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O rastro do Jaguar

CARVALHO, Murilo. O rastro do Jaguar. São Paulo: LeYa, 2009.

Pedro Ivo Rocha de Macedo
Ilustração: Moreno Lago

A Guerra do Paraguai, vista sob a perspectiva de um jornalista europeu com olhos postos sobre um herói involuntário, é o cenário principal de Murilo Carvalho (Carvalhópolis, MG, 1949) em seu romance de estreia, O rastro do Jaguar (2009). Vencedora da primeira edição do Prêmio LEYA, patrocinada pela editora portuguesa, a obra foi publicada no Brasil no ano seguinte.

Carvalho, jornalista experiente, com carreira iniciada nos anos 1970, recupera uma tradição então em desuso no Brasil, a do romance histórico, partindo das expedições reais do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que em suas duas incursões pelo Brasil no século XIX traz de volta consigo à Europa dois habitantes originários do país, um jovem botocudo e uma criança guarani. O que inscreve a obra de Carvalho numa nova possibilidade para o romance histórico é justamente o protagonista dessa jornada. Em O rastro do Jaguar, é essa criança guarani o guia e herói do romance.

Assim como em Um defeito de cor (2006), publicado por Ana Maria Gonçalves três anos antes, Carvalho subverte o romance histórico tradicional ao trazer para o primeiro plano não uma personalidade consagrada pelos livros de História, mas um personagem que até então não seria (e não fora) biografado, possibilitando novos olhares sobre o passado e a formação do Brasil. A partir dos elementos biográficos mínimos extraídos da obra de Saint-Hilaire, Carvalho apresenta Pierre, músico da ópera de Paris, egresso do exército de Napoleão III, que traz as feições de um outro povo, mas que desconhece a sua origem, tendo sido entregue ainda criança a uma família de militares e sem quaisquer informações sobre o seu passado.

Ao se envolver no tumulto da estreia de uma ópera em Paris, Pierre acaba tendo contato com seu “irmão” Firmiano e concebe a possibilidade de visitar o Brasil para encontrar o seu povo de origem. Para tanto, leva consigo seu amigo Pereira, jornalista luso-francês que aproveita a oportunidade para se tornar correspondente do conflito que se iniciava no Cone Sul.

O narrador, ao resgatar essa história décadas após os eventos, reflete: “relendo este relato, percebi que me desviei um pouco de meu propósito inicial; pretendia escrever uma reportagem, ou algo assim; acabei enveredando por uma espécie de diário pessoal”. A linguagem está a serviço da história que se conta, privilegiando a narração objetiva dos fatos e eventos. A origem jornalística do autor e do narrador Pereira transpiram no estilo conciso empregado no texto.

Ao conceder a narração do texto a um personagem estrangeiro, francês de mãe portuguesa realojado no Brasil, ele mesmo um sem lugar, Carvalho escapa à armadilha de tentar reproduzir o espírito e a voz do protagonista indígena. Espírito e voz dessa população calados no século XIX e que só podem ser reconstruídos na fabulação memorialista de seu amigo décadas passadas: “A fala de Pierre não era exatamente essa que eu uso para descrever suas ideias e seu entusiasmo, capazes de nos confundir. Além disso, escrever como eu escrevo é minha alegria; o que importa agora não são as exatas palavras ditas num passado que se perde na minha memória, mas os fatos que vieram, aos poucos, construindo esta história que eu preciso narrar”. Pereira, o narrador, sente um dever de memória que se faz notar como a missão de todo o romance.

O rastro do Jaguar é, ao mesmo tempo, uma crônica de viagem ao estilo dos naturalistas, ao percorrer o Brasil do século XIX, atravessando diferentes realidades geográficas e sociais, e também um romance de guerra, apresentando de forma factual eventos, batalhas e perdas do maior conflito já ocorrido no continente. Contudo, mais que isso, o romance é uma reflexão etnográfica, ao tentar deslindar a situação das populações indígenas nas zonas ocupadas do território brasileiro na segunda metade do século XIX, então já profundamente dizimadas e despojadas de terra e dignidade.

A dispersão pelo sertão baiano dos indígenas destituídos de tudo, o conflito de resistência dos botocudos no Vale do Jequitinhonha e o processo de assimilação dos guaranis no sul do país propiciam a apresentação de distintas cosmogonias e possibilidades de convivência, perdidas no genocídio que construiu a identidade nacional. Ao longo de suas 570 páginas, o texto traz uma abundância de elementos históricos e culturais organicamente entremeados à narrativa, propiciando intertextos que vão da ópera wagneriana à estatuária do barroco Aleijadinho. Personagens históricos como Gonçalves Dias, o líder indígena Manhá-Oé e o Marquês de Caxias se encontram com os protagonistas do romance, bem como uma série de personagens fictícios que permitem construir um panorama multifacetado do país, composto de estrangeiros, colonos, religiosos, ricos, pobres e escravizados. O cruzamento com diferentes perspectivas sociais ao longo do périplo de Pierre pelo país complexifica sua busca na compreensão do que significa ter uma identidade e pertencer a um povo.

A identidade de Pierre se consolida por meio da desconstrução. De oficial do exército e músico profissional, ele se torna líder profetizado do povo guarani, que consegue se encontrar após grandes percalços e pouca hesitação. Pierre se vê obrigado a assumir o manto do Jaguar, a que se refere o título, aquele que conduziria o povo adornado a yuy mara ei, uma terra sem males. Carvalho urde uma trama complexa e bastante substantiva, em que o dever de memória pessoal do narrador transborda para um dever coletivo da nação.

No confronto com a realidade de um passado sem esperança, o romance deixa ao leitor a possibilidade do caminho: “não importa o destino; o que importa é partir. A busca da Terra Sem Males se basta; não é preciso encontrá-la”. A ficção em O rastro do Jaguar permite um espaço possível de memória histórica, tantas vezes ignorada, de um povo indígena que não pôde existir, de uma terra sem males que não se concretizou na construção do Brasil.

Para saber mais

ALMEIDA, Ana Maria de Gouveia (2016). A viagem da personagem Pierre Saint’Hilaire em O rastro do Jaguar, de Murilo Carvalho. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. Disponível em: https://locus.ufv.br//handle/123456789/11672. Acesso em: 29 jun. 2024.

CARVALHO, Cíntia Paula Andrade de (2011). A narrativa híbrida de O rastro do Jaguar: a representação dos índios da América do Sul revisitada no romance histórico contemporâneo. In: XII CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC CENTRO, CENTROS – ÉTICA, ESTÉTICA, 18 a 22 de jul. 2011, Universidade Federal do Paraná – Curitiba, Brasil. Disponível em: https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0946-1.pdf. Acesso em: 29 jun. 2024.

DIAS, Gonçalves (1998). Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

OLIVIERI-GODET, Rita (2010). Histórias de índios entre assimilação e resistência: O rastro do Jaguar. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 36, p. 175-189. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9717. Acesso em: 29 jun. 2024.

SAINT’HILAIRE, Auguste de (2002). Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal.

Iconografia

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Como citar:

MACEDO, Pedro Ivo Rocha de.
O rastro do Jaguar.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

07 fev. 2025.

Disponível em:

3513.

Acessado em:

19 maio. 2025.