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Não falei

BRACHER, Beatriz. Não falei. São Paulo: Editora 34, 2004.

Luciene Azevedo
Ilustração: Catalina Chervin

Beatriz Bracher (São Paulo, SP, 1961) é autora premiada, por contos e romances, mas desde a publicação de Anatomia do paraíso (prêmio São Paulo de Literatura), em 2015, não temos notícia de mais um livro. Ativa como editora, dedica-se atualmente a projetos como o da editora Chão, que investe no resgate de obras não ficcionais de autores brasileiros, e o da Supersônica, uma editora de audiolivros.

Em Não falei, a negativa peremptória do título do segundo romance de Beatriz Bracher é explorada a partir das muitas modulações reflexivas de Gustavo, que, em primeira pessoa, vai abrindo espaço a muitas outras vozes ao longo da narrativa, apresentando ao leitor um balanço de vida. Aposentando-se da carreira de professor universitário, ele vai deixar a casa da família em São Paulo para continuar atuando na pesquisa em uma universidade do interior do estado. Remexe papéis antigos (e então ficamos sabendo que atuou na observação das escolas da rede básica de ensino) e lê o romance escrito pelo irmão, José, um ciclo autobiográfico.

A memória do que é ao mesmo tempo recalcado e impossível de esquecer é disparada não apenas pela mudança, mas, principalmente, porque Cecília, uma das ex-alunas de Gustavo, está escrevendo um romance sobre as décadas de 60 e 70 e sugere uma entrevista, querendo obter dele uma espécie de testemunho do que foi a resistência à ditadura. Gustavo foi preso e torturado. Depois de solto, paira sobre ele a suspeita de que delatou seu amigo de infância, Armando, que, afinal, foi morto.

O livro, então, é um pouco do que o narrador tem a oferecer à sua ex-aluna: uma “lembrança quebrada, um embaralhamento do que sobrou visto de longe, quase sumindo no meio do tal vazio agressivo”, que é como Cecília descreve o ambiente da escola pública na qual trabalha.

Do seu lado, o leitor vai enveredando por um emaranhado que, por meio de uma prosa digressiva, junta a lembrança do cotidiano familiar, as opiniões amargas do narrador sobre a observação da rotina escolar (expressas em suas cartas e relatórios de trabalho) com as marcas deixadas pela prisão e pela suspeita de todos sobre sua traição. A narrativa vai espraiando-se em todas essas direções, ao mesmo tempo em que reflete sobre o modo de contar a história: “Se fosse possível. Minha história percebida como coisa, sem palavras, sem voz, mas apreendida inteira, sólida”.

A forma entrecortada por um coro de vozes e materiais (trechos registrados de conversas, reprodução dos relatórios, letras de música e poemas) emula a “lembrança quebrada” do personagem narrador. Ao mesmo tempo, a narrativa apresenta as peças de um mosaico que, pouco a pouco, vai aproximando a utopia dos jovens resistentes à ditadura da análise amarga da estrutura educacional. O “messianismo humanitário, a catequese revolucionária e o pragmatismo utilitário” que servem de caracterização ao comportamento dos resistentes ao regime de exceção é também uma mostra do desencanto com o poder transformador da educação.

As anotações reproduzidas em meio à narrativa, acumuladas metodicamente por Gustavo ao longo dos anos de registro do cotidiano escolar, apontam para o olhar agudo de um etnógrafo observador e dizem verdades difíceis, ao comporem um cenário no qual a “condescendência das professoras doces” reafirma o fracasso dos alunos e os preconceitos que se agarram a eles: “Sujo, preto, franzino, burro, moleque, mariquinha, macaco, sem-vergonha, morto-de fome, preguiçoso, cabeça-oca, safado”.

