CARDOSO, Lúcio. O viajante. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
Carmen de Jesus Garcia
Ilustração: Catalina Chervin
Lúcio Cardoso, ou melhor, Joaquim Lúcio Cardoso Filho (Curvelo, MG, 1912 – Rio de Janeiro, RJ, 1968), foi escritor e artista múltiplo, com presença em vários campos das artes. Sua obra literária inclui 16 romances e novelas, dois livros de poesia, cerca de quatro centenas de contos, peças de teatro, traduções de romances e a elaboração de diários. Além de ter várias histórias adaptadas para o cinema, escreveu argumentos e foi coprodutor e diretor de filmes. Deixou, ainda, um legado de cerca de quinhentas telas de pintura.
Sua carreira literária iniciou-se em 1934, e seus dois primeiros romances, Maleita (1934) e Salgueiro (1935), integram a vertente regionalista que marcou a literatura brasileira dessa década. Porém, em 1938, o autor afastou-se dessa vertente com a publicação de A luz no subsolo, romance introspectivo, de cunho psicológico, que passaria a ser a marca de Cardoso a partir de então. Em 1959, publicou o consagrado romance Crônica da casa assassinada, considerado sua obra-prima. Pelo conjunto de sua obra, Cardoso foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis, em 1966, pela Academia Brasileira de Letras. Suas publicações se estenderam após sua morte prematura, em 1968.
Dentre as obras póstumas de Lúcio Cardoso, destaca-se O viajante (1973). O autor dedicou mais de dez anos à construção desse romance, discutindo-o com amigos e mencionando-o em seus diários. A escrita teria começado concomitantemente ao preparo de Crônica da casa assassinada, cuja elaboração também se estendeu por muitos anos. O viajante permaneceu incompleto quando, em 1962, Cardoso sofreu um acidente vascular cerebral que o deixou impossibilitado de escrever e com severas dificuldades para falar. O autor faleceu antes de concluir o romance, e foram sua irmã e o amigo Octávio de Faria que encaminharam a obra para publicação, lançada em 1971.
Cardoso fez três planos para O viajante. A edição publicada corresponde à versão III na íntegra, com 13 capítulos, 22 personagens e 207 páginas. Nessa edição, constam ainda algumas páginas de outra versão, denominada “versão definitiva”, que inclui três capítulos inacabados e um pequeno texto intitulado “O retrato do viajante”. Esta resenha baseia-se exclusivamente na versão III, sem os complementos mencionados.
O romance retrata a vida sem esperança dos moradores da fictícia cidade interiorana de Vila Velha, a mesma de Crônica da casa assassinada. A obra expõe os conflitos existenciais dessas personagens e o impacto provocado pela breve passagem de um caixeiro-viajante. Não há um protagonista único; destacam-se aqueles cujas vidas são alteradas pelo contato com o viajante: Donana de Lara, Sinhá, Juca do Vale, Bento Mendes e Graciosa.
O caixeiro-viajante é Rafael, nome de anjo, a quem Cardoso, em seus diários, comparou a um cometa: aquele que passa ligeiro. Contudo, assim como é terminal o destino de um cometa, essa breve passagem será trágica na trajetória dos personagens de O viajante.
Donana de Lara é apresentada, no início do romance, ao retornar para casa após uma saída com o filho cadeirante até a colina próxima. Retorna sozinha, sob a escuridão da noite e de si mesma. No texto de Cardoso, ela volta “sob a escuridão da ausência de claridade de um mundo desfeito”, o que o faz definir Donana como uma “composição do nada”. Viúva, ela vivia com o filho Zeca, sendo a única personagem abastada de recursos; inclusive, “mora no sobrado mais alto da cidade”. É descrita como “dotada de beleza discreta e ardente” e, ao longo dos seus 50 anos, uma “pessoa sem infância, formada de ausências”. A narrativa envolve o leitor na vida de Donana e dos demais personagens por meio de suas histórias e, sobretudo, pela profundidade e beleza estética da narração do autor.
Sinhá e Juca do Vale têm suas vidas consumidas pelo envolvimento de Sinhá com Rafael. Ela vem da roça, “é feia, tem mãos rudes, e é sem graça”, como é descrita ao chegar à casa dos padrinhos, em que vai prestar serviços. Os “parentes que não lhe tinham amor e para quem era uma estranha” são Juca do Vale, o fazedor de caixões, e sua mulher, Isaura, doente por insatisfações e desejos embotados. Sinhá, “estrábica e um tanto estranha de modos”, mas nos seus 19 anos, despertará o interesse passageiro de Rafael e o interesse obsessivo de Juca do Vale. O instinto animal de Juca a fará prometer nunca se entregar a um homem, promessa que não conseguirá cumprir e que trará graves consequências para os dois.
Outros personagens deveriam ter mais projeção em suas tramas, comparativamente às histórias de Donana e de Sinhá, porém ficaram com suas narrativas interrompidas, transparecendo que suas presenças teriam um desenrolar maior e um desfecho mais trabalhado. Esse é o caso de Bento Mendes, tabelião aposentado, sacristão da igreja local, responsável pela coleta e guarda dos muitos trocados doados pelos fiéis. Bento é casado com Dona Delfina, “a que definhava ao abandono”, e é na casa deles que Rafael se apresenta. Incentivado por esse “cometa que veio de Ubá”, Bento se envolverá com Graciosa, a prostituta que deseja o homem de sua irmã, mas que será amante de Bento, interessada no dinheiro das doações para tentar conquistar o cunhado.
