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O voo da guará vermelha

REZENDE, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

André Luiz dos Santos Rodrigues
Ilustração: Francisco Dalcastagnè

O psicanalista francês Jacques Lacan afirmou, no seminário A transferência, que amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer. A experiência amorosa (e psicanalítica) seria, nesse sentido, uma experiência de desencontro e não de repleção. Entre o otimismo, a ternura e a ingenuidade, O voo da guará vermelha, primeiro romance de Maria Valéria Rezende (Santos, SP, 1942), apresenta o contrário dessa tese: as vidas dos protagonistas se cruzam em um momento em que ambos necessitavam de alguém para completá-los, cada qual concedendo o que possuía e recebendo aquilo de que precisava.

Apresentando, segundo Daiana Piaceski (2019), uma das características centrais das histórias da autora, a saber, o olhar para pessoas em trânsito, o livro conta a saga do pedreiro Rosálio da Conceição e da prostituta Irene. Quando se encontram na casa de prostituição onde a moça trabalha, a vida de Rosálio era comer feijão, trabalhar, lavar-se e dormir; a de Irene, amealhar o dinheiro para sustentar o filho ainda bebê, cuidado por uma velha senhora. As vidas dos protagonistas – provavelmente construídos a partir de sujeitos com os quais a autora cruzou em sua longa trajetória como educadora popular – estavam acinzentadas pelos problemas do Brasil rural e do Brasil urbano pós-ditadura: o analfabetismo, a invisibilidade social, o trabalho análogo à escravidão, o desmatamento, o garimpo, o HIV, o abismo social, o preconceito de gênero, o preconceito de orientação sexual, a segregação urbana e o concreto sufocante das grandes cidades.

Para Irene, Rosálio oferece suas experiências de vida, relatadas com a destreza de um contador de histórias. Realizando seu sonho de ser professora, ela, por sua vez, compartilha o que sabe das letras, como ler e escrever. Nessa troca de saberes, os personagens se aproximam, tornam-se um casal e redescobrem, pouco a pouco, o prazer de viver. Esse reaprendizado da alegria reflete-se nos títulos dos capítulos, que pareiam diferentes cores: verde e negro, roxo e branco, ocre e rosa etc. A cada capítulo, a cada encontro no quarto de Irene, novas cores tingem o mundo dos personagens, suas vidas se emaranham, “misturadas, uma e outra, difícil de separar por querer, por mão humana”.

A maneira como enxergam o mundo é complexa, mesclando o conhecimento vindo de clássicos da literatura (como Dom Quixote e As mil e uma noites) com a crença em valores cristãos, em feitiços, em encantados, em criaturas da floresta (como Caipora e Mapinguari) e na natureza como consciência viva e comunicante (os animais falam e as plantas sentem).

O saber formal, contudo, não está em patamar superior ao saber vindo da experiência, pois é esta que embasa as histórias de Rosálio, que, ecoando a filosofia de Paulo Freire – uma das referências no pensamento de Rezende –, não sabia ler um livro, mas sabia ler o mundo. Desde a infância, na busca por aprender a ler e a escrever, Rosálio passou por diversos locais e ofícios. Além da Grota dos Crioulos, local onde nasceu e que, em seus primórdios, reunia negros fugidos do cativeiro, viveu em um acampamento de madeireiros, em um garimpo, em uma favela e em um assentamento sem-terra. Ia aonde diziam que poderia aprender a decifrar as letras, desejo realizado apenas por Irene. Ela ampliou o mundo de Rosálio alfabetizando-o; ele alargou o dela contando aquilo pelo que passou até encontrá-la.

Construída em terceira pessoa, a voz narrativa alia-se aos protagonistas, abrindo espaço para o discurso em primeira pessoa destes. As frases das duas instâncias são extensas e fazem o leitor ouvir, quando não rimas, a musicalidade, os excessos e o ritmo de uma fala espontânea, sem a solenidade de frases lapidares.

O modo de constituição do romance e dos “causos” de Rosálio é encadeado, semelhante ao de As mil e uma noites, com uma história ramificando-se em outra, um discurso subordinando-se a outro: a voz narrativa fala de Rosálio, que fala de Maria Flora, que fala de Suécio. As histórias se interligam para consolidar a vivência tanto quanto as letras para formar palavras, e depois frases, e depois textos, e depois livros – uma coisa se expande para outra: Rosálio aprende a “escrever ‘laranja’, depois ‘gomo’ e daí ‘goma’; a ‘goma’ deu ‘tapioca’, a ‘cana’ virou ‘garapa’”. Uma incontrolável reação em cadeia, a constituição do romance, assim como acontece com o conhecimento, tende ao infinito, fundo contra o qual a guará voa.

