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O caso Morel

FONSECA, Rubem. O caso Morel. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.

Mariana Marise Fernandes Leite
Ilustração: Léo Tavares

O caso Morel, publicado em 1973, é o primeiro romance de Rubem Fonseca (Juiz de Fora, MG, 1925 – Rio de Janeiro, RJ, 2020). A obra, embora pareça dividir as opiniões da crítica quanto ao desempenho literário do autor, conhecido pela escrita contística, no gênero romance revela o que, na trajetória de Fonseca, torna-se uma realidade amplamente reconhecida: na escrita, o autor apresenta muitas facetas.

A obra de Fonseca, além de contos e romances, inclui também outros gêneros, como ensaios e roteiros. Sua capacidade de desempenhar papéis em diferentes campos vai além da escrita. O autor, nascido em Juiz de Fora e residente no Rio de Janeiro desde a infância, além de escritor, formou-se em Direito, foi professor universitário e comissário de polícia. Durante o período em que exerceu essa última profissão, teve também a oportunidade de estudar Administração.

Hoje conhecido como um dos mais importantes escritores da literatura brasileira contemporânea, Fonseca detalha em seus textos não apenas o cotidiano das grandes cidades brasileiras e os personagens comuns a esses espaços, mas também a violência e a marginalidade que permeiam aqueles que habitam as metrópoles do país. Seus personagens são ladrões, cobradores, escritores, comissários, executivos, socialites, artistas, vendedores – todos eles atravessados por certo cinismo e algum comportamento ou situação violenta, como detalha Regina Dalcastagnè (2012) em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Não sem deixar de notar, como Dalcastagnè, que há uma sutil diferença na forma como são retratados os personagens das diferentes classes sociais, atravessados por violência nos textos do autor – detalhe esse que deve ser observado e refletido. A realidade é que a escrita única de Fonseca e sua abordagem inconfundível da realidade do cotidiano dos espaços urbanos brasileiros provocam um misto de incômodo e curiosidade, que faz com que suas histórias sejam desbravadas, independentemente de sua extensão, até o fim.

O caso Morel foi publicado após o autor já ter alcançado certo reconhecimento pela escrita de seus contos. No ano de publicação do romance, 1973, a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, estava em sua pior fase, marcada pelo AI-5, que havia sido promulgado alguns anos antes. Apesar do funcionamento da censura de forma severa, conforme detalha Fernando dos Santos Andrade (2000) em sua dissertação de mestrado O caso Morel: investigações (im)possíveis, o livro não foi censurado – sorte que Feliz ano novo, livro de contos publicado apenas dois anos mais tarde, não teve. Esta obra, alvo dos censores com alegações que muito se aplicariam também ao romance de 1973, foi tachada, entre outras coisas, de apologia ao crime, algo que não era atribuído a O caso Morel.

Para além de sua publicação sem a interferência da censura, a obra não alcança consenso entre crítica e público quanto à qualidade da escrita do autor na transição do conto para o romance, nem em relação ao fôlego narrativo necessário para a extensão do formato, como aponta Sérgio Augusto em “Atrás das grades”, posfácio presente na edição da editora Nova Fronteira (2023). No entanto, a obra parece carregar em si o cerne da temática e o estilo inconfundível de Fonseca, características igualmente presentes em seus contos.

O caso Morel conta a história de Paulo Moraes, um artista que se autodenomina Paul Morel e que, no presente da narrativa, está preso pelo assassinato de Heloísa, uma artista de vida boêmia e pertencente a uma família importante. A jovem foi encontrada morta em uma praia do Rio de Janeiro, em um crime marcado por visíveis traços de brutalidade. Morel foi identificado como principal suspeito após a polícia ter acesso ao diário da moça, que continha relatos minuciosos sobre suas relações sexuais com o artista, nas quais se revelava o fetiche dela pela violência e a disposição de Morel em realizar esses desejos.

A narrativa tem início com o primeiro de vários encontros entre Morel e Vilela, um ex-policial que se torna intermediário do artista para que sua história seja contada em um processo de escrita. Ao longo da narrativa, o leitor percebe que Morel, além de artista, é também um boêmio. Ele havia, gradualmente, progredido de sua condição inicial como adolescente vendedor de mercadorias, proveniente de uma família simples, para a posição de artista relativamente conhecido, convidado a contribuir em obras importantes e a participar de eventos sociais de destaque. Além disso, pouco antes de sua prisão, após uma temporada de cuidados paliativos em um hospital, Morel perdera o pai.

