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O quatrilho

POZENATO, José Clemente. O quatrilho. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

Eugenia Zerbini
Ilustração: Dona Dora

O assunto de O quatrilho é a ambientação nas colônias de italianos na primeira década do século XX, no estado do Rio Grande do Sul, tema pouco explorado na literatura brasileira até a data da sua publicação, em 1985.

Ao longo dos séculos XIX e XX, o estado mais ao sul do Brasil projetou-se nas letras nacionais por meio de sua literatura regional focalizada nos pampas e na figura do gaúcho. São exemplos disso as obras de Simões Lopes Neto (Pelotas, RS, 1865-1916) e de Erico Verissimo (Cruz Alta, RS, 1905 – Porto Alegre, RS, 1975). Todavia, a importância dos imigrantes italianos e sua contribuição na formação da população meridional foram retratadas nas letras regionais, entrando para a esfera ficcional tardiamente por meio do romance de José Clemente Pozenato (São Francisco de Paula, RS, 1938 – Caxias do Sul, RS, 2024).

Segundo dados do IBGE, 42% dos imigrantes que aportaram no país entre 1870 e 1920 eram provenientes da Itália, correspondendo a um milhão e quatrocentos mil italianos. A maioria fixou-se nas regiões Sudeste e Sul do país. Se no Sudeste o objetivo primordial foi a substituição da mão de obra escravizada nas plantações de café, no Sul foi diferente. Considerando-se que a pecuária, a maior riqueza da região, dispensava a numerosa mão de obra exigida pela cafeicultura, os imigrantes italianos chegaram para povoar imensos espaços vazios, além de dar corpo às ideias higienistas, então vigentes, de branquear a população. Levas de italianos empobrecidos em decorrência das guerras pela unificação da Itália foram levadas a deixar suas casas e rumar para a América. O governo brasileiro financiou a vinda de muitos, às vezes adiantando passagens, outras subsidiando os lotes de terra (que se tornariam as colônias, termo largamente empregado em O quatrilho).

A ficção de O quatrilho se desenrola na Serra Gaúcha, área de Caxias. Os imigrantes que se fixaram nessas colônias provinham das regiões do Vêneto e da Lombardia, nordeste e norte da Itália, porções da península itálica ocupada pelos austríacos por quase um século. Os personagens, em seus diálogos, mesclam ao português o “talian”, língua criada por esses imigrantes, com base no dialeto vêneto.

Pozenato, além de poeta, cronista, escritor e tradutor, também é professor universitário. Foi em uma pesquisa universitária sobre a formação da literatura meridional que se deu conta da falta do grande romance sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul. Idealizou, assim, uma trilogia, composta por O quatrilho, seguido por A cocanha (Porto Alegre: Mercado Aberto, 2000) e finalizado por A Babilônia (Porto Alegre: Maneco, 2006). Por ter à disposição subsídios históricos sobre o começo do século XX, o autor iniciou seu painel pela segunda parte da saga, qual seja, O quatrilho, que se passa por volta de 1910 e é protagonizado pela primeira geração daqueles que imigraram. Os imigrantes propriamente ditos são tratados em A cocanha, que, embora seja a parte inicial do tríptico, foi publicado 15 anos depois e se passa em 1883.

O quatrilho é a intersecção entre literatura e história. Pozenato lança um olhar dinâmico ao romance histórico, ficcionalizando vidas comuns contra o pano de fundo da história. O título do romance vem do nome de um jogo de cartas popular nas comunidades italianas do Rio Grande do Sul. A epígrafe do romance é uma citação de uma das falas do padre Giobbe, personagem do livro, e faz referência ao jogo, adiantando o núcleo da trama do romance: “o quatrilho é um jogo demoníaco. Ele faz viver a tentação da infidelidade. Em cada mão de carta é procurado um novo parceiro. Talvez esteja nisso o seu grande fascínio. O desastre acontece quando esse fascínio passa do jogo para a vida real”.

Ângelo Gardone, filho mais velho do italiano Aurélio Gardone, casa-se com a bela Teresa Besana, casamento acertado entre as famílias e oficiado pelo padre Giobbe. Seguindo a tradição trazida da Itália, o casal vai morar na casa do sogro, onde Teresa ajuda nos serviços da casa e é mais um braço para o trato da terra. Teresa, sensível e sonhadora, tem uma prima, prática, pés fincados no real, Pierina. Ela é casada com Massimo Boschini, viajado e estudado, muito elegante para o meio, com polainas alvas, colarinho engomado e gravata de seda. A atração entre Teresa e Massimo é recíproca, à primeira vista e revelada já no início da obra. Ângelo tem um irmão mais novo e Teresa arranja o casamento dele com outra moça da colônia. De acordo com a tradição, Ângelo, o filho mais velho, tem que sair da casa paterna e providenciar uma colônia para si, para que o mais novo assuma o posto junto ao pai.

