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Onde pastam os minotauros

TERRON, Joca Reiners. Onde pastam os minotauros. São Paulo: Todavia, 2023.

Breno Kümmel
Ilustração: Manuela Dib

Joca Reiners Terron (Cuiabá, MT, 1968), de origem mato-grossense e há décadas morador de São Paulo, tem uma produção literária volumosa. Além de oito romances, publicou também dois volumes de contos e cinco de poesia desde o início de sua carreira em 1998. Seus livros frequentemente operam sob um entendimento bastante flexível de verossimilhança, com elementos da literatura fantástica e do surrealismo (relativamente pouco presentes na literatura brasileira) explorando temas de escatologia; tanto no entendimento comum da palavra, em que significa excrementos corporais, quanto à doutrina teológica que estuda ideários apocalípticos.

Conforme seria previsto pela sua trajetória até então, não é numa dicção estritamente realista e expositiva que se organiza seu oitavo romance, Onde pastam os minotauros, em uma ideia que buscaria dar conta da realidade por meio de um retrato pretensamente completo ou fidedigno pela literalidade. Tem-se, em vez disso, um painel essencialmente expressionista, de traços que se pautam ao mesmo tempo pelo exagero e pela fineza da linguagem, numa sensação de opressão constante, sufocante e inescapável.

A história do livro transcorre durante o fim de ano em um abatedouro no interior de Mato Grosso. Esse abatedouro produz carne halal, destinada a países muçulmanos. Nesse caso, os animais são abatidos em obediência às regras da religião, com as cabeças voltadas para Meca. Para além da miséria corriqueira, salários baixos, jornada exaustiva e realidade de matança constante de animais inocentes, os personagens ainda vivem a tensão de uma iminente demissão em massa, com a substituição da mão de obra brasileira por uma muçulmana estrangeira.

Se a vida sob o jugo de um trabalho mal remunerado e desgastante já era em si um sofrimento dificilmente aturável, a alternativa a isso seria compor a multidão de maltrapilhos que vive do lado de fora do cercado do abatedouro, implorando por restos de animais, rejeitos e ossos para aplacar a fome. É como se os personagens vivessem num equilíbrio difícil na beira do abismo, com uma vista constante para a queda e nenhum vislumbre de melhorias.

É um dos raros romances brasileiros que trata centralmente da realidade do trabalho. Embora o livro aborde detalhadamente a rotina e os procedimentos do abate, isso ocorre de forma distante do efeito de um realismo do tipo mais instrutivo, que faria lembrar os romances de proletariado da geração de 30, com aquele intuito antigo de instruir o leitor a respeito de uma realidade que ele precisaria conhecer para poder enfrentá-la. Há, em vez disso, uma espessa densidade simbólica nos procedimentos narrativos, de forma que mesmo uma frase que descreva transparentemente uma ação ganha o peso de uma alegoria enigmática.

Ainda que trate do dia a dia de operários numa fábrica (pois o matadouro só pode ser entendido dessa maneira, com seus relógios de ponto e índices de produtividade contabilizada) e de uma realidade macroeconômica de grande importância política no país, é o peso simbólico trazido pelas decisões estilísticas do autor que causa a impressão mais forte da narrativa. Isso pode ser comprovado a partir do próprio título e mais vividamente nos trechos de tom mitológico que falam de uma criança nascida metade boi, presa no labirinto, como nas histórias da Grécia helenística, em uma recuperação deliberadamente distorcida do material narrativo arcaico. O livro ainda traz vários capítulos narrados pelos próprios animais, que dão um testemunho de placidez enigmática a respeito da matança que os cerca e os atinge, assim como da infelicidade inamovível dos responsáveis por essa matança.

O texto eventualmente chega a tratar da realidade externa, como as referências à terra natal do colega de trabalho Ahmed, e o massacre feito contra os palestinos no Oriente Médio. Mesmo assim, a impressão que continuamente perpassa a leitura é a de um mundo que se resume às instalações e práticas do matadouro. Através de um labirinto descrito no seu sentido concreto para os animais no abatedouro, a estilística do romance prende também o leitor num mundo aparentemente sem horizontes, com estradas apenas de vinda (de retorno, a contragosto ou não, ao matadouro).

Os personagens do livro evidenciam em seus próprios nomes o tom da narrativa: Cão, Crente e Lucy Fuerza (apelido em paródia da companhia elétrica paraguaia, Luz y Fuerza). Cão é o funcionário que conduz os animais para o abate, tendo uma facilidade sobrenatural em seu ofício devido à conexão psíquica que sente com os animais que encaminha várias vezes por dia para a morte violenta. Após longo convívio, Cão parece se conscientizar de que a facilidade em lidar com os animais teria serventia puramente produtiva, ou seja, para matar um número maior de animais com a carne menos endurecida do estresse pré-abate, resultando num produto de melhor qualidade. Ele tentou abandonar o abatedouro e buscou no tráfico de drogas outro meio de sustento, porém foi preso e liberto num período anterior à narrativa.

O personagem Crente, por sua vez, vive entre o trabalho exaustivo e visitas diligentes ao hospital. Sua filha está internada devido a uma doença inominada, mas que o leitor é levado a crer, por referências muito passageiras, que se originou em uma pandemia que teria matado a mãe da menina, algo muito próximo da realidade recente da Covid-19. Seu sofrimento ante a incerteza do futuro da filha e a revolta ao concluir que a transmissão do vírus foi responsabilidade do pastor da igreja é talvez o momento em que a narrativa mais se aproxima de uma visão mais imediatista e menos simbólica das injustiças e erros do mundo. No entanto, a realidade em que se vive no país, do domínio crescente do poder evangélico, mostra a dificuldade de tratar a questão sem tonalidades de caricatura.

O livro é denso, mesmo com o estilo apurado e claro, pois a homogeneidade da negatividade e da desesperança torna o avanço da leitura mais devagar do que daria inicialmente a ver, diante da extensão reduzida dos capítulos, com duas a quatro páginas em sua maioria. A obra chega a apresentar um final esperançoso, mas a travessia continua exigindo um fôlego de ânimo por parte de quem lê. O apuro descritivo e estilístico do romance, para além de seu poderio imaginativo e abordagem de tema incomum dentro da literatura brasileira, mais do que bastam para que este se sustente como uma obra merecedora de atenção.

Para saber mais

DINIZ, Lígia (2023). Joca Reiners Terron usa minotauros em denúncia lírica dos abatedouros. Folha de São Paulo, 28 jul. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/07/joca-reiners-terron-usa-minotauros-em-denuncia-lirica-dos-abatedouros.shtml. Acesso em: 4 ago. 2024.

FONSECA, Luiz Guilherme (2023). Sobre humanos e monstros. Quatro Cinco Um, 1 set. Disponível em:  https://quatrocincoum.com.br/resenhas/literatura/literatura-brasileira/sobre-humanos-e-monstros/ . Acesso em: 4 ago. 2024.

NOGUEIRA, Paulo (2023). Joca Reiners Terron: narrativa perturbadora em Onde pastam os minotauros. Estado de Minas, 25 ago. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2023/08/25/interna_pensar,1551619/joca-reiners-terron-narrativa-perturbadora-em-onde-pastam-os-minotauros.shtml. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Como citar:

KÜMMEL, Breno.
Onde pastam os minotauros.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

07 fev. 2025.

Disponível em:

3521.

Acessado em:

19 maio. 2025.