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Cidade livre

ALMINO, João. Cidade livre. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Sophia Beal
Ilustração: Nina Nunes

Quando Brasília foi inaugurada, em 1960, já possuía uma identidade artística própria: prédios, esculturas e azulejos exibiam a estética modernista do Plano Piloto, enquanto a xilografia, o repente e o cordel anunciavam a forte influência nordestina nas periferias. A identidade artística da capital continuou evoluindo. O Distrito Federal foi um núcleo da poesia marginal dos anos 1970 e do rock nacional nos anos 1980. No entanto, demorou para a capital ser associada a romances, tanto a fim de a urbe ser representada criativamente em formato de livro impresso, quanto de ser vista como um lugar onde romances premiados são escritos.

 Foi apenas com o surgimento do Quinteto de Brasília, uma série de romances do escritor e diplomata João Almino (Mossoró, RN, 1950) publicada pela editora Record, que a capital ganhou um “romancista de Brasília” (Couto, 2010). O Quinteto começa com Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), seguido por Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001), O livro das emoções (2008) e, finalmente, Cidade livre (2010). A série retrata uma Brasília socialmente segregada e violenta em cenas ambientadas desde os anos 1950 até cerca de 2080, quando o autor inventa um futuro para o Distrito Federal. Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2017, Almino é autor de oito romances e tem livros traduzidos para espanhol, francês, holandês, inglês e italiano. Ele é mais conhecido por seus romances ambientados na capital do Brasil.

 Nos quatro primeiros romances do Quinteto, a artificialidade da capital funciona metaforicamente para refletir a superficialidade das personagens, mas, em Cidade livre, a cidade ganha maior protagonismo. Nesse livro, o narrador, João, é um jornalista da Brasília contemporânea que relembra a experiência de crescer no acampamento operário Cidade livre, surgido em 1957 durante a construção do Distrito Federal. Embora devesse ter sido desfeita após a inauguração da capital, a Cidade livre nunca foi destruída, e agora é a região administrativa Núcleo Bandeirante. O narrador está tentando compreender a morte e o provável assassinato do operário Valdivino, um amigo da família. João entrevista seu já idoso pai adotivo, Moacyr Ribeiro, que está preso. Os temas de especulação imobiliária e corrupção nesse setor surgem através desse personagem, que fez fortuna negociando arrendamentos temporários de lotes na Cidade livre, erguendo moradias e se envolvendo em projetos de construção corruptos da época da criação da capital. O grande sucesso de Moacyr durou pouco, e ele acabou na prisão por causa de seus negócios fraudulentos.

Valdivino e Moacyr ocupavam posições equivalentes em termos de vidas românticas, pois ambos estavam apaixonados pela mesma mulher: Lucrécia. No entanto, economicamente suas situações divergiam, porque Moacyr se tornava próspero, ao passo que Valdivino nem tinha moradia fixa, em parte porque vivia fugindo da dívida com o homem que arranjou sua viagem do Nordeste ao Planalto Central. Alegoricamente, Valdivino passa a representar a luta das classes populares no Distrito Federal para encontrar moradia e fazer suas vozes serem ouvidas. O assassinato misterioso aumenta a sensação de que os operários são tratados como descartáveis. Apesar de essa crítica estar presente nos quatro primeiros romances do Quinteto, ela é mais pronunciada em Cidade livre, livro em que uma personagem socialmente marginalizada tem um papel mais central. A profetisa Lucrécia, também conhecida como Íris Quelemém, figura em todos os livros do Quinteto e no romance Enigmas da primavera (2015), de Almino. A presença dela vincula a ficção de Almino à forte tradição de comunidades religiosas do Cerrado, em particular ao Vale do Amanhecer e à Cidade Eclética. Tia Neiva e Mestre Yokaanam, médiuns dessas comunidades, eram, supostamente, mentores de Lucrécia.

