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O que ela sussurra

JAFFE, Noemi. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Mariana Moura
Ilustração: Léo Tavares

Tomar para si a tarefa de sussurrar poemas por anos a fio para que não caiam no esquecimento é o mote de O que ela sussurra. Em seu oitavo romance, Noemi Jaffe (São Paulo, SP, 1962) se apropria, como recurso ficcional, da voz de uma figura que de fato existiu: Nadejda Mandelstam, esposa do aclamado poeta russo Óssip Mandelstam, que foi perseguido e preso após declamar um poema em que satirizava Stálin. Posto em liberdade, o poeta viveu anos difíceis em exílio com a companheira, até ser capturado pelo regime stalinista e enviado a um campo de trabalhos forçados, onde morreu no fim da década de 1930.

Na esteira de Boca do inferno (Companhia das Letras, 1989), em que Ana Miranda transforma em personagens as figuras históricas de Gregório de Mattos e Padre Antônio Vieira, Noemi Jaffe elege como narradora uma personalidade real, cujo nome coincidentemente significa “esperança”, para falar do silencioso poder da memória como forma de resistência a um embrutecedor regime totalitário. Fora da ficção, Nadejda escreveu duas obras memorialísticas, que serviram de base, assim como a própria obra de Óssip e livros sobre aquele período histórico, para o extenso trabalho de pesquisa que Jaffe desenvolveu para a construção do romance, conforme a autora afirma em entrevista (Jaffe, 2021).

À semelhança de Sofia Tolstói, que copiava as grandes obras que o marido viria a publicar, Nadejda escrevia os poemas que Óssip ditava. Esses manuscritos, no entanto, foram destruídos pela censura do regime. Após a morte do poeta, ainda se recordando das palavras que havia copiado, ela passou a sussurrar os mais de 300 poemas do marido ao longo de 25 anos até que eles pudessem ser publicados, depois do fim do stalinismo.

Para Nadejda, manter vivas as palavras de Óssip era também uma forma de se manter viva, como se a preservação da memória fosse também a preservação da própria vida de quem carrega essa memória: “Os poemas que memorizo mas que parecem também me memorizar, como se eu só pudesse existir através deles”. Não há, contudo, nenhum romantismo nisso: “Sussurrar teus poemas não é uma missão, nem sou uma heroína”, e depois completa: “Faço o que faço pelos teus poemas, como uma causa concreta, de papel e palavras”.

A memória, a história, o luto, a reflexão sobre a linguagem são temas que perpassam toda a obra de Noemi Jaffe. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), a escritora e crítica literária está à frente da Escrevedeira, onde dá aulas de escrita criativa, assim como na Casa do Saber e no curso de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.

Além de alguns livros de não ficção, Jaffe tem uma extensa obra literária, que inclui O que os cegos estão sonhando? (Ed. 34, 2012); A verdadeira história do alfabeto (Companhia das Letras, 2012), laureado com o Prêmio Brasília de Literatura de 2014; Írisz: as orquídeas (Companhia das Letras, 2015); O livro dos começos (Cosac Naify, 2016); Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras, 2017) e Lili: novela de um luto (Companhia das Letras, 2021).

O romance em questão se inicia com uma introdução mais reflexiva, em que a narração em primeira pessoa tem Óssip como interlocutor, à guisa de “cartas desordenadas”, como define Nadejda. Ela continua como narradora dos 16 capítulos numerados que se seguem, e o livro se conclui com um último capítulo, também numerado, mas que ganha outra voz narrativa, também feminina. Neles, o leitor acompanha a história de resistência do casal, desde a primeira prisão de Óssip, passando pelo exílio e pela segunda prisão, que culmina em sua morte no campo de trabalhos forçados, até a jornada de Nadejda como sobrevivente durante os anos rígidos do stalinismo e também mais tarde.

Sem grande apego à linearidade do tempo narrativo ou aos fatos concretos, marcas de um romance histórico ou biográfico clássico, Jaffe dá mais importância à experiência e aos afetos da vida sob o totalitarismo na perspectiva de seus opositores, que se tornam “duros como o diabo”. A pobreza, o exílio, a paranoia, o cansaço, a humilhação, o desespero, a solidariedade, a tentação de ser cooptado pelo regime em troca do poder conquistado pela obediência são alguns dos temas sobre os quais Nadejda se debruça como pretexto para refletir sobre a memória, o tempo, a linguagem, o papel da arte e dos intelectuais diante das consequências de uma revolução.

A importância da comunidade é um aspecto marcante do enredo. A resistência silenciosa não é uma prerrogativa apenas de Nadejda: “A Rússia inteira sussurra. Mulheres sussurram poemas e cartas; velhos sussurram provérbios antigos e canções; trabalhadores do campo entoam rezas secretas; ex-espiões arrependidos murmuram pedidos de perdão”.  É também pelo apoio da comunidade que o casal sobrevive ao exílio e que Nadejda encontra forças para reconstruir a vida e trabalhar após a morte do marido. É durante o expediente em uma fábrica que a narradora se dedica ao seu trabalho mais importante, o de sussurrar os poemas de Óssip e carregá-los através do tempo.

