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O alquimista

COELHO, Paulo. O alquimista. Rio de Janeiro: Eco, 1988.

Ana Rüsche
Ilustração: Léo Tavares

O alquimista é a obra marcante da carreira de Paulo Coelho (Rio de Janeiro, RJ, 1947), com mais de 85 milhões de exemplares vendidos, em 170 países. Entre seus leitores entusiastas estão Barack Obama, Malala Yousafzai e Umberto Eco. Esse livro, de 1988, que teria tudo para destacar a literatura brasileira no cenário internacional, terminou tendo uma outra história. Marco da cultura popular, seguiu sendo uma sombra na produção literária, mas talvez forneça algumas chaves de compreensão tanto da cultura brasileira na redemocratização, quanto de questões literárias para o século XXI.

O alquimista guarda a aspiração de um romance de formação, com uma índole tanto educativa quanto moralizante, narrando a história do pastor Santiago da juventude à idade adulta. O enredo é apresentado em ordem cronológica em um tempo fora da História (pode-se localizá-lo no final do século XIX). No início, o jovem protagonista parecia feliz com suas ovelhas na Andaluzia, mas foi atormentado por um sonho recorrente: encontrar um tesouro oculto perto das pirâmides do Egito. Depois de visitar uma cigana e ter um encontro inesperado com o mítico Rei de Salém, o pastor decidiu cruzar o Mediterrâneo.

O enredo d’O Alquimista reforça a clássica profecia autorrealizável, uma prolepse encontrada em narrativas como Bagavadguitá, do poema épico Mahabharata; Édipo Rei, de Sófocles; ou na folclórica fábula O mascate de Swaffham. O mote de Coelho é retirado do episódio “o homem arruinado que se tornou rico novamente por meio de um sonho”, de As mil e uma noites.

Essa narrativa foi registrada por Richard Burton (The Book of the Thousand Nights and a Night, vol. 3, 1894), por Jorge Luis Borges (Historia universal de la infamia, 1935) e até por Clarice Lispector (“História dos dois que sonharam”, Jornal do Brasil, 27/12/1969), com alterações entre localidades de partida e chegada (em Burton, Bagdá e Cairo; em Borges e Clarice, Cairo e Isfahan; em Coelho, Andaluzia e Egito). Nas três versões, um homem sonha com um tesouro oculto em uma cidade distante. Ao viajar, passa por infortúnios diversos. Ao chegar no local do tesouro, nada encontra, mas ao contar seu sonho para um guarda, recebe uma resposta enigmática: o guarda havia sonhado justamente com um tesouro oculto na terra natal do viajante. Assim, o viajante retorna e encontra seu tesouro na própria casa. O antigo enredo possui um dispositivo interessante: a profecia é completa mediante três atos alegóricos — viajar, escutar o outro e retornar.

A linguagem d’O alquimista não apresenta rodeios, com poucas inversões na ordem direta da frase, geralmente curta: “O rapaz chamava-se Santiago”. O vocabulário busca uma expressão didática, direta e inequívoca: “Os pipoqueiros têm uma casa, enquanto os pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros a casá-las com pastores”. Com cenários bucólicos e orientalistas, o espaço do romance segue o vento do Levante, cruzando o sul da Espanha e o deserto do Saara, entre barcos, bazares e caravanas.

Explorando uma espiritualidade ecumênica, capaz de acomodar a fé cristã e a muçulmana na busca alquímica, o livro salienta o poder do credo e o maravilhoso alia-se a um imaginário da Nova Era, uma nova espiritualidade holística sem mediação de uma instituição centralizada, a exemplo de uma igreja. Uma crença útil em um período neoliberal, a “Lenda Pessoal”, resumida na difundida frase: “quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo”.

A historiadora Maria Rita Guercio confirma as referências usadas com propriedade por Coelho: desde o renascentista Cornelius Agrippa à alquimia no mundo moderno, quando a busca pela transformação da psique humana oferecia uma nova perspectiva; a exemplo da obra de Carl Gustav Jung, também citado no romance. A historiadora ainda frisa as influências evidentes da Nova Era ao conceder “grande ênfase para a missão do indivíduo no mundo”. No prólogo, presumidamente não ficcional, Coelho narra os ensinamentos recebidos de forma telepática por seu mestre, sendo a leitura laica do romance talvez um dos maiores desafios para a crítica.

A biografia do autor desenha o espírito de cada década: do movimento hippie à repressão pela Ditadura, do início da internet às redes sociais. Filho de um engenheiro e uma dona de casa, nos anos de 1960, traindo os ideais familiares, foi trabalhar como dramaturgo e educador, tendo lançado O teatro na educação, pela Forense-Universitária (1973). Em plena Ditadura, mergulhou no movimento hippie e conheceu seu famoso parceiro, Raul Seixas, e juntos escreveram composições marcantes da contracultura, como as faixas do álbum Gita (1974). Paulo Coelho foi preso em mais de uma ocasião e torturado, tendo buscado depois refúgio da repressão em Londres. Como letrista, assinou mais de 100 canções gravadas por diferentes artistas, como Elis Regina, Fábio Jr., Rita Lee e Vanusa.