Apesar da excentricidade e dos costumes peculiares de que é dotado, Morel intriga Vilela pela incompatibilidade de seu perfil, que tende à intelectualidade e ao diálogo, com a brutalidade do assassinato pelo qual está preso, o que conduz Vilela, e também o leitor, a uma vertiginosa investigação. A cada encontro, fortalece-se uma relação de troca a partir da qual uma fração da história de Morel é revelada, instigando a curiosidade de Vilela, do leitor e de outros personagens atraídos pela história. Configura-se com isso uma trajetória que, conforme se pode deduzir da leitura que Andrade (2000) faz da obra de Rubem Fonseca, muito aproximaria o leitor de narrativas como as de Um corpo que cai e Janela indiscreta, contadas no cinema sob a direção de Alfred Hitchcock.

Pouco a pouco, descobre-se que Morel, o personagem descrito por Paul Morel, conheceu quatro mulheres e decidiu, influenciado por seu estilo de vida pouco tradicional, constituir com elas um modelo peculiar de família. As mulheres são descritas minuciosamente na história narrada por Morel sobre seu homônimo, permitindo que Vilela, o intermediário e leitor da ficção — e, com ele, o leitor de Fonseca — construa perfis bastante nítidos de indivíduos pertencentes a classes sociais e personalidades distintas, mas com um denominador comum: o artista.

Três dessas quatro mulheres, juntamente com o filho de uma delas, formariam com Morel uma família, morando na mesma casa e compartilhando histórias, acontecimentos e encontros sexuais. A quarta, uma dama da sociedade, faria visitas a eles eventualmente.

Entre as companheiras descritas por Morel a Vilela está Joana, uma artista boêmia de família influente, que mantinha com Morel um relacionamento amoroso anterior, permeado por um fetiche sexual ligado à violência — fetiche esse descrito em detalhes em seus diários. Vilela — e o leitor — logo perceberia que qualquer semelhança não era mera coincidência.

Após algum tempo de convivência no acordo familiar, Joana se cansaria da calmaria trazida pelo arranjo. Insatisfeita, cobraria do artista um retorno aos tempos mais intensos. Essa cobrança resultaria em um passeio da dupla, que culmina em uma praia, onde ocorre um tórrido encontro sexual. Após esse encontro, Morel, o homônimo, deixaria o local e se despediria de Joana. Horas depois, Joana seria encontrada morta na praia, e o artista — o personagem — seria preso assim que as investigações fossem iniciadas.

Seria Joana, afinal, Heloísa? Teria essa narrativa se limitado apenas a uma descrição dos fatos? Quem seriam as outras mulheres mencionadas? Onde Vilela poderia encontrá-las em sua realidade? Teria Morel, o autor do texto, de fato assassinado sua amante? O que realmente aconteceu naquele percurso?

Na construção engenhosa da narrativa de Rubem Fonseca, essas dúvidas vão se materializando aos poucos, tanto para o leitor atento quanto para Vilela. O ex-policial, que atua como intermediário e investigador, conduz para aquele que o lê a necessária busca por respostas. Relatórios da polícia, trechos de diários, depoimentos, nomes, novos personagens: tudo vai sendo minuciosamente descoberto por Vilela, que parece empenhado em algo muito maior do que apenas publicar a obra de Morel — há nele um desejo evidente de provar a inocência do artista.

Com Vilela e Morel, Rubem Fonseca reconstitui o passado do artista, explorando detalhes minuciosos sobre cada um dos envolvidos no assassinato, reconstruindo, com precisão impressionante, as cenas do crime — algo que nem mesmo a investigação policial sobre a morte de Heloísa parece ter sido capaz de realizar.

Como em muitas outras obras de Fonseca, a narrativa é permeada por retratos do cotidiano, situações de estranhamento e um gosto peculiar pela violência, que atravessa a personalidade de indivíduos aparentemente comuns, aqueles que passariam despercebidos em uma investigação. A obra também suscita questionamentos inquietantes: qual é, afinal, a face daquele que seria responsável pela violência que cerca a sociedade?

Heloísa, Joana, Moraes e Morel. São histórias entrelaçadas que Vilela — e, com ele, o leitor de O caso Morel — propõe-se a desvendar.

Para saber mais

ANDRADE, Fernando dos Santos (2000). O caso Morel: investigações (im)possíveis. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-29122022-121930/publico/2000_FernandoDosSantosAndrade.pdf. Acesso em: 16 jun. 2024.

COUTO, José Geraldo. Hitchcock e seus prodígios. Blog Instituto Moreira Sales. [S. l.], 2 ago. 2013. Disponível em: https://blogdoims.com.br/hitchcock-e-seus-prodigios/. Acesso em: 16 jun. 2024.

DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte; Rio de Janeiro: Editora da UERJ.

INSTITUTO MOREIRA SALES. Um corpo que cai. Vertigo. Sinopse do filme de Alfred Hitchcock. Disponível em: https://ims.com.br/filme/um-corpo-que-cai/. Acesso em: 16 jun. 2024.

Iconografia

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Como citar:

LEITE, Mariana Marise Fernandes.
O caso Morel.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

06 fev. 2025.

Disponível em:

3495.

Acessado em:

19 maio. 2025.