AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Maíra Silva da Fonseca Ramos
Ilustração: Léo Tavares
Em maio de 2023, a CNN noticiou que garimpeiros queimaram casas de moradores da terra indígena Munduruku, no município de Jacareacanga, no Pará. A região vivia, então, uma série de conflitos desde a deflagração de uma operação da Polícia Federal e do Ibama contra o avanço do garimpo ilegal. Na ocasião, centenas de garimpeiros, apoiados por políticos locais, organizaram atos para fechar todo o comércio (em 26 de maio de 2023), conforme noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A reportagem teve acesso a conversas trocadas entre garimpeiros e o vice-prefeito de Jacareacanga, Valmar Kaba (do partido Republicanos). Nas mensagens, foi possível perceber que os envolvidos combinam ações para fechar todo o comércio da cidade, além de se encaminharem até o aeroporto local, em protesto contra as ações.
Não é incomum que cenas de violência como essas se tornem manchetes de jornal, em que se noticiam conflitos entre garimpeiros e grupos indígenas na região norte do país. Ano a ano são divulgadas matérias sobre disputas pelo ouro no solo brasileiro, quase sempre derivadas de extrações ilegais em terras indígenas, não raro com óbitos. O estado do Pará é o maior produtor de ouro do país; contudo, a prática clandestina de extração, além de provocar graves danos ao meio ambiente devido ao uso de produtos químicos altamente nocivos, acarreta a poluição de rios e lençóis freáticos, gerando uma série de outros problemas sociais na região.
Nesse cenário, entre loucuras e obsessões, fanatismo religioso e violência urbana, insere-se a obra Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005), de Marçal Aquino (Amparo, SP, 1958). O romance retrata o cotidiano de uma cidade do interior do Pará, que vive a expectativa crescente de conflito entre garimpeiros e uma mineradora. Essa cidade acorda cedo para que seus homens, mulheres e crianças possam caminhar em direção ao rio, “amarfanhados de sono, ainda atordoados pelo sonho em que se viam colhendo um relâmpago do útero da terra: a pedra que modificaria suas vidas”.
Marçal Aquino, além de escritor, atua como roteirista de filmes. Destacam-se as obras A turma da Rua Quinze (Coleção Vaga-Lume, 1989), os volumes de contos O amor e outros objetos pontiagudos (1999, vencedor do prêmio Jabuti), Faroestes (2001) e Famílias terrivelmente felizes (2003), além das novelas O invasor (2002) e Cabeça a prêmio (2003).
O romance narra a história por detrás do triângulo amoroso Cauby-Lavínia-Ernani. Pontuada por flashbacks, a narrativa leva o leitor à varanda de uma pensão abafada no interior do Pará, na qual também podem ser vistos personagens sem futuros grandiosos (para os quais “a esperança é o pior dos venenos”) e para quem a vida simplesmente é o que é, no momento exato em que se desenrola. Mas não há apenas desesperança: as personagens anseiam o encontro com um futuro possível, seja ele pontuado pelas sonhadas pepitas de ouro, seja por amores fadados a nunca acontecerem por completo.
O encontro entre o casal protagonista acende uma fagulha de amor, entremeada por fogo, o que se vê pela química sexual de ambos na relação de adultério. O erotismo é constante no texto, que não retrata um amor romântico, mas sim um amor possível, dotado de incertezas quanto ao futuro (nas palavras do protagonista Cauby, “uma felicidade sem futuro, como qualquer felicidade que se preze”), entremeado por lembranças de tempos difíceis que permitiram que os personagens chegassem até ali.
O livro Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios esteve envolto em recente polêmica quando um deputado da extrema direita, em abril de 2023, criticou a inclusão da obra no vestibular de uma universidade de Rio Verde, no estado de Goiás, em vista do conteúdo pornográfico presente na narrativa. No noticiário do G1 Goiás de 1º de maio de 2023, Aquino responde à censura do livro e se defende: “Eu sou autor de um livro de quase 20 anos no mercado, que está em sua 23ª edição, [que] foi traduzido para oito idiomas, deu origem a dois curtas-metragens, ganhou prêmios, e vem um cara que não tem nenhum preparo, não deve nem ter lido o livro, e a universidade aceita e dá abrigo a esse tipo de obscenidade, isso sim me parece pornográfico” (Oliveira, 2023).
Se é certo que a atividade sexual marca presença em todos os capítulos do livro, sua descrição não é excessiva, mas sim parte essencial da relação intensa e de dependência de Lavínia e Cauby. O amor clandestino dos protagonistas, que cresce a despeito da figura importante do pastor da localidade, marido de Lavínia e visto como santo pelos fiéis, solidifica-se junto a um clima de crescente tensão também vivida na cidade, em que se fica à espera, a todo instante, da ocorrência de uma tragédia quase anunciada.