E o caixeiro-viajante segue com seu roteiro de vida. Se, como diz Cardoso, “um caixeiro-viajante sempre encontra uma Donana de Lara nas cidades por onde passa”, também se pode acrescentar que caixeiros-viajantes sempre encontram uma Sinhá e um Bento Mendes. Suas vidas sem esperança são marcadas pelo efeito da solidão, da privação de luxos, da luta permanente pela sobrevivência, de dias de rotina e obrigações sem fim. E, principalmente, pelo efeito disso sobre a potência de cada um para a realização de seus desejos, sobre a capacidade de ir contra as injunções da vida. É o esmagamento dessa potência e dessa capacidade de se indignar e reagir que caracteriza os personagens, subjugados às contingências do cotidiano, e que o surgimento de Rafael vai despertar, revolver e levar a mudanças.
O que se espera da viúva Donana, mãe do cadeirante, é o cuidado abnegado do filho doente, mas ela quer ser feliz e viver sem ter que esconder o filho por vergonha, o que não consegue. Praticamente se espera pouco da mocinha roceira. Filha de pais pobres, a necessidade a obriga a prestar serviços na casa de parentes, onde se defronta com o assédio de um fazedor de caixões frustrado, que a coisifica. Quanto a Juca do Vale, ele mesmo não espera nada de si, a não ser a morte dos outros. E Bento, o guardião do dinheiro, ali tão perto de suas mãos, pensa em utilizá-lo para viabilizar a realização de seus desejos. Porém, Rafael lhe avisa que “Graciosa sabe o que quer”.
Quanto à forma narrativa, O viajante se desenvolve a partir de uma estrutura fragmentada e sem ordem cronológica de apresentação dos acontecimentos. Um mesmo capítulo, dos 13 que compõem a obra, é formado por inúmeras partes que discorrem sobre os personagens da trama em cenas alternadas ou em partes que não se referem necessariamente a eles, mas a algo relatado que foi lembrado. Cada capítulo contém vários cortes narrativos, como num filme. Beatriz Damasceno (2012) reafirma que Cardoso “oferece ao leitor, em primeiro lugar, o efeito, depois a causa das situações, de modo que as ações são apresentadas sem que correspondam à causa-consequência”. Como exemplo, destaca que “o capítulo primeiro se passa depois do episódio quarto”: o capítulo primeiro se refere a Donana, ao retornar da colina, motivada por eventos que só serão mostrados bem adiante, no quarto capítulo, em que se narra seu envolvimento com Rafael.
Damasceno cita, ademais, que “o acontecimento do capítulo 12 se passa antes do que se registra no 11”, porque no capítulo 12 transcorre a relação de Sinhá e Rafael, sem romantismo, talvez à força, mas antes disso narrou-se o desfecho de Sinhá. Uma sequência fragmentada que incita a leitura do que está à frente, ou a volta para reler, buscando sua unidade, suas interligações ou a descoberta de sua incompletude.
Lamego (2013) e Santos (2018) mostraram que a trama de alguns personagens principais de O viajante tem sua gênese e seus atos hediondos retirados dos contos de crimes e mortes que Cardoso escreveu para o jornal A Noite. Contratado para fazer frente à concorrência da coluna “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues, Cardoso escreveu na coluna “O crime do dia”, entre 1952 e 1953, cerca de 265 narrativas ficcionais a partir de notícias sobre crimes.
É forte o apego de Cardoso à descrição dos ambientes em que se desenvolvem as histórias, retratando tanto a pasmaceira usual da cidade quanto o ruído cadenciado dos martelos sobre as ripas de madeira das barracas na construção para a festa da padroeira. Esmera-se, ademais, no relato das cores, em especial no exacerbado uso do vermelho das tragédias, nos cheiros das localidades, na descrição dos soturnos ambientes domésticos, com seu mobiliário e quadros imersos no ar abafado de espaços estreitos. O autor constrói imagens, e os muitos detalhes se alinham aos sentimentos dos personagens, tornando as descrições complementos indispensáveis das histórias.
O romance foi adaptado e roteirizado para o cinema por Paulo Cesar Saraceni. Lançado em 1999, rodado em Ubá, Minas Gerais, tendo no elenco Marília Pêra como Donana de Lara, Leandra Leal como Sinhá e a participação de outros grandes artistas. Tom Jobim compôs uma música especialmente para a trilha sonora dessa obra, que está classificada dentre os cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
Não se pode negar que o romance tem ritmo forte que dinamiza sua leitura. O leitor é levado, desde o início, a conhecer a maestria do autor e a experimentar a sensação de estar diante de uma obra literária que, apesar de inacabada, tem seu lugar reservado na história da literatura brasileira.
Para saber mais
DAMASCENO, Beatriz dos Santos (2012). Lúcio Cardoso em corpo e escrita. Rio de Janeiro: EdUERJ.
LAMEGO, Valéria Fernandes (2013). O conto e a vida literária de Lúcio Cardoso – 1930-1950. Tese (Doutorado em Letras/Literatura, Cultura e Contemporaneidade) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
O VIAJANTE (1999). Direção: Paulo César Saraceni. Produção: Ana Maria Nascimento e Silva. [S.l.]: Shater Produções Artísticas; Riofilme. 1 bobina cinematográfica (104min), son., color., 35 mm.
SANTOS, Cassia dos (2018). Lúcio Cardoso e a coluna “O crime do dia”. Manuscrítica, São Paulo, n. 36, p. 137-153. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/manuscritica/article/view/17789. Acesso em: 28 mai. 2024.
Iconografia