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Boca do Inferno

MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Marina Maximiano Ferreira de Souza
Ilustração: Marcio Vaccari

Ana Miranda (Fortaleza, CE, 1951) é uma multifacetada artista brasileira, conhecida tanto por seus trabalhos como atriz quanto por sua carreira literária como romancista, cronista e poeta. Ela estreou no cenário literário com a coletânea de poemas Anjos e demônios (1978), mas seu reconhecimento se deve principalmente aos romances. Seu primeiro romance, Boca do Inferno (1989), permanece como sua obra mais celebrada, tendo sido traduzida para diversos idiomas e lhe rendido o Prêmio Jabuti na categoria Revelação, em 1990. Miranda consolidou-se no gênero da ficção histórica com obras que dialogam com a história brasileira, como Desmundo (1996); e com obras que ficcionalizam os escritores do cânone nacional, como o romance Boca do Inferno (1989), cujo título se refere à alcunha de Gregório de Matos, e como o romance A última quimera (1995), cujo título se refere a um dos versos do poema “Versos íntimos”, de Augusto dos Anjos.

O livro Boca do Inferno se passa na Bahia do século XVII, durante o período barroco, e tem como protagonistas o poeta Gregório de Matos e o jesuíta António Vieira. Os personagens se veem envolvidos em uma trama de assassinato e disputa política. A narrativa é estruturada em seis partes: “A cidade”, “O crime”, “A vingança”, “A devassa”, “A queda” e “O destino”. Cada parte começa com um texto introdutório e é dividida por capítulos ou subcapítulos, com exceção da última, um “epílogo”, narrada em um único bloco e separada apenas por asteriscos.

Antes de iniciar a primeira parte, há uma dedicatória: “para Rubem Fonseca”. Em entrevista concedida a Susana Souto Silva, “Pelos caminhos da ficção e da História: entrevista com Ana Miranda”, a autora revela que trabalhou durante dez anos nos originais, sempre com o apoio de Fonseca, que acompanhou de perto a elaboração do livro. Também a obra Dias & Dias (2002) é inspirada no escritor. Segundo Miranda, o título desse romance está relacionado com um poema inédito de Rubem Fonseca, intitulado “Dias após dias”.

A primeira parte, intitulada “A cidade”, transporta o leitor para a Bahia de 1683, quase trinta anos após a expulsão dos holandeses. A autora, por meio de um narrador onisciente na terceira pessoa, combina a paisagem paradisíaca com “rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de árvores frondosas”, com a presença de demônios que “aliciavam almas para povoar o Inferno”. Em meio a esse contraste, são apresentados dois personagens da trama: o poeta barroco Gregório de Matos e o antagonista Antônio de Souza de Menezes, o “Braço de Prata”.

A segunda parte, intitulada “O crime”, narra o assassinato do alcaide-mor de Salvador por seus opositores, introduzindo-se, portanto, novos personagens à trama: a família Rascavo Vieira, os irmãos Brito, a dama de companhia Maria Berco, Luiz Bonicho e Donato Serotino. Essa parte também oferece uma descrição detalhada de Gregório de Matos, retratado com “cabelos tonsurados”, “elegante e limpo”, com um “rosto muito branco, testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, mãos gesticulando e pés delicados arrastando-se no chão como vassouras”. Ele ainda é descrito usando “um colete de pelica de âmbar”. A escritora, Ana Miranda, utiliza a intertextualidade para inserir fragmentos da poesia de Gregório de Matos na narrativa, além de expressões latinas de autores clássicos como Virgílio e Sêneca, enriquecendo a trama com essas referências literárias.

A terceira parte do romance concentra-se na vingança da família Menezes em resposta ao assassinato do alcaide. Enquanto na segunda parte destaca-se a figura do poeta barroco Gregório de Matos, nessa parte, a narrativa desloca seu foco para o jesuíta António Vieira, explorando aspectos da personalidade do padre, como sua aversão à violência: “Padre Vieira não toma parte pessoalmente em qualquer violência, talvez nunca tenha matado uma mosca”. A história de António Vieira, narrada nessa terceira parte do romance, é marcada pelo retorno de Portugal, onde o padre enfrentara um processo inquisitorial por acusações de judaísmo e superstições. Ao voltar de Portugal para a Bahia, ele se recolhe no convento dos jesuítas, afastando-se da política, levando uma vida de filósofo e ocupando seus dias reescrevendo sermões. Nas partes seguintes do romance, intituladas “A devassa” e “A queda”, o foco principal volta-se para a resolução da intriga.

