RUAS, Tabajara. Netto perde sua alma. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.
Ulysses Rocha Filho
Ilustração: Dona Dora
O escritor e cineasta Marcelino Tabajara Gutierrez Ruas (Uruguaiana, RS, 1942) iniciou seus estudos em arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), concluindo-os em Copenhague, na Kongelig Kunstakademi. Na Dinamarca, também cursou cinema na High School de Vejle. Exilado, viveu entre 1971 e 1981 no Uruguai, Chile, Argentina, Dinamarca, São Tomé e Príncipe e Portugal, retornando ao Brasil em 1981. Tabajara Ruas publicou seu primeiro romance, A região submersa (1978), em Portugal e na Dinamarca. No Brasil, esse romance só foi publicado anos mais tarde, em 2000. Tabajara Ruas atua também no cinema desde 1978
O romance Netto perde sua alma foi escrito em 1995 e aglutina personagens reais e ficcionais da história brasileira (especialmente do Rio Grande do Sul). Ficcionaliza a história do general Antônio de Sousa Netto (1803-1866), que lutou na Revolução Farroupilha (1835-1845) e, mais tarde, na Guerra do Paraguai (1865-1871). O romance retrata a história do general Antônio de Sousa Netto, que está à beira da morte em um hospital e de onde relembra os seus primeiros feitos. Entretanto, segundo o autor, Netto perde sua alma não é a história real de Antônio de Souza Netto, mas sim “uma ficção a seu respeito, uma invenção, um sonho – meu e de outros homens” e as notas biográficas a seu respeito são “poucas e incompletas”.
A história resgata os idos de 1800, recupera personagens e, com eles, sentimentos e conflitos que fazem parte da universalidade humana. Ruas concede uma nova vida a personagens históricos já conhecidos, como o próprio general Netto e o presidente monarquista Bento Gonçalves (um dos grandes mentores da Revolução Farroupilha), sempre em uma rígida ordem cronológica, com regressões e progressões temporais de início e desfecho bastante diferenciados, uma vez que a narrativa não se enquadra em começo, meio e fim propriamente ditos. A narrativa inicia pelo final, como um prólogo antecipado, retomando um começo in medias res. O início da narrativa é, na verdade, o final da história, o “prólogo antecipado” a que nos referimos: volta-se para o general brasileiro com o coração oprimido. É com alívio que se vê a serenidade de sua expressão. “Coloca o espelho sob suas narinas. O general Netto também não respira mais”.
Tabajara Ruas tece seu romance histórico Netto perde sua alma rompendo com a história tradicional para valorizar os acontecimentos históricos por meio da literatura ficcional. Por outro lado, essa relação entre história e literatura conduz a uma nova linguagem e a um novo estilo, no qual convivem o real e o fictício. Segundo a crítica norte-americana Linda Hutcheon (1988), “metaficções historiográficas” são obras narrativas da estética do chamado pós-modernismo que, didaticamente, rejeitam o modernismo em suas crenças na busca pela verdade absoluta e validade universal das ideias. Por sua vez, o pós-modernismo abraça a fragmentação, a incerteza e a relatividade das perspectivas. Suas características recorrentes são a intensa autorreflexividade, as referências a personagens e eventos históricos, as reflexões acerca do “fazer literário” (arte de criar), o interesse em subverter o que foi convencionado e a impossibilidade de se alcançar a história, visto que ela só nos chega através da textualidade. Hutcheon afirma que o “passado como referente não é enquadrado nem apagado”, pois “ele é incorporado e modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes”. Isso ocorre porque a paródia se encontra na história social dentro de um contexto, visto que é nele que se projeta e se constrói.
Na parte I do romance (“Corrientes, Hospital, 1 de julho de 1866”), o general está ferido, condenado à demência e à decadência, em sua estadia no hospital, causada por uma batalha na Guerra do Paraguai, e sofre alucinações com a presença da enfermeira Zubiaurre (“Netto ficou atento. O desejo passou a lenta mão macia no seu ventre. A enfermeira Zubiaurre nua, nua, branca, na banheira, e ele a esfregá-la, lentamente, lentamente”).
A parte II (“Reunião no Morro da Fortaleza, 8 de abril de 1840”) ocorre cinco anos após o início da Revolução Farroupilha; o gaúcho heroico está distante 26 anos da estadia no hospital e já se encontra na presença do preto Milonga (“O general Bento Gonçalves, presidente da nossa República, está marchando em direção ao morro da Fortaleza. […] somaremos mais de seis mil soldados, o maior exército já formado”).
A parte III (“Dorsal das Encanadas, 11 de setembro de 1836”) narra os primeiros fatos históricos, sugerindo a proclamação da república rio-grandense. A estrutura do romance evidencia e respalda os acontecimentos que impediram Netto de ser o herói que almejava, fazendo referência à citação parodística de uma “Lilliput diante do Império. Gulliver apagou um incêndio em Lilliput mijando sobre a cidade”.
Na parte IV (“Último Verão no Continente, 2 de março de 1845”), o fim da revolução e a derrota são retratados, com o preto amigo Milonga desertando e tentando matar Netto (“A guerra terminou e eu continuo escravo”).
Na parte V (“Piedra Sola, 25 de junho de 1861”), uma nova vida surge: Netto, no Paraguai, conhece sua futura esposa, enquanto uma nova guerra está prestes a começar.
Por fim, na parte VI (“Corrientes, Hospital, 1 de julho de 1866”), a narrativa retorna à cena inicial; o general entrega-se à demência e é levado à morte por seu “eu” heroico numa canoa guiada por um “Vulto” – uma alusão a Caronte. Ao sargento Caldeira resta balbuciar: “não tem importância, sargento. Essa travessia a gente deve fazer sozinho mesmo. Hasta la vista”.
Dessa forma, o início de cada parte situa a história no espaço e no tempo, enquanto os temas se conectam aos fatos históricos associados à vida do protagonista. Vale lembrar que a segmentação da obra produz efeitos épicos, na medida em que cada unidade constrói seu próprio sentido interno, episódico.
Em Netto perde sua alma, o microcosmo regional ergue sua voz ao macrocosmo universal na prosa direta, com a utilização de termos regionais (sem limitar-se ao sotaque gaúcho), abrangendo uma ficção histórica sobre os tempos ali retratados de forma bastante moderna.
Para saber mais
HUTCHEON, Linda (1991). Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago.
LÄMMERT, Eberhard (1995). “História é um esboço”: a nova autenticidade narrativa na historiografia e no romance. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, p. 289-308. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40141995000100019. Acesso em: 29 set. 2024.
SANTOS, Samarkandra Pereira dos (2016). Considerações sobre a poética do pós-modernismo. Letrônica, Rio Grande do Sul, v. 9, n. 1, p. 183-193. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-4301.2016.1.22205. Acesso em: 29 set. 2024.
Iconografia