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O som do rugido da onça

VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Amelie Puglia
Ilustração: Guilherme Franzoni

O som do rugido da onça irrompe na literatura brasileira contemporânea em 2021. Micheliny Verunschk (Recife, PE, 1972), poeta e escritora, viveu a maior parte da juventude em Arcoverde, cidade do coração, conforme ela mesma declara. Define-se como historiadora de formação, e foi justamente essa marca histórica que despertou nela a intenção de escrever esse romance. Em diversas entrevistas que se seguiram ao lançamento do livro, Verunschk falou com emoção sobre as origens da obra: em 2016, visitou a exposição permanente da Coleção Brasiliana Itaú, no Instituto Itaú Cultural. Ao ver as litogravuras de duas crianças indígenas — uma menina do povo Miranha e um menino do povo Juri —, sentiu um forte choque e a necessidade imediata de contar a história deles.

Em um segundo momento, buscou mais informações sobre as crianças: elas foram capturadas no século XIX por dois cientistas, Martius e Spix, durante uma expedição no Brasil. Os estudiosos levaram consigo para a Europa “descobertas” de várias espécies: animais, plantas e, tragicamente, humanos.

No podcast Matéria Bruta, do Canal Curta (2023), a autora conta que logo percebeu a inadequação de construir um romance histórico para representar a história das crianças indígenas sequestradas. Em primeiro lugar, por uma questão meramente prática: a documentação oficial disponível não é suficiente para reconstruir a trajetória das duas crianças. Em segundo, por uma razão ética e moral: a história “oficial” é sempre contada pelo lado dos vencedores, e esse não é o objetivo de Verunschk. A intenção da obra surge como uma narrativa sobre a superação da violência colonial, que persiste no DNA brasileiro como uma doença. O livro inscreve-se também como uma prática de responsabilidade ética diante desse passado.

Antes de O som do rugido da onça, Micheliny Verunschk publicou os livros de poemas Geografia íntima do deserto (Landy, 2003), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003) e A cartografia da noite (Lumme, 2010), além do romance Nossa Teresa (Patuá, 2014) e da Trilogia infernal (Patuá, 2020), ambientada durante a ditadura militar brasileira. Seu quinto romance, O som do rugido da onça, conquistou os prêmios Jabuti e Oceanos em 2022, em um momento político e social marcado pela ascensão da literatura indígena, que busca reocupar as terras da literatura brasileira.

Esse período coincide com a amplificação das vozes indígenas no campo artístico e literário, principalmente em relação ao etnogenocídio e à destruição ambiental – lutas que ganharam força a partir dos anos 1980 com o Movimento Indígena. Nesse cenário, Micheliny Verunschk corre um risco do qual está plenamente consciente: “Não é uma narrativa que me pertence, pertence aos indígenas”. Como, então, uma escritora branca pode reivindicar o direito de contar uma história sobre a violência sofrida pelos povos indígenas? O livro é a resposta a essa questão: fruto de extensa pesquisa, de contato direto com comunidades indígenas e, sobretudo, de sua vivência com o ritual da ayahuasca, que a aproximou, ainda que de forma simbólica, da experiência de perda vivida pelas duas crianças.

Uma característica essencial da obra de Verunschk é a habilidade de articular múltiplas temporalidades. Em O som do rugido da onça, o passado e o presente fundem-se de maneira harmoniosa. Em 1820, a pequena indígena miranha, Iñe-e, foi entregue aos cientistas bávaros Martius e Spix pelo próprio pai, “que adoecera de doença de branco”. Além dela, os cientistas compraram outros sete meninos, incluindo uma criança do povo juri, rival dos miranha.

As duas crianças, incapazes de se comunicar por não falarem nhengatu – língua geral indígena –, alemão ou português, foram transportadas de navio para Munique. Na corte do rei, foram batizadas como Isabella e Johann, tratadas como bonecos pelas princesas e príncipes, simbolizando o ápice da violência colonial.

Nas cartas enviadas ao rei da Baviera, Martius expunha um ponto de vista semelhante ao de Pero Magalhães de Gândavo. Em História da Província Santa Cruz (1576), Gândavo observava a ausência das letras L, F e R nas línguas indígenas e concluía: “coisa digna de espanto, porque assim não têm fé, nem lei, nem rei. E desta maneira vivem desordenadamente, sem terem, além disto, conta, nem peso, nem medida”.

Da mesma forma, Martius interpretava certas práticas e rituais indígenas como manifestações demoníacas do território: “Expôs-se ao meu olhar horrorizado uma cena mais do inferno que humana: uma dança de antropófagos depravados, exaltados pelo gozo do triunfo e pela sensualidade”. Assim, tanto para Gândavo quanto para Martius, a terra que viria a se chamar Brasil era simultaneamente edênica, com uma natureza intocada, e demoníaca, habitada por seres vistos como diabólicos.

Paralelamente a esse passado, Verunschk apresenta a história de Josefa, personagem a quem a autora empresta aquele evento biográfico: a visita ao museu e o choque ao ver as litogravuras. O papel de Josefa é o de compreender a história por meio da redescoberta de seu próprio passado indígena.

A conhecida expressão portuguesa ouvida das avós, “pegar a laço”, retorna como leitmotiv, sinônimo de um caráter selvagem que precisa ser apaziguado: “A minha bisavó materna foi pega a laço, sabia? Tenho um tanto de sangue kaiapó em mim. Mas o fato é que todo mundo tem uma avó pega a laço no Brasil, eu, você, o porteiro lá embaixo”.

