FRANCIS, Paulo. Cabeça de papel. São Paulo: Civilização Brasileira, 1977.
Giulia Campos
Ilustração: Léo Tavares
Não existe caminho na definição de Cabeça de papel (1977) que não passe pela estrada da verborragia, eixo central que amarra a narrativa desenvolvida em primeira pessoa pela personagem Hugo Mann (alter ego do autor), que se apresenta às pressas logo na primeira página, antes de convidar o leitor a ouvir seus mais escandalosos pensamentos e opiniões. Num regurgitar intelectual característico da elite carioca jornalística de 1960 e 1970, o primeiro romance de Paulo Francis (Rio de Janeiro, RJ, 1930 — Nova Iorque, Estados Unidos, 1997) acerta na mesma medida em que peca, trazendo para a página esse compor narrativo caracterizado por uma profunda consciência acadêmica canônica e uma certa melancolia ditatorial. Mais vezes sim do que não, essa verborragia converte-se no pedantismo intelectual que muito caracterizava a figura do autor. Embora Cabeça de Papel marque sua breve incursão no universo da literatura, foi como jornalista e crítico de teatro que o autor ficou conhecido. E, tendo atuado em diversos jornais, Francis destacou-se especialmente nos trabalhos que realizou na Folha de S. Paulo, em O Globo e em O Pasquim.
Neto de um comerciante de café alemão, Francis começou sua trajetória intelectual por meio das artes dramáticas, em 1950. Foi na condição de ator amador que se decidiu pelo pseudônimo Paulo Francis, abandonando seu nome de batismo, Franz Paul Trannin de Matta Heilborn. Em 1955, deixou o Brasil para estudar literatura dramática na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Voltou como diretor de teatro, notabilizando-se, nesse primeiro momento, como crítico. Tendo vivido no Rio de Janeiro durante o golpe de estado no Brasil, Francis passou toda a ditadura militar trabalhando no semanário O Pasquim. Grande simpatizante do trotskismo, ajudou a traduzir para o português as três principais obras biográficas sobre o autor russo. De 1969 a 1976, também figurou na Tribuna da Imprensa, comentando assuntos internacionais e discutindo a resistência cultural ao regime. Em 1969 foi brevemente preso pelos militares no Galeão e, logo após a prisão, em 1970, mudou-se definitivamente para Nova Iorque, onde viveria até o fim de sua vida. É nos Estados Unidos que se torna correspondente da Folha de S. Paulo, jornal no qual viria a publicar 8.000 textos até o fim de sua vida (Sá, 2021). Até hoje definido no meio jornalístico como um polemista e um “brigão” (Ferraz, 2010), atualmente, Francis é lembrado, sobretudo, por sua persona televisiva e pela língua ferina que caracterizou seus textos e também sua literatura.
Cabeça de papel é o primeiro romance de uma trilogia que Francis jamais terminaria em vida. O segundo romance, Cabeça de negro (1979), foi publicado dois anos após a publicação do primeiro e seria seguido de um último volume, intitulado apenas Cabeça, mas Francis faleceu sem finalizá-lo. Cabeça de papel é ambientado na rotina de uma redação jornalística em 1976, com seus muitos dilemas políticos e ideológicos pós-64, e as muitas referências intelectuais de Francis parecem se relacionar com essa sensação de caos intelectual muitas vezes presente na literatura brasileira pós-AI-5 (Paulo, 2022). Essa melancolia permeia cada palavra do fluxo de consciência de Hugo Mann. O próprio título, Cabeça de papel, é uma referência à clássica cantiga que também alude ao golpe militar: “marcha soldado / cabeça de papel / se não marchar direito, vai preso no quartel / o quartel pegou fogo / polícia deu sinal / acode, acode, acode / a bandeira nacional”.
O romance conta a história da amizade entre Hugo Mann e Paulo Hesse, proprietário do jornal para o qual Mann escreve críticas de cinema. O período de tempo que o leitor acompanha na narrativa cobre cerca de uma semana em 1976, mas as muitas digressões e idas e vindas temporais permitem ao leitor acompanhar a trajetória e a amizade dos dois por cerca de três décadas. O primeiro capítulo, “A manhã seguinte, 1976”, tem como catalisador um telefonema que Mann recebe de Victor, um amigo há 16 anos distante do Brasil que o convida para beber. Chegando ao lugar marcado para o encontro, Mann descobre que Victor e Hesse se conhecem.
A narrativa se desenvolve em meio a muitas referências, num fluxo de consciência e rememorar boêmio regado a muita cocaína e uísque, e, no segundo capítulo, o leitor é apresentado ao perfil psicológico de Hesse. Mann o faz por meio de uma regressão às décadas anteriores, que cobrem seu casamento com Sônia Maria, sua eventual “rendição” às forças capitalistas e o abandono de seus ideais comunistas. Esse processo de traição dos sonhos juvenis e dos ideais revolucionários é, talvez, o tema central do romance, e segue sempre aparecendo nos próximos capítulos da narrativa, que, culminando no capítulo “Coda”, se encerra numa virada trágica também essencialmente política.
Por mais que Mann se posicione como uma figura desencantada dos modelos sociais, que se coloca como um observador fora do jogo ideológico em voga, de acordo com o narrador, no Rio de Janeiro de 1976, ele também apresenta, de maneira crítica e quase caricata, as falhas ideológicas da personagem de Hesse. Um exemplo disso é o quinto capítulo, quando Hesse defende a tortura em uma conversa com Mann, que foi, anos antes, preso pelo regime militar. Este ponto da narrativa parece servir para marcar a derrocada ideológica do amigo. Mann parece muito certo, como muitas figuras da esquerda de seu tempo, de que toda concessão é uma traição ideológica e que uma traição ideológica leva, inexoravelmente, a outra, como fica evidente neste trecho: “Ainda dá pra ver Ipanema às 6 da manhã. Moro no Leblon. Sabemos o que tínhamos de fazer e não fizemos. Órfãos da tempestade. Talvez nem isso. Falta-nos gravitas. Não escolhemos ou propusemos. Deixamo-nos dispor e depor”.
