MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Moreno Lago
Ana Paula Maia (Nova Iguaçu, RJ, 1977) é escritora e roteirista. Estreou na cena literária com a obra O habitante das falhas subterrâneas (2003), editada pela 7 Letras. Em 2007, publicou seu segundo romance, A guerra dos bastardos, no qual surge pela primeira vez a figura de Edgar Wilson, trabalhador rústico que passa a fazer parte do cenário violento e desolador de suas próximas histórias. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e O trabalho sujo dos outros são duas novelas publicadas em conjunto pela Record no ano de 2009 nas quais se destacam características marcantes de sua escrita, como a narração que mais se assemelha a uma série televisiva, com um discurso pautado pela ação e pelo movimento. Com Carvão animal (2011), a autora encerra o ciclo “A saga dos brutos”, trilogia marcada pelo texto enxuto e direto que tem como tema central a morte abordada “com uma estética pungente centrada nos restos e nas ruínas” (Nevez e Zolin, 2021).
De gados e homens é seu quinto romance, lançado em 2013, e tem Edgar Wilson atuando como um “atordoador” de bois numa fazenda de abate bovino. De acordo com a própria autora, a ideia da obra surgiu de sua observação pessoal do funcionamento de um açougue próximo a sua casa, ao presenciar o descarregamento diário de animais mortos e o consumo desenfreado de carne por parte das pessoas. Para escrever sobre o assunto, Ana Paula Maia diz ter visitado centros de abate de animais em cidades pequenas do interior, na busca de observar e compreender o trabalho realizado nesses locais.
O espaço da trama é o matadouro “Touro do Milo”, localizado no Vale dos Ruminantes, situado em algum rincão rural. Nesse lugar, Edgar Wilson convive com Bronco Gil, capataz da fazenda e que também aparece nos demais livros da escritora. Seu dia a dia consiste em abater o maior número de animais possível, porque, no matadouro, “o trabalho é interminável [e] enquanto tiver uma vaca neste mundo, lá estará um sujeito disposto a matá-la. E outro disposto a comê-la”. Contudo, há um diferencial em sua técnica de preparar o animal para a morte, pois ele acredita que não lhe cause sofrimento, porque antes cumpre uma espécie de ritual. Na verdade, o que ele faz é “encomendar a alma de cada animal antes de ser degolado”. Em tal processo, ele acredita ser o mais competente, por ser detentor de “um golpe preciso, um talento raro que carrega em si uma ciência oculta em lidar com os ruminantes”. Não se sente orgulhoso do trabalho que realiza, “mas se alguém tem que fazê-lo, que seja ele, que tem piedade dos irracionais”.
Do ponto de vista da narração, a história é contada com uma frieza técnica proveniente do foco no detalhe descritivo da mecânica de funcionamento de um abatedouro. O aspecto imagético da obra visa explorar o real em sua máxima expressão, atingindo “o núcleo duro e autêntico dos acontecimentos” (Neves e Zolin, 2021), fazendo uso do presente, próprio dos roteiros de cinema, e criando a percepção de um discurso fílmico em que cenas obscenamente violentas são mostradas com uma visualidade científica (Aguiar, 2022).
Em De gados e homens, o tema da bestialização dos homens em contraposição à humanização dos animais é apresentado por meio de cenas em que o assassinato de uma pessoa pode ser realizado com a mesma técnica de abate de animais e, contraditoriamente, com maior crueldade. É desse modo que Edgar Wilson elimina o companheiro de trabalho Zeca, por acreditar que ele sente prazer em presenciar o sofrimento dos bois mortos na fazenda “com a mesma limpeza de seu trabalho, [porém] sem a compaixão dispensada ao gado” (Coelho, 2022).
O contato com os restos, aquilo que não é mais útil à sociedade, e com as ruínas, representadas pela decrepitude de um mundo no qual tudo está podre e estragado, denuncia os espaços e corpos deteriorados presentes em um enredo que mostra ao leitor um mundo brutalizado no qual reina a exploração laboral e que revela a lógica produtivista de mercado em ação. Essa realidade é representada através de uma linguagem crua que beira o realismo/naturalismo, em um hibridismo de forma que remete ao gênero romance criminal, uma vez que o mal apresentado é cotidiano, e a violência está presente na própria ordem do trabalho, na vida prática e no lazer das personagens: “O homem prende a respiração e mergulha num tonel de água. Os outros ao redor […] Riem. Quando passa um minuto, silenciam gradativamente […] dois minutos. Dezenove segundos depois, Burunga suspende a cabeça, roxo pela falta de ar”. Ele faz isso porque “tem urgência em arranjar dinheiro para os olhos deficientes da filha”.
Além disso, a criminalidade exposta na trama está associada à ineficiência do Estado em garantir a segurança de seus cidadãos, que forjam suas identidades de forma brutalizada com base nessa ineficácia da segurança pública que opera por um sistema de camaradagem e descaso, no qual reina o silêncio de algozes e testemunhas diante de uma polícia ineficiente e desinteressada (Kill e Guizo, 2020). Conforme afirma André Aguiar (2022), “a violência é tema e o abjeto é forma” na produção de Ana Paula Maia. Trata-se de uma violência gerada pelo próprio sistema ao qual estão submetidos esses homens explorados, abandonados à própria sorte e que precisam criar suas regras de sobrevivência, expondo um mundo de relações agressivas mediadas pela faca ou arma de fogo muito mais do que pela palavra.