Josefa, no entanto, cresceu com a avó paterna, uma colombiana turrona, que evocava a ascendência da neta sempre que percebia, em sua índole, algo maior que a capacidade de resolução: “Era como se me dissesse que havia em mim uma força rebelde, incapaz de ser domesticada”, reflete Josefa.

A voz de Josefa ressoa como um eco das construções ideológicas que perduram na contemporaneidade, mas também como um rugido do passado ancestral — uma força que, ao emergir, não apenas denuncia, mas se torna construtora de um futuro consciente.

As páginas finais do livro intensificam o entrelaçamento das múltiplas temporalidades, revelando a complexidade da narrativa de Micheliny Verunschk. Iñe-e, metamorfoseada em onça e guiada pelo espírito-onça, entra em contato com seus antepassados ancestrais e percebe, com pesar, que a história de capturas e violências começou muito antes dela e se perpetuou por muito tempo depois. Essa consciência se desdobra também no presente, em 2020, quando a devastação persiste: a morte de indígenas pela Covid-19, a destruição da flora-casa amazônica e os assassinatos de crianças indígenas. Nesse momento, a personagem recebe uma mensagem que ecoa a dor e a continuidade da ruindade histórica: “Escuta só, ruindade não acaba não, ela se estende, encompridando, jauá, jauá. Por isso que eu quis mostrar isso pra tu. Pra que mecê, tu não se esqueça”.

O romance encapsula o paradoxo da formação do país, berço de uma população miscigenada que tem os povos indígenas como origem primeira: “Ela viu o seu povo se misturar com os outros povos, na língua e no sangue; mas, se uma alegria resultou disso, de igual modo também o que derivou foi uma grande negação, o povo negando a si mesmo. Tudo é índio, ninguém é índio. E o Brasil, essa igara”. Micheliny Verunschk, assim, narra não apenas a violência colonial, mas também a negação contínua da ancestralidade indígena, tensionando a identidade nacional, marcada pela mistura e pela negação, pela memória e pelo apagamento.

O som do rugido da onça é também um romance sobre a linguagem e o poder da palavra. Palavras e frases da língua nhengatu pontuam o texto, trazendo constantemente o leitor de volta ao Brasil “descoberto”, ao Brasil colonizado, roubado das comunidades indígenas. As palavras inventadas também se destacam, pois literatura e ficção podem construir algo novo e, dessa forma, Verunschk devolve valor à cosmovisão indígena do perspectivismo ameríndio, nos termos do antropólogo Viveiros de Castro, em que até rios e macacos falam sua própria língua.

A consciência do poder das palavras está presente tanto na visão ocidental quanto na indígena. Para os indígenas, a palavra é vida: “Quem não tem a palavra está morto, foi o que Iñe-e e os outros aprenderam”. Para os ocidentais, a palavra escrita torna-se um instrumento de poder, com o qual basta uma única linha num nome para apagar uma história de vida: “Martius rasura. Omite o destino do menino”.

Além disso, o romance vive no encontro de múltiplos autores. Em primeiro lugar, a referência ao conto “Meu tio Iauaretê”, de Guimarães Rosa, com quem compartilha a mesma experiência de metamorfose na onça. A onça, o parente ancestral, é ao mesmo tempo um animal a ser temido, mas com o qual os protagonistas conseguem ter uma relação íntima, baseada na confiança e no respeito mútuo. A própria autora afirma que dialogou neste texto com as vozes indígenas para ultrapassar as fronteiras do conhecimento ocidental, entrando na ponta dos pés nas perspectivas ameríndias, respeitando suas histórias.

Assim, aparecem citações do xamã Davi Kopenawa, histórias de mitos miranhas, juri, yanomami e, na capa, a reprodução de uma pintura do artista Jaider Esbell, o mesmo que, em sua obra-ensaio Makunaima, o meu avô em mim! (Iluminuras, 2018), lembra que “sem adentrar as portas das cosmovisões dos povos originários não há como discutir descolonização”. É isso que Verunschk faz: descolonizar o nosso pensamento através de um livro que traz o leitor ao presente, contando um passado silenciado durante séculos pela violência colonial. A metamorfose em onça-autora representa o rugido ancestral que vibra no presente para se espalhar no futuro.

Para saber mais

DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando (Orgs.) (2018). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Fi.

ESBELL, Jaider (2018). Makunaima, o meu avô em mim! Iluminuras, Porto Alegre, v. 19, n. 46, p. 11-39.

GÂNDAVO, Pêro de Magalhães (2004). História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Assírio & Alvim.

VERUNSCHK, Micheliny (Entrevistada) (2023). Matéria Bruta: O Som do Rugido da Onça com Micheliny Verunsch. Episódio 78 [Podcast]. Locução de Flávia Mano. Canal Curta!. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yrbGD3EYg28. Acesso em: 16 jun. 2024.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2005). O perspectivismo ameríndio ou a natureza em pessoa. Ciência & Ambiente, Santa Maria, n. 31, p. 123-132.

Iconografia

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Como citar:

PUGLIA, Amelie.
O som do rugido da onça.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

07 fev. 2025.

Disponível em:

3515.

Acessado em:

19 maio. 2025.