No período da redemocratização, Coelho publicou O diário de um mago (1987) e, na sequência, O alquimista (1988) pela Eco, editora de livros distribuídos em livrarias religiosas e casas de produtos esotéricos, conforme dissertação de Cláudia Gonzaga. Logo depois, o autor leva O alquimista para a Rocco. Durante a instabilidade financeira da era Collor, com sua moral educativa e associando-se com a telenovela e a música, essa obra estabeleceu diálogo com pessoas menos visibilizadas pelo mercado livreiro, em especial, as das classes sociais fora das elites intelectuais.

Logo vieram Brida (1990) e As Valquírias (1992). A reconhecida habilidade de Coelho para unir os contatos do mundo fonográfico e da televisão traduziu-se em vendas, algo que culminou com a chegada da internet, espaço no qual chega a figurar entre as cem personalidades mundiais mais seguidas no antigo Twitter.

Esse autor, entretanto, não parecia disposto a se aproximar da crítica literária. Apesar das citações de Jorge Luis Borges e Oscar Wilde em O alquimista, constrói um discurso antiacademicista, em especial na figura do Inglês, personagem ingênuo por buscar sabedoria nos livros.

Do outro lado, a crítica literária buscou distanciar-se dos materiais com os quais Coelho lidava — ficou famosa a frase “não li e não gostei”, de Davi Arrigucci Jr. (Veja, 15/08/1998). Essa animosidade terminou na “recusa de levar em conta um objeto cultural posto liminarmente para além das fronteiras do que é propriamente um texto literário”, grifo do sociólogo Fernando Pinheiro, em seu livro O mago, o santo, a esfinge (2024). Pinheiro também salienta que as traduções não “melhoraram” o original, uma alegação falsa bastante comum. Talvez no Norte Global, com alcance maior à leitura, possuir o objeto livro tenha outra compreensão simbólica.

As pesquisas existentes geralmente trabalham com a recepção da obra, como o uso do romance em sala de aula, analisado em artigo de Maria Helena Câmara e Fernanda Busnello (2024); e a leitura do romance em uma penitenciária, dissertação de Ivan Luiz de Oliveira (2007). A análise do sociólogo Fernando Pinheiro frisa não ser saudável a interdição de não se ocupar de Paulo Coelho. Impede a compreensão mais ampla do que seja o país e seus anseios, inclusive sobre suas obras mais recentes, como Zahir (2005), O Aleph (2010) e O arqueiro (2023), que seguem sendo lidas. Esse inegável sucesso não teria contaminado a literatura brasileira de alguma maneira? Se influenciou, como o fez?

Essas perguntas desafiadoras podem frutificar num futuro. Provavelmente vão nos devolver um retrato de um país muitas vezes esquecido, maltratado por sonhos neoliberais, um espelho do qual se quer distância. Talvez não seja de todo mal um bom conselho da própria obra. Afinal, O alquimista diria que só existe uma maneira de aprender: “é através da ação”.

Para saber mais

BASTOS, Maria Helena Câmara; BUSNELLO, Fernanda (2004). O Alquimista, de Paulo Coelho. Leitura obrigatória na escola? Educação, Porto Alegre, v. 27, n. 52, p. 201-209. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/faced/article/download/379/276/1394. Acesso em: 17 jun. 2024.

GONZAGA, Cláudia Assumpção (2007). Paulo Coelho em cena: a construção do escritor pop star. Dissertação (Mestrado em Letras) − Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

GUERCIO, Maria Rita (2023). Alquimia e Magia: uma linha do tempo passando por De Occulta Philosophia de Cornelius Agrippa ao O alquimista de Paulo Coelho. Tese (Doutorado em História) − Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-27022024-210515/publico/2023_MariaRitaGuercio_VCorrig.pdf. Acesso em: 17 jun. 2024.

OLIVEIRA, Ivan Luiz de (2007). A liberdade vigiada: estudo sobre os modos de recepção da obra O alquimista, de Paulo Coelho, pelos detentos da Penitenciária Estadual de Maringá. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá. Disponível em: http://repositorio.uem.br:8080/jspui/handle/1/4024. Acesso em: 17 jun. 2024.

PINHEIRO, Fernando (2024). O mago, o santo, a esfinge. São Paulo: Todavia.

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Como citar:

RÜSCHE, Ana.
O alquimista.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

28 mar. 2025.

Disponível em:

3493.

Acessado em:

19 maio. 2025.