A última parte, “O destino”, apresenta os desfechos de alguns personagens centrais envolvidos na trama, incluindo Gregório de Matos, António Vieira, Bernardo Ravasco, Antônio de Souza de Menezes, Antônio de Brito e Maria Berco. A narrativa encerra-se de forma circular, uma vez que, tal como na parte de abertura do romance, a cidade da Bahia é o foco principal. A alusão à cidade, no último parágrafo desse “epílogo”, fecha a narrativa e retoma o seu início: “A CIDADE DA BAHIA cresceu, modificou-se. Mas haveria de ser para sempre um cenário de prazer e pecado, que encantava todos os que nela viviam ou a visitavam, fossem seres humanos, anjos ou demônios. Não deixaria de ser, nunca, a cidade onde viveu o Boca do Inferno”.

Em Boca do Inferno, Ana Miranda usa uma combinação de narrador heterodiegético com a perspectiva de personagens, em particular com a de Gregório de Matos, criando a impressão de que o poeta possui voz narrativa. Esse recurso é evidenciado nos monólogos, nos diálogos e no uso do discurso indireto livre, nos quais Gregório de Matos expressa opiniões e críticas sobre questões políticas, sociais e religiosas. Por exemplo, em determinado monólogo, ele exclama: “O que ouço? Roçagares de saias? Ah, mulheres, minhas pretas”. Nos diálogos entre Gregório de Matos e outros personagens, a impressão que o texto passa ao leitor é a de que o poeta assume a voz narrativa: “Lá vai o frade fodinchão, disse Gregório de Matos. Frade descalço pregando de meia. São uns velhacos. […]”. Além disso, o uso do discurso indireto livre mescla as ideias do narrador com as do poeta barroco, ocultando a presença autoral do primeiro e criando a ilusão de que o segundo está no controle da narração: “Esta cidade acabou-se […] Não é mais a Bahia. Antigamente, havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista”.

Ana Miranda demonstra uma habilidade notável ao explorar os pontos de contato entre ficção e história, utilizando uma linguagem rica e uma narrativa ágil. O romance mescla elementos históricos oficiais com ficção, incorporando citações em latim e expressões da época, como “Estás sentindo meu lampreão?” e “O que pretende vossenhor fazer, dom Antonio?”, contribuindo para uma ambientação verossímil. As descrições detalhadas dos locais, da época e dos costumes são marcas distintivas da obra, destacando-se a recriação minuciosa da cidade e seus arredores, assim como a construção autêntica de personagens históricos e fictícios. Para alcançar essa autenticidade, a autora recorre a uma grande quantidade de documentos históricos e livros que foram fundamentais para a pesquisa do romance. A fusão de dados históricos com a imaginação literária resulta em uma narrativa que proporciona ao leitor uma imersão profunda no contexto histórico do Brasil colonial.

O romance é centrado no ano de 1683, durante o governo de Antônio de Souza de Menezes (1682-1684), e a ação se passa na Bahia, que, àquela época, tinha Salvador como capital da colônia brasileira. A Bahia é apresentada como um personagem em si, com descrições detalhadas que capturam a vida cotidiana, a arquitetura e as paisagens da época. A figura de Antônio de Souza, personagem retratado como um sujeito cruel e opressor, reforça a autenticidade histórica da narrativa, enquanto a inclusão de notícias de Portugal amplia o horizonte do romance. Críticas ao clero, dificuldades enfrentadas pelos engenhos, problemas relacionados aos escravos e questões envolvendo a Coroa portuguesa permeiam a narrativa, proporcionando uma visão crítica e aprofundada das complexidades sociais e econômicas da época. Boca do Inferno revisita um período marcado por governantes corruptos e resistência popular, oferecendo aos leitores uma jornada enriquecedora pelo passado do país. Com uma narrativa detalhada e uma linguagem cuidadosamente construída, a escritora Ana Miranda revela aspectos pouco conhecidos, e até desconhecidos, da história. A obra lança luz sobre o contexto histórico da época e convida os leitores a refletirem sobre as situações políticas e sociais do Brasil colonial, transformando a leitura em uma experiência profunda de descoberta.

Para saber mais

MIRANDA, Ana (2013). Pelos caminhos da ficção e da história: entrevista com Ana Miranda. [Entrevista concedida a] Susana Souto Silva. Revista Leitura, [S. l.], v. 1, n. 49, n.p. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/958. Acesso em: 15 jun. 2024.

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Como citar:

SOBRENOME, Nome.
Boca do Inferno.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

13 mar. 2025.

Disponível em:

3417.

Acessado em:

19 maio. 2025.