Essa cidade, não nomeada na obra, vive à beira de um novo surto de prosperidade com a liberação do rio, novamente, para a mineração. As prostitutas disputam espaço no lugar, e Cauby se torna fotógrafo delas a fim de documentar, num livro já encomendado porém nunca finalizado, esse ofício. As prostitutas são as primeiras a farejar o ouro, nas palavras de Aquino.
Se elas conseguem se alegrar com a promessa de prosperidade que reina na cidade, a cena é de constante tensão entre mineradora e garimpeiros. Impera a presença da violência extrema. Por exemplo, um dos trabalhos feitos por Cauby consistia em documentar mortos a pedido da polícia local, já que o fotógrafo anterior havia sido uma das vítimas de uma recente chacina: o fotógrafo se meteu na história dos garimpeiros e faleceu, faltando metade do crânio ao cadáver (“havia um clima de guerra na cidade. E a mineradora jogava duro com seus adversários”).
A aproximação dos políticos locais com a mineradora, imitando assim a própria vida, não passa despercebida por Aquino, que menciona uma festa na cidade patrocinada com dinheiro da exploração de minério. Com a festa, a mineradora “tentava criar uma imagem favorável junto ao povo – e, de quebra, abria espaço para um comício do candidato a prefeito que apoiava”. Numa cidade em que pepitas de ouro eram entregues como dízimo, a fé se manifestava através da ação de gente simples e fervorosa, gente desacostumada a rir e que acreditava na imensa tolerância de Deus para compreender as fraquezas humanas. A igreja evangélica encontrava, assim, espaço para crescer à custa da exploração alheia da fé.
A fotografia está presente a moldar a vida dos protagonistas. Cauby é fotógrafo, ofício que lhe foi passado pelo pai, antigo fotógrafo de alguns momentos cruciais do futebol brasileiro e que, clandestinamente, clicava nus femininos. A protagonista Lavínia encontra na fotografia um meio para extravasar seu desejo do mundo e descobrir algo que lhe desse prazer numa vida entremeada por pobreza e falta de afeto. A descoberta da fotografia foi, para ela, uma “paixão instantânea”, já que “enfim se encantou com algo que parecia valer a pena”.
O olhar fotográfico para as cenas mais banais do cotidiano é um diferencial do romance. Esse olhar certamente contribuiu para que a obra fosse levada às telas do cinema, como se vê nesta passagem: “Marieta posou no banheiro, com uma toalha enrolada nos cabelos e um dos braços levantados, depilando a axila. A luz do flash rebateu na extremidade do espelho e cobriu de prata os contornos da sua pele. Escreveu um poema ali”.
A violência da obra não é gratuita; é necessária em um espaço em que “as casas, os carros, as pessoas e até os cachorros parecem sujos de terra”, em que falta o básico, como hospitais prontos a dar socorro à população nos momentos de maior necessidade, mas onde sobra gente sonhadora, como o menino que ouve a história da varanda da pensão e sonha em escrever um livro que dê conta da fracassada história de amor de Marinês e seu Altino, que se torna amigo de Cauby.
A obra traz elementos da realidade para a narrativa, abordando um assunto tão necessário como a crescente onda de violência urbana sofrida pelos habitantes da Região Norte do país, violência essa que é tanto maior quanto maior for a desigualdade social e a intenção de exploração predatória do espaço urbano. O cenário, pouco explorado nas obras de literatura brasileira contemporânea, é, decerto, uma das qualidades do livro.
Para saber mais
CNN BRASIL (2021). Garimpeiros travam cidade no Pará e incendeiam casa de indígenas. 26 maio 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/garimpeiros-travam-cidade-no-para-e-incendeiam-casas-de-indigenas/. Acesso em: 9 jun. 2024.
DALCIN, Camila (2015). Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios: linguagem e forma narrativa. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.
LACERDA, Rachelina Sinfrônio (2010). Eu receberia as piores notícias de seus tristes lábios: flashs poético-fotográficos em molduras, Língua, Linguística & Literatura – DLCV, João Pessoa, v. 7, n. 2, p. 25-32. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/dclv/article/download/4822/4758/0. Acesso em: 1º jun. 2024.
OLIVEIRA, Danielle (2023). Ganhador do Prêmio Jabuti, Marçal Aquino tem livro retirado de vestibular após deputado criticar obra. G1 Goiás, 1º maio 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/05/01/escritor-tem-livro-retirado-de-vestibular-de-universidade-apos-deputado-criticar-obra.ghtml. Acesso em: 25 jun. 2024.
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