Ir para o conteúdo

A pediatra

DEL FUEGO, Andréa. A pediatra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Renata Fernandes Magdaleno
Ilustração: Léo Tavares

Em Por uma crítica feminista (2020), Eurídice Figueiredo defende, ao analisar livros de autoras de diferentes épocas, que é possível perceber uma espécie de imaginário coletivo na literatura que produzem. O painel que se forma, porém, não é homogêneo, mas um mosaico composto por um conjunto de crenças e saberes que perpassam grupos em um determinado espaço sócio-simbólico. O argumento não defende um simples entrelaçar entre ficção e realidade, mas chama para uma observação minuciosa das temáticas abordadas pelas escritoras ao longo da história, a recepção que seus escritos receberam, a maneira como as personagens femininas aparecem retratadas e se portam nos livros que produzem. Ao analisar o romance A pediatra (2021), de Andréa del Fuego (São Paulo, SP, 1975), essas questões aparecem, não apenas por toda a ambientação e a construção do enredo, mas também pela composição da protagonista e a recepção que a obra teve nos veículos dedicados à literatura.

Del Fuego constrói, com pitadas de humor, uma personagem cínica e autocentrada, sem julgar o seu comportamento. Escrito em primeira pessoa, o romance conta a história dessa pediatra, Cecília, que contradiz tudo o que o imaginário da sociedade brasileira deposita nesse profissional. Ela não gosta de crianças, não se importa com os seus pais, receita de forma protocolar e, sempre, indica os doentes crônicos e casos mais graves para outros profissionais. Para o leitor, admite sua falta de talento. “Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz. Procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão”.

Chegando ao público em um período em que o mundo desperta de uma pandemia de Covid-19, em 2021, a composição dessa profissional ganha contornos políticos. Em um momento em que os médicos se perdiam ao indicar tratamentos, receitando remédios mais por crenças políticas do que por conhecimentos medicinais, aparece a personagem fictícia Cecília, colocando em prática, ao longo da trama, o inimaginável (a falta de cuidado com os pacientes, a frieza com que recebe notícias dos agravamentos, a destituição da ética nos diferentes campos da vida), ressaltando o caráter humano do profissional, com múltiplos defeitos e distintas personalidades, e ressaltando os julgamentos superficiais da sociedade: “Celso avisou à escola que uma amiga da família ia apanhar o filho, deu meu nome, devia ter dado a minha profissão que, naquele ambiente, era um lança-chamas a incinerar qualquer obstáculo, professorinha nenhuma fecha a porta para uma pediatra”.

O romance está bem localizado também no tempo e no espaço. A trama se passa na cidade de São Paulo, a mesma onde vive a autora, em um bairro de classe média alta, com suas creches “especiais”, cheias de atividades extras, decoração e arquitetura planejada, e os serviços qualificados direcionados às parturientes, de acordo com as últimas tendências do setor, que são as doulas e os pediatras integrativos.

O que a autora faz é levantar a capa de verniz, revelando o que as estratégias de marketing e as aparências procuram esconder: a pediatra com amante, estratégias antiéticas e horror a crianças; o homem que trai a esposa, enquanto ela está na sala ao lado em trabalho de parto; os cursos e técnicas naturais de nascimento, que buscam esconder as muitas complicações possíveis, os picos de dor e as lacerações do parto. Todos esses personagens e cenas estão presentes no romance, escrito em linguagem direta, seca, sem floreios (uma das características da autora), e um fio de humor perpassando cada cena retratada. E, apesar de não especificar exatamente em que época a personagem circula, todo o contexto descrito, de valorização do parto natural e questionamentos em relação ao excesso de cesarianas realizadas nos hospitais, leva o leitor para às discussões que tomaram a imprensa e os serviços e instituições ligados às parturientes nas primeiras décadas do século XXI.

Durante o lançamento da obra, o romance ganhou boas críticas na imprensa. A recepção positiva de uma autora como Andréa del Fuego faz pensar sobre uma maior liberdade de escrita e valorização das autoras brasileiras, fato que não acontecia no passado. Analisar a produção das escritoras ao longo do tempo é observar uma sucessão de apagamentos (Júlia Lopes de Almeida, Narcisa Amélia e Nísia Floresta são apenas alguns dos nomes de autoras que produziram no fim do século XIX e início do XX, tiveram boa recepção entre leitores, mas foram esquecidas, por conta da desvalorização dos escritos femininos), de preconceitos (que definiam, por exemplo, o termo “escrita feminina” como pejorativo, sinônimo de uma forma de escrever delicada e intimista, desenvolvida em um cenário doméstico), de limitações nas temáticas e na própria atuação das personagens.

Olhar para o passado é encontrar inúmeros indícios dessa desvalorização. O cânone nacional, com os clássicos da literatura do país, está recheado de autores homens e conta com pouquíssimas mulheres. A primeira escritora a entrar na Academia Brasileira de Letras, por exemplo, renomada e tradicional instituição dedicada ao mundo literário e inaugurada em 1897, foi Rachel de Queiroz, apenas no fim da década de 1970.