Aqui, a menção feita, logo a seguir à prisão de Graciliano Ramos, durante a ditadura Vargas, e a ampliação do comentário para outro livro, Infância, conjuga-se à fala das mães entrevistadas por Gustavo que delatam a violência doméstica: “Josélia apanhou tanto quando era pequena, mas tanto. E eu batia mesmo, a valer.” O que aparece simultaneamente visível e embaçado é a estreita relação entre a violência institucional (demasiado humana?) e a violência doméstica, entranhada no pequeno cotidiano da infância, seja na escola, seja no ambiente doméstico. Essa associação é ainda mais evidente porque esse encadeamento de vozes culmina numa menção a Primo Levi: “E deixamos isso acontecer, acontecemos esse horror. E continuamos a acontecer, acontece, continuamos homens”.

Apesar de lidar com temas espinhosos, Bracher não quer defender ideias, não deseja escrever um romance de tese, quer privilegiar a “ambiguidade e a contradição em sua natureza”, recusando-se, na mesma medida, ao silêncio ou às senhas para entendidos.

Assim, o título do romance, Não falei, funciona simultaneamente como uma resposta direta à desconfiança que paira sobre o papel que Gustavo teve na morte de Armando, mas também como uma maneira de honrar a convicção de que “não há saída fora da complexidade”, como afirma Gustavo ao refletir sobre a própria vida (coletiva, política, familiar, pessoal).

Se o narrador tem dificuldade de encontrar a linha com a qual costurar os distintos veios narrativos, outros autores e trechos de suas obras vêm em seu socorro, falam em seu nome. Citações devidamente identificadas e costuradas de João Ubaldo Ribeiro, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Edgar Morin, Pedro Nava e muitos outros. Fazendo menção à interpretação cheia de certezas sobre uma imagem do país por Sergio Buarque de Holanda em seu clássico, Gustavo rechaça sua segurança, “perversora e ilusionista”, mas reconhece que “é preciso um ponto de vista e uma pergunta”.

É, então, que o romance se encaminha para seu fecho que, apesar de insinuar uma visão niilista e cínica, tem algo de catártico para o narrador. A partir da tensão entre a complexidade e a necessidade de desvendá-la, Gustavo reconstrói sua trajetória, de prisão e tortura, mas também relembra o entusiasmo com descoberta dos sentidos das palavras por seus alunos: “éramos pequenos e fracos e sem saída, e, ao mesmo tempo, estávamos juntos, não na luta, ideologia ou coisa assim, mas na vida”.

O balanço final é o de que a suspeita da traição da qual Gustavo acreditava ser vítima seja uma história inventada, construída a partir de uma verossimilhança fraudulenta. Conclui-se também que “os tempos sempre são difíceis”, por isso vale a pena cultivar alguma utopia, que é o que “dá poder e vontade de construir um mundo, para chafurdar no passado, agarrar o futuro e retirar de lá visões que nos moviam”.

Para saber mais

BRACHER, Beatriz. (2008) O mundo já tinha acabado. Terceira Margem, Rio de Janeiro, n. 19, p. 37-51. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/11053/8070 .Acesso em: 9 ago. 2024.

BRACHER, Beatriz. (2010). Ler um livro é importante para você não estar aqui nem agora. Para você não ser você por um tempo. [Entrevista concedida a] Luís Henrique Pellanda.  Jornal Rascunho, Curitiba, v. 127. Disponível em:  https://rascunho.com.br/paiol-literario/beatriz-bracher/. Acesso em: 9 ago. 2024.

ENDERS, Geise B. Guerra. (2015). Não falei – O trabalho de memória na narrativa de um sobrevivente. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de Brasília, Brasília.

MARQUES, Karina (2020). Mea culpa e autopunição: o colaboracionista em Não falei, de Beatriz Bracher, e o desertor em Azul-corvo, de Adriana Lisboa. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 60, p. 1-12.  Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/9wCHt5DqbLTs8mmZWwr9SWz/?lang=pt.  Acesso em: 9 ago. 2024.

WELTER, Juliane V.; KLAFKE, Mariana F. (2018). Não falei: testemunho culpado em Beatriz Bracher. Contexto, Vitória, n.34, p.104 -118. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/20523. Acesso em: 10 ago. 2024.

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Como citar:

AZEVEDO, Luciene.
Não falei.

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crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

28 mar. 2025.

Disponível em:

3487.

Acessado em:

19 maio. 2025.