Ao mesmo tempo bela e singela, a imagem do título reúne os elementos formais, temáticos e ideológicos da obra: o voo refletindo o cromatismo de diversas cenas, a emancipação proporcionada pelo conhecimento (formal ou informal) e a fluidez que caracteriza as construções frasais da voz narrativa e dos personagens. Em O voo da guará vermelha, a narrativa é sempre impelida para adiante.

Ademais, o livro tem caráter metalinguístico, uma vez que a voz narrativa e os personagens refletem sobre como se originam as histórias que se contam e seu efeito nos sujeitos. Conta-se uma história para lembrar o que foi vivido, presenciado ou ouvido. E também se conta para estar na pele do outro, para reviver, sem dor, o que aconteceu, para mudar o próprio destino, para esquecer da vida, para deixar vestígios no mundo.

Mais ainda: contar e ouvir histórias é viciante, “uma cachaça que, uma vez pegado o gosto, ninguém queria deixar”. De origem imprecisa, pois não é possível distinguir a verdade da invenção: Rosálio garimpa “na memória retalhos para costurar um no outro e ver nascer outros sentidos que possa desenrolar no papel e um dia vão chamar outros, até completar histórias e fazer seu próprio livro”. Não tendo sido batizado, Rosálio, por muito tempo, não possuiu um nome registrado oficialmente. Já foi Nem-Ninguém, Curumim, Caroço e Doutor – sintoma de que seus direitos foram negados, sintoma de que sua personalidade, própria de um artista, é metamorfa.

Há passagens que ecoam o discurso de Riobaldo, narrador de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Ainda que se fale que “a vida tem dessas voltas, uma coisa exagerada se vira no seu contrário, o medo às vezes chegando a parecer uma coragem, o ódio se confundindo com seu avesso, o amor”, tais ambiguidades sentimentais não são vividas pelos personagens, retratados como seres movidos apenas pelo desejo de fazer o bem e de modificar positivamente a vida do outro.

A voz narrativa possui afeição por Rosálio e Irene e dá a entender que, quando mediadas pelo dinheiro, as relações se degradam. Quando impulsionadas pela vontade de se conectar com o outro, revigoram, cortando “pela raiz a planta de desespero”. A negatividade não se encontra em seus pensamentos, mas no mundo que os empurrou para as margens da sociedade, fazendo de O voo da guará vermelha uma espécie de romance proletário contemporâneo. Sua importância reside no fato de abordar ficcionalmente o impacto social e existencial do analfabetismo, problema que atingia 11,4 milhões de pessoas no Brasil, segundo dados do Censo Demográfico 2022. A narrativa parece, por fim, sugerir, de forma idealista, que os sujeitos se deixem modificar por suas relações, que não devem ser fundadas no interesse, mas na genuinidade. Assim, Rosálio e Irene “se tornam um só, num descalabro de amor”: para a narrativa, o encaixe exato; para a psicanálise, o mutualismo impossível.

Para saber mais

ILHÉU, Taís. (2018). O vasto mundo de Maria Valéria Rezende. Le Monde Diplomatique. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-vasto-mundo-de-maria-valeria-rezende/. Acesso em: 29 mai. 2024.

PIACESKI, Daiana Patricia Follman (2019). Maria Valéria Rezende: colorindo invisíveis por meio da literatura. Revista Crioula, São Paulo, n. 24, p. 250-267. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/160624/158696. Acesso em: 22 mai. 2024.

ZUKOSKI, Ana Maria Soares; ZOLIN, Lúcia Osana (2020). A escrita como processo de subjetivação feminina: uma leitura de O voo da guará vermelha (2005), de Maria Valéria Rezende. Scripta Uniandrade, Curitiba, v. 18, n. 1, p. 62-78. Disponível em: https://revista.uniandrade.br/index.php/ScriptaUniandrade/article/view/1592. Acesso em: 27 mai. 2024.

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Como citar:

RODRIGUES, André Luiz dos Santos.
O voo da guará vermelha.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

07 fev. 2025.

Disponível em:

3519.

Acessado em:

19 maio. 2025.