A educação sexual e a liberação dos costumes, desde os anos 1960, provocaram mudanças no comportamento da sociedade, que se refletiram, muito pouco a pouco, na atuação e na recepção das escritoras. O volume de mulheres que passa a se dedicar à literatura aumenta significativamente a partir do fim do século XX, apesar de ainda não se equiparar ao dos homens, e a liberdade de temáticas abordadas indica um cenário mais igualitário no século XXI, onde o preconceito, a violência, as dores femininas e a sexualidade são abordadas mais livremente.

Se A pediatra (2021) fosse escrito ao longo do século XIX, Cecília, a protagonista, provavelmente não conseguiria fugir ao final trágico, uma espécie de castigo destinado às personagens femininas que se rebelavam (ao estilo de Madame Bovary, de Gustave Flaubert). Em publicações do século XIX, por exemplo, era comum ver as personagens femininas sofrendo terríveis consequências ao se desviarem de seus papeis sociais ou ao ultrapassarem as fronteiras do casamento. Como se o mau exemplo fosse algo que deveria ser punido, na maioria das vezes com a morte, já que eram as mulheres as principais leitoras. O final trágico costumava acontecer mesmo quando um nome feminino aparecia escrito em uma capa, assinando a autoria.

A pediatra é uma prova de como o questionamento dos padrões e a conquista de uma maior liberdade transparecem nas produções literárias do século XXI. Cecília trai o marido; se separa; arruma um amante casado. Ela não se intimida em trancar a porta do consultório para receber o namorado, enquanto os pacientes aguardam na fila de espera. Atuando como neonatologista, se sente ameaçada quando um pediatra integralista, parceiro das doulas, conquista grande parte da clientela de seu bairro. Para tomar de volta a sua posição, está disposta a investigar sem limites, a mentir, se passar por outra pessoa, inventar histórias. Nos relacionamentos amorosos, não se envolve emocionalmente e valoriza apenas os momentos de sexo. Quando quer alguma coisa, não enxerga obstáculos. E ela quer, a qualquer custo, Bruninho, o filho do amante. Em muitas cenas, cogita demitir a empregada grávida e, no íntimo, pensa em roubar o namorado dela. E, depois disso tudo, termina sem grandes problemas.

A protagonista do romance foge, portanto, totalmente ao padrão comportamental da mulher valorizado no século XIX e grande parte do XX. O casamento, o cuidado com o marido e os filhos, a valorização da família e o olhar voltado aos afazeres da casa passam longe do cotidiano da personagem Cecília. Ela é independente financeiramente, vive sozinha e cultiva o seu espaço.

A pediatra é o terceiro romance da paulista Andréa Fátima dos Santos, que já deixou transparecer a defesa dos valores femininos pelo pseudônimo que escolheu. Ela adotou o nome Andréa del Fuego desde que começou a escrever, no fim da década de 1990, quando assinava crônicas para um veículo de imprensa e tirava dúvidas sexuais dos leitores. A inspiração veio da mineira Luz del Fuego, mulher naturista, feminista, que viveu na primeira metade do século XX e sofreu severas consequências da família por suas transgressões.

Del Fuego é autora de nove livros, os infantojuvenis A sociedade da caveira de cristal (2008) e Quase caio (2008); o infantil Irmãs de pelúcia (2010); as coletâneas de contos Minto enquanto posso (2004), Nego tudo (2005) e Engano seu (2007). Conquistou o prêmio José Saramago, em 2011, com o seu primeiro romance Os Malaquias (2010), publicado também em outros países, como Alemanha, Itália, França, Israel, Romênia, Suécia, Portugal e Argentina. Em 2013,publicou sua segunda história de fôlego: As miniaturas, romance traduzido e publicado também em outros países, como Argentina e França. A pediatra completa o hall, apontando para a composição de uma obra que promete continuar promissora e vem agradando público e crítica.

Para saber mais
AMARANTE, Dirce Waltrick do (2021). A pediatra: em ótimo livro, Andréa del Fuego apresenta médica incapaz de criar laços. O Globo, 4 dez.

BERNARDI, Tati (2021). A pediatra, de Andrea del Fuego, está mais para um ser-humano complexo e interessante do que para um monstro. Folha de São Paulo, 1.o nov.

BRITO JUNIOR, Antonio Barros de. (2024). As elites brasileiras nos romances de Michel Laub, Andréa del Fuego e Clara Drummond: uma revanche contra o bolsonarismo. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 29, p. 1-22.

CRUZ, Magda; DEL FUEGO, Andréa. (2024). Andréa del Fuego: “O mês em que escrevi A pediatra foi de absoluta escrita. Às vezes me sentia quase febril escrevendo”. Comunidade Cultura e Arte. Ponto Final, Parágrafo, episódio 70. RIZZI, Hiago; DEL FUEGO, Andréa. (2021) “Vilã de Novela”. Entrevista. Cândido, Curitiba, n. 141.

Iconografia

Tags:

Como citar:

MAGDALENO, Renata Fernandes.
A pediatra.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

10 mar. 2025.

Disponível em:

3315.

Acessado em:

19 maio. 2025.