O sussurro é, sobretudo, uma estratégia das mulheres que sobrevivem e preservam a memória de seus maridos perseguidos e mortos: “Nós mesmas não nos conhecemos, mas nossos sussurros sim, eles se cruzam todas as noites, cumprimentam-se e às vezes se confundem, […] formando livros feitos de ar e poeira, espalham e criam ligações secretas entre as mulheres que estão salvando a Rússia do esquecimento”.

Como mulher, Nadejda tem consciência de seu papel subalterno e o descreve com sensatez e sem vitimismo. Antes de conhecer Óssip, ela estudava para se tornar pintora e, em certo ponto, afirma que poderia ter tido sucesso como artista se não fosse por ele. Embora se vinculasse a uma geração que abominava o casamento, já uma influência do feminismo, Nadejda optou por se submeter à autoridade do marido não “como um cabritinho medroso”, mas por acreditar na importância que ele teria como poeta.

Essa decisão a levou a dedicar sua vida a Óssip mesmo depois de sua morte, como repositório vivo de seus poemas. Nadejda sustenta com lucidez a escolha de viver um caminho duro, repleto de privações, e assim reflete: “não vou me dedicar a julgar minhas atitudes, se estou em paz com o que fiz. Não ligo para saber se estou certa […]. Só sei que, vivendo perseguidos e Óssip sendo quem era, foi isso que pude fazer e, naquele momento, poder fazer e querer fazer era a mesma coisa. Se eu pude, era também o que queria”.

Apesar de sua submissão voluntária, Nadejda carrega um imenso poder. Não só porque foi por força de sua memória que os poemas de Óssip se preservaram e puderam ser publicados posteriormente, mas também porque é ela quem pode falar no romance. Um interessante recurso narrativo é que, por mais importante que Óssip viesse a se tornar na literatura russa, suas palavras são reduzidas a uma espécie de epígrafe que separa alguns dos capítulos, enquanto a voz que realmente importa é a dela. É ela que sobrevive para contar a história, embora não se vanglorie dessa posição: “Sou, agora, a mesma de sempre: Nadejda Mandelstam, ninguém”.

Embora o enredo se desenrole em um tempo e um espaço distantes do Brasil contemporâneo, a Rússia stalinista, não se pode dizer que os temas abordados passem totalmente ao largo da experiência dos leitores brasileiros. Para além dos anos de chumbo que marcaram de forma tão profunda o Brasil do século XX, não é de se estranhar a escolha de Jaffe por publicar um romance que fale da vida cotidiana durante um regime autocrático, que censurava expressões artísticas e perseguia opositores políticos, justamente no início de 2020, o segundo ano de um governo que flertava com o autoritarismo e cujas repercussões em termos de mentalidade e cultura ainda se fazem presentes no momento da escrita desta resenha.

Os sussurros de Nadejda não são apenas um testemunho do poder das palavras − mesmo sem alarde, pois “às vezes o sussurro pode ser mais alto que o grito” − como totem de resiliência à opressão. São também um lembrete, àqueles que não estão submetidos ao autoritarismo, da máxima, tantas vezes repetida quando se fala da ditadura militar brasileira, de que é preciso recordar para não esquecer, para que os horrores nunca mais se repitam. É nesse sentido que a comovente história da viúva de um poeta russo vítima do Grande Expurgo ganha relevância para os leitores do Brasil contemporâneo.

Para saber mais

JAFFE, Noemi (2021). “Feminismo não é um único jeito de existir, de se afirmar”, diz Noemi Jaffe. Entrevista a Julia Fatio Vasconcelos, Renata Conde e Bruno Conde. Russia Beyond. Disponível em: https://br.rbth.com/cultura/84898-feminismo-nao-e-um-unico-jeito-noemi-jaffe. Acesso em: 12 jun. 2024.

LÁZARO DA SILVA, Paula Márcia; RABELO, Ana Paula (2024). Nadejdas, Vânias e Marias: entrelaçando memórias, canções e poesias. Revista de Literatura, História e Memória,  v. 19, n. 34, p. 229-241. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/30852. Acesso em: 6 jun. 2024.

LEITE, Ilka Boaventura (2020). Pequeno ensaio sobre o cansaço. Boletim Anpocs, n. 57. Disponível em: https://anpocs.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Boletim_n57.pdf. Acesso em: 6 jun. 2024.

MALZYNER, Mirian (2024). Um sussurro de esperança: literatura e psicanálise em diálogo. Berggasse, v. 13, n. 2, 31-40. Disponível em: https://berggasse19.emnuvens.com.br/revista/article/view/105/84. Acesso em: 6 jun. 2024.

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Como citar:

MOURA, Mariana.
O que ela sussurra.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

07 fev. 2025.

Disponível em:

3502.

Acessado em:

19 maio. 2025.