Em razão disso, é feita uma aproximação tanto do comportamento quanto do espaço partilhado por homens e animais. O alojamento onde mora Edgar Wilson e os demais trabalhadores do Touro do Milo que não tem familiares é semelhante ao curral reservado ao gado: “Ambos confinamentos, de gado e de homens, estão lado a lado, e o cheiro, por vezes, os assemelham. Somente as vozes de um lado e os mugidos do outro é que distinguem homens e ruminantes”. Um universo barbarizado em que as alteridades “animal e humana são usurpadas pelas tecnologias biopolíticas de separação, contenção e capitalização” (Neves e Zolin, 2021) e no qual se oferece uma experiência do real que é explícita e obscena, destacando os processos de objetificação humana e animal.
O que o leitor vai encontrar ao ler De gados e homens são as vias de exploração contínuas do humano e do animal em uma racionalidade econômica que os prepara para serem força de trabalho e mercadoria. Assim, viver e morrer são ocorrências que não interrompem a linha de produção da transformação de corpos: “Duas semanas depois da morte de Burunga, é como se ele nunca tivesse estado ali. Em sua função foi colocado um dos funcionários da bucharia e [lá] o trabalho foi [novamente] dividido. Assim como o gado assemelha-se entre si […] com os homens parece ocorrer o mesmo. A linha do tempo é como a linha da morte: não pode ser interrompida”. Burunga morre eletrocutado por uma enguia que havia sido colocada no tonel de água em que ele prendia a respiração durante as apostas. Um acidente provocado pelo novo atordoador, Santiago, que “só queria criar a enguia, era de estimação”.
O clímax da narrativa, ato que suspende momentaneamente a rotina maquinal do abatedouro, se dá quando, por alguma razão desconhecida, as vacas começam a se suicidar. Em três diferentes episódios, os ruminantes rompem as cercas do curral e saem em disparada na direção de um precipício, atirando-se e caindo às margens do Rio das Moscas. Edgar Wilson pondera que “em lugares onde o sangue se mistura ao solo e à água é difícil fazer qualquer tipo de distinção entre o humano e o animal”. Os bois passam a tomar decisões que não correspondem às de seres irracionais, como são reconhecidos pelos trabalhadores. No entanto, o romance apresenta o episódio sem que haja maiores questionamentos por parte do narrador ou das personagens, estando estas resignadas e impossibilitadas de alterar a realidade.
A morte, dessa maneira, é apresentada em suas mais variadas formas, e, de modo especial, como alimento para os miseráveis que vivem nas cercanias dos matadouros, e para os próprios trabalhadores, que, em certas ocasiões, conseguem consumir os hambúrgueres produzidos pela fábrica que é abastecida pelos abatedouros. “Quase uma hora depois, Tonho despeja um saco gordo com pedaços de vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar como uma matilha de cães famintos”. Em outra cena, Edgar Wilson come um hambúrguer pela primeira vez com seus colegas, um alimento que “assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado”.
O que a prosa de Ana Paula Maia deixa ao leitor é a visão de um universo degradado pelo capitalismo, no qual vida e morte se confundem porque são peças do sistema que se complementam e que permitem seu pleno funcionamento. A morte está em tudo, na natureza ao redor, que tem flores mais vermelhas por se alimentar do sangue do Rio das Moscas, na miséria da região, que traz a fome e animaliza as pessoas e nas condições degradantes dos trabalhadores, que ganham centavos por cada cabeça de gado abatida. Em De gados e homens, fica evidente que o próprio capitalismo polui tudo, da natureza às relações humanas e animais, e que há que se olhar para esse movimento pelo menos com alguma desconfiança, já que parece não haver saídas, ou ao menos elas não são sugeridas pela narrativa.
Para saber mais
AGUIAR, André Luiz Godinho (2022). Paisagens, animais e homens em Ana Paula Maia. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
COELHO, Paulo Vítor (2022). A agonia de gados e homens e o real saturado em um romance de Ana Paula Maia. In: LIMA, Gabriel dos Santos (Org.) Estudos do Romance Brasileiro no Século XXI. Porto Alegre, RS: Editora Fi, p. 98-120.
KILL, Diego; GUIZZO, Antônio Rediver (2020). O abatedouro e os abatidos de Ana Paula Maia: um estudo das representações da violência em De gados e homens. Olho d’água, São José do Rio Preto, 12(2), p. 201-214, jun-dez.
NEVES, L. de A.; ZOLIN, L. O (2021). Ana Paula Maia e a literatura de autoria feminina: mulheres no seu (in)devido lugar. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (62), p. 1-13. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37471. Acesso em: 28 maio 2024.
OLIVEIRA, Andria da Silva (2020) O olhar que transcende os olhos: De gados e homens, de Ana Paula Maia. Revista Alere, ano 14, vol. 22, n. 2, jul, p. 55-69.
Iconografia