Não é fácil a leitura do texto de Francis mais de 45 anos depois de sua publicação. Os pontos interessantes de sua narrativa são muitas vezes engolidos pelo higienismo e elitismo tão tradicionais de sua classe e de sua geração. Com todas as referências intelectuais, históricas, políticas e artísticas que traz para a página, a personagem de Hugo Mann, mais vezes que não, peca pelo excesso de polemismo, da mesma forma que o próprio Francis, que foi chamado por alguns de seus colegas e críticos de uma “metralhadora giratória” de opiniões escandalosas. Espantam, especialmente, as declarações abertamente xenofóbicas e racistas. Este é um traço da personalidade de Francis que aparece como nota de rodapé em diversas matérias sobre sua vida, em geral em tons conciliadores, e em associação com sua (também profunda) misoginia.
O texto apresentado sugere por que Emir Sader, em uma publicação no blog da Boitempo (2014), caracteriza Francis como um dos precursores do “escracho” e do “politicamente incorreto” no Brasil. Segundo Sader, Francis, em sua fase final, teria elevado o deboche a um nível extremo, alinhando-se a práticas que hoje são associadas à direita brasileira. Essa transformação culminaria, conforme a análise, em uma conversão ideológica de Francis à direita, marcada por uma defesa do livre mercado e por declarações consideradas racistas.
A resenha intitulada “Indicado somente para Maiores de 40” e publicada por Eloésio Paulo no blog da Unifal em 2022 traz à luz essas problemáticas, mas reitera que, mesmo que datada, ainda existem compensações para o “valente leitor” que se propõe a fazer a leitura de Cabeça de papel. Em meio ao derramamento literário que é o estilo de Francis, existe, segundo Paulo, um retrato de um país que, politicamente, já não existe, e de uma era do jornalismo que deixa de cabelos em pé as “bem comportadas” redações atuais.
Eduardo de Oliveira Lanius (2012) apresenta, em sua dissertação, O profeta desacreditado, uma leitura crítica das obras ficcionais de Francis e é também um dos poucos estudiosos a cobrir Cabeça de papel de forma mais detida. De sua leitura do romance, destaca-se a visão que o estudioso tem do narrador: “O narrador tende a ser falastrão, opinativo, agressivo, alusivo, alguém que tem na ponta da língua, uma palavra ferina ou uma asserção a fazer, seja sobre qual assunto for”. Lanius também faz um balanço da fortuna crítica existente acerca da literatura de Francis, ressaltando a visão de Arrigucci Jr., que viria a dizer que o narrador em Cabeça de papel “atropela” o leitor.
Em conclusão, Cabeça de papel é um romance verborrágico que oferece ao leitor um banquete de referências intelectuais, políticas, históricas e artísticas. É justamente essa mesa tão farta de referências que pode tornar difícil a experiência leitora, com muitos momentos que dão a impressão de ser necessário um “guia, autorizado e comentado aos leigos”, como declarou Fábio de Souza Andrade (2003) em sua resenha da obra. Mesmo que datada e manchada, muitas vezes, pelo polemismo de Francis, Cabeça de papel ainda é um retrato da modernização da imprensa brasileira no final da década de 1970. O romance oferece um olho-mágico para as redações jornalísticas cariocas pós-64, assim como o acesso aos muitos conflitos e às diversas questões que perpassavam qualquer mente tentando pensar política, história e sociedade no Brasil durante o golpe militar. Ao apresentar ao leitor o olhar do alter ego Hugo Mann, Francis muitas vezes expõe, quase vulnerável, seus próprios pensamentos e contradições.
Para saber mais
ANDRADE, F. S. “Cabeças” são literatura ambiciosa de estilista único, Folha de S. Paulo Ilustrada, 1º fev. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0102200316.htm. Acesso em: 15 jun. 2024.
FERRAZ, G. G. Paulo Francis: o poderoso brigão. Revista Cult. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/paulo-francis-o-poderoso-brigao/. Acesso em: 15 jun. 2024.
LANIUS, Eduardo de Oliveira (2012). O profeta desacreditado: uma leitura do projeto ficcional de Paulo Francis. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/56021/000858642.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 15 jun. 2024.
PAULO, Eloésio (2022). “Indicado somente para maiores de 40”, por Eloésio Paulo sobre o livro “Cabeça de Papel” de Paulo Francis. UNIFAL-MG Indica, 16 fev. 2022. Disponível em: https://www.unifal-mg.edu.br/portal/2022/02/16/indicado-somente-para-maiores-de-40-por-eloesio-paulo-sobre-o-livro-cabeca-de-papel-de-paulo-francis/. Acesso em: 15 jun. 2024.
SÁ, N. de (2021). Brilhante e irresponsável, Paulo Francis publicou mais de 8.000 textos na Folha. Folha de S. Paulo, 12 fev. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/02/brilhante-e-irresponsavel-paulo-francis-publicou-mais-de-8000-textos-na-folha.shtml#erramos. Acesso em: 15 jun. 2024.
SADER, Emir (2014). Polêmica e escracho. Blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2014/03/14/polemica-e-escracho/. Acesso em: 15 jun. 2024.
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