa sinestésica.

Dentro da ótica do tempo, o romance de Silva propõe uma saída para as questões dos sujeitos tratados como pervertidos, apresentando sua visão de uma evasão utópica para outro planeta como forma de escape do destrato enfrentado por essas personagens. A frase final, “OS HOMENS QUE SE CUIDEM”, em caixa alta, implica um recado atual: requer uma percepção de que a ficção é capaz de prever uma nova espécie gerada no planeta Faeton, vinda para cobrar o respeito devido. Essa visão pode ser comparada aos movimentos pelo respeito e dignidade dos corpos transexuais e travestis dos anos 1980 até os dias de hoje. Nesse sentido, a narrativa de Silva faz circular o desejo pelo respeito e pela garantia de tornar uma vida desviante em uma vida que importa.

Para saber mais

AIRES, Marcele; SANTOS, João Vitor Xavier dos (2022). A via-crúcis do corpos trans: do calvário à libertação em Primeira carta aos andróginos, de Aguinaldo Silva. Letras, Santa Maria, n. 59, p. 15-32. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/37353. Acesso em: 15 jun. 2024.

MAIA, Tereza Cristina Gomes (2016). A monstruosidade em Primeira carta aos andróginos, de Aguinaldo Silva. In: Anais do Cena, v. 2, n. 1, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, p. 1-7. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdocena/wp-content/uploads/2016/01/TEREZA-MAIA.pdf. Acesso em: 15 jun. 2024.

REIMÃO, Sandra (2009). Aguinaldo Silva, um escritor censurado. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 209-222. Disponível em: https://revistas.intercom.org.br/index.php/revistaintercom/article/view/245. Acesso em: 15 jun. 2024.

SANTOS, Eron Rafael dos (2019). “Os homens que se cuidem”: O sexo dos homens na literatura brasileira a partir de Aguinaldo Silva. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/201465. Acesso em: 15 jun. 2024.

Iconografia

Tags:

Como citar:

CAMARGO, Fábio Figueiredo.
Primeira carta aos andróginos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 fev. 2025.

Disponível em:

3523.

Acessado em:

19 maio. 2025.