Ângelo, sem dinheiro para comprar as terras desejadas, propõe sociedade a Massimo, que concorda pela possibilidade de viver junto a Teresa. Os dois casais partem para a nova propriedade. Ângelo revela-se um ambicioso homem de negócios, ganhando às custas dos próprios conterrâneos, o que Massimo, seu sócio, desaprova. Pierina compreende e admira a ambição de Ângelo. Teresa e Massimo cedem à atração mútua.

Desde o princípio, a epígrafe deixa clara a troca de parceiros. Todavia, a originalidade fica por conta do detalhamento da história não do casal que foge, mas daquele que fica. Apesar do constrangimento social, passada a turbulência inicial, o par que permaneceu passa a ter uma visão de mundo conjunta, atingindo, talvez, até o amor.

A leitura flui, instruindo o leitor sobre as tradições que os italianos trouxeram para o sul do país, tanto da culinária como da religiosidade arraigada, sem mencionar a organização patriarcal familiar, o que não impede, entretanto, que Teresa e Pierina sejam as protagonistas de muitas das ações. Padre Giobbe, em várias passagens, lança um olhar arguto sobre essa comunidade, ao mesmo tempo crítico, mas também de compaixão. Do ponto de vista econômico, o romance retrata um momento de inflexão entre o meio fundamentalmente agrário e a formação de capital necessário à industrialização.

Entre os três livros que compõem o tríptico italiano de Pozenato, O quatrilho é o de maior destaque. Dez anos após publicado, O quatrilho foi adaptado para o cinema. Concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996. Em 2008, deu origem à ópera de mesmo nome, composta pelo músico erudito Vagner Cunha (Porto Alegre, RS, 1973), com libreto do próprio autor, José Clemente Pozenato.

Em 2021, para comemorar os 35 anos da publicação, o autor relançou O quatrilho, adicionando-lhe um capítulo extra ao final. Nele, dá notícias sobre o que aconteceu com o casal que partiu, em uma espécie de ponte para o que se sucede em A Babilônia, que suscita, entre outros pontos, as restrições legais impostas aos italianos, em uma São Paulo dos anos 1940, com o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial.

A leitura de O quatrilho, décadas após sua publicação, diante da nova onda de migração mundial, é pertinente e oportuna. A pobreza da Itália recém-unificada e a opção política de parte dos imigrados (não poucos eram sindicalizados ou anarquistas) impulsionaram a emigração italiana nos séculos XIX e XX. No século XXI, guerras, perseguições étnico-religiosas e governos abusivos continuam a jogar milhares de seres humanos para fora de seus países natais. A previsão é que o fluxo migratório cresça, em razão dos desastres ambientais. Se antes, como foi o caso do Brasil, a vinda de imigrantes italianos, japoneses e alemães foi até fomentada pelo governo, no mundo atual o que se vê é que nem sempre os que vêm de fora são acolhidos como deveriam, sendo submetidos a muros e desafios.

Para saber mais

ALVES, Marcio Miranda (2019). O imigrante italiano na narrativa ficcional do Rio Grande do Sul. Litterata, Ilhéus, v. 9, n. 1. Disponível em: https://periodicos.uesc.br/index.php/litterata/issue/view/160/245. Acesso em: 9 jun. 2024.

GODOY, Ana Boff de (2002). O eu e o outro na terra da Cocanha: o jogo da identidade italiana em solo gaúcho. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/143232. Acesso em: 9 jun. 2024.

POZENATO, José Clemente. Memórias. UCSPlay, 14 fev. 2022. Disponível em: https://ucsplay.ucs.br/video/memorias-jose-clemente-pozenato/. Acesso em: 26 mai. 2024.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert (2001). O quatrilho: uma leitura histórica possível. Letras de hoje, v. 36, n. 2. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/fale/article/view/14384. Acesso em 26 mai. 2024.

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Como citar:

ZERBINI, Eugenia.
O quatrilho.

Praça Clóvis: 

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crítico 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

06 fev. 2025.

Disponível em:

3500.

Acessado em:

19 maio. 2025.