Além de contar a história da construção de Brasília, Cidade livre chama a atenção para as injustiças em relação a quem pode representar e interpretar o Distrito Federal na escrita, seja ficção ou não. Aludindo aos prólogos de romances de Machado de Assis – assinados pelo autor, mas com autoria atribuída aos narradores – a introdução de Cidade livre é assinada por JA, mas escrita por um narrador-jornalista chamado João, que agradece a João Almino pelas revisões. O questionamento da autoridade em Cidade livre procura examinar como autores e críticos policiam o significado. O romance abrange o contraste entre as interpretações de Brasília divulgadas por figuras públicas, que influenciaram a opinião geral sobre a cidade, e as interpretações das classes populares sobre a capital, que muitas vezes não foram publicadas. Embora o conteúdo de Cidade livre seja associado ao romance histórico, o estilo o afasta dos fatos, o que convida à crítica social. O fato de os leitores terem em mãos um livro publicado, ao passo que o narrador diz que estão lendo um blog coletivo de não ficção acentua a literalidade (falsidade, invenção) do romance. A desconexão torna o leitor mais consciente dos laços históricos dos romances com o controle cultural e ideológico elitista (Beal, 2021).

Todos os romances de Almino combinam elementos associados à ficção pós-moderna (como metaficção, fragmentação, interrupção narrativa, narradores não confiáveis, pastiche e alusão literária) com componentes de romances policiais (como assassinatos, prostituição, drogas, lascívia, diálogos contundentes e incesto). Essa mistura provoca estranhamento porque o leitor fica perdido entre os registros: ele nunca pode se entregar totalmente à fantasia do enredo e nunca sabe exatamente como abordar o livro. Tal tensionamento na ficção questiona como uma elite literária dominante estabeleceu falsos limites em relação ao que considera “alta” e “baixa” cultura para manter seu status e exercer controle ideológico. Ao fazer essa mistura em um romance que discute a especulação imobiliária elitista, Almino estabelece uma relação entre o controle que as classes dominantes têm sobre a distribuição de terras no Brasil e o controle que elas exercem sobre a distribuição e a interpretação das obras de arte.

 Ao longo do romance, o leitor fica ciente de que a segurança habitacional e a possibilidade de divulgação de ideias são privilégios sociais. Valdivino, na medida em que representa as classes populares no Distrito Federal, vive uma vida marcada justamente pela falta da garantia de moradia e pelo silenciamento de suas convicções (Beal, 2021). Em comparação, os comentaristas do blog em Cidade livre ficam tão envolvidos com pequenos detalhes da fundação de Brasília que não conseguem ver o quadro geral que seus relatos evocam: uma história de especulação imobiliária, desigualdade e violência não regulamentada que assombra a capital.

Concebido como um livro que reflete sobre quem tem o direito de representar a capital por escrito, Cidade livre antecipa a literatura que ganhou destaque no Distrito Federal nas décadas após o lançamento do romance. Muitas vezes empoderados na ética coletiva de saraus, slams, pequenas editoras e centros comunitários, escritores com identidades marginalizadas – especialmente mulheres, negros, pessoas LGBTQIAP+, residentes da periferia e autores com múltiplas dessas identidades – começaram a publicar livros de poesia e prosa com muito mais frequência, assim ampliando a representação da capital e insistindo em ocupar e criar a cidade literária.

Para saber mais

SARAIVA, Juracy Assman; MÜGGE, Ernani (2016). Cidade livre: reflexão metaficcional. Letras, Santa Maria, v. 26, n. 53, p. 199-214. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/25090/0. Acesso em: 17 maio 2024.

BEAL, Sophia (2021). João Almino e o direito criativo à cidade. In: BEAL, Sophia. A arte de Brasília: 2000-2019. Tradução de Larissa Satico Ribeiro Higa. Minneapolis: University of Minnesota Libraries Publishing. p. 71-90. Disponível em: https://umnlibraries.manifoldapp.org/read/a-arte-de-brasilia-2000-2019/section/11019d10-5e7f-4574-b33d-055a7f2c6f9c. Acesso em: 17 maio 2024.

COUTO, Ronaldo Costa (2010). Livro recria o início doido de Brasília. Folha de São Paulo. Disponível em: https://joaoalmino.com/livro-recria-o-inicio-doido-de-brasilia-cidade-livre. Acesso em: 17 maio 2024.

MONTEIRO, Pedro Meira (2010). Todo instante: a ficção de João Almino. Luso-Brazilian Review, Madison, v. 27, n. 1, p. 61-70. Disponível em: https://lbr.uwpress.org/content/47/1/61. Acesso em: 17 maio 2024.

Iconografia

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Como citar:

BEAL, Sophia.
Cidade livre.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

13 mar. 2025.

Disponível em:

3423.

Acessado em:

19 maio. 2025.