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A secura dos ossos

GODINHO, Sandra. A secura dos ossos. São Paulo: Patuá, 2022.

Sheila Jacob
Ilustração: Isis Gamell

Sandra Godinho (São Paulo, SP, 1960), escritora radicada em Manaus desde 2003, é um dos principais nomes da literatura brasileira de autoria feminina produzida na Amazônia no início do século XXI. Ela já publicou mais de dez livros, entre romances e coletâneas de contos, e tem denunciado, em algumas de suas obras de ficção, a destruição da natureza e as múltiplas formas de violência contra os povos indígenas do Brasil. Tocaia do Norte (2020), vencedor do Prêmio Manaus de Literatura e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, por exemplo, aborda a violência contra os povos Waimiri-Atroari praticada durante o período da ditadura militar para a construção da BR-174.

Publicado dois anos depois, seu sétimo romance, intitulado A secura dos ossos, narra, de forma ficcionalizada, o Massacre de Haximu, ocorrido em 1993 por garimpeiros contra os Yanomami na fronteira do Brasil com a Venezuela. Trata-se da primeira condenação pelo crime de genocídio registrada na história do Brasil. O fato histórico que serve de mote para a criação literária da autora está relatado nos livros A queda do céu, de autoria de Davi Kopenawa e Bruce Albert, e Haximu, de Jan Rocha, conforme nota presente ao final da edição. A secura dos ossos foi finalista do Prêmio Leya 2022 e apresenta tal violência por meio de uma prosa repleta de lirismo. Sandra Godinho já anunciou que em breve será publicado o terceiro título dessa trilogia baseada em massacres indígenas, dessa vez centrado na violência sofrida pelos Cinta Larga, em Rondônia.

As três epígrafes de A secura dos ossos antecipam os caminhos literários que serão percorridos por quem se embrenhar pela narrativa. A primeira, do xamã yanomami Davi Kopenawa, denuncia a degradação da natureza pelo homem, o que resultará, segundo o indígena, na destruição da própria humanidade. A segunda, assinada pela autora, trata dos múltiplos sentidos da viagem empreendida pela protagonista: “A busca às origens é também uma busca de valores”. E a terceira, por fim, faz referência à Macondo de García Márquez em Cem Anos de Solidão (1967), antecipando a presença de elementos do realismo mágico aos quais a escritora recorre para caracterizar personagens e descrever cenários, além de conduzir seus leitores pelas trilhas da cultura e da cosmovisão yanomami.

A trama é narrada em primeira pessoa por Tainá Terra, a protagonista de 17 anos que mora em Encantado das Almas, uma “aldeia perdida dentro da selva” amazônica, banhada pelo rio Uraricoera. Habitada por brancos, a localidade é marcada por uma tensão constante, já que fica localizada entre os garimpeiros de um lado, “que desciam com suas voadeiras tocando o terror pelas margens do rio”, e os Yanomami do outro, “que invocavam, em solidão e silêncio, o despertar das almas e dos espíritos da floresta para a defesa da terra e da natureza, a responsável por sua sobrevivência”. Nesse lugar fictício, fronteira entre mundos distintos, o solo era argiloso e os corpos dos mortos, que não se desfaziam, eram plantados em pé, à espera da ressurreição. Os idosos da região perdiam a visão com o passar do tempo e lá também as crianças aprendiam a linguagem dos animais antes de balbuciarem as primeiras palavras humanas, “como demonstração de devoção (e pureza) à terra em que viviam”.

A jovem mestiça, filha de branca com indígena, é criada pelo avô depois de ter sido deixada pela mãe, Ama(na) Terra. Certo dia, ela resolve partir do vilarejo para tentar encontrar essa mãe desaparecida, empreendendo uma “viagem sem volta” em busca de sua própria história. A personagem, que possui um olfato extremamente apurado, capaz de antecipar o cheiro de morte e desvendar a alma das pessoas, é acompanhada em sua jornada por Tião Rocha, garoto que não sentia dor de natureza alguma e, ambicioso, sonhava em desbravar o mundo, em busca de riquezas. “Tião pôs a voadeira em movimento, acionando o motor de popa em busca do futuro. Eu me preparei para buscar o passado”, destaca a narradora. Em diálogo travado no início dessa jornada, Tainá já prevê, por meio de sua sensibilidade olfativa, os (des)caminhos que levarão o companheiro de viagem a seguir por trilhas opostas à sua. “À medida que ele falava, contando suas glórias de adulto malformado, senti o odor de Tião se transformar diante do meu nariz. De um barro molhado para um cheiro de sangue metálico e tão insuportável, que quase me fez vomitar”.

Durante percurso rio adentro, os dois jovens são capturados como prisioneiros pelos Yanomami ao pisar em territórios alheios, sendo por eles vistos como “povo das mercadorias, dos comedores de terra”. A imagem de Tainá, que vinha do mundo dos brancos, é apresentada à própria protagonista por uma voz misteriosa, vinda de dentro, que traz ensinamentos sobre a cultura e a visão de mundo yanomami, e toda vez que aparece no livro é grifada em itálico: “Mas os brancos gostam de arrancar a pele da floresta com máquinas, deixando sobre ela as pedras, a areia e a secura, não entende que o orvalho fresco é a semente que a fecunda, preservando sua fertilidade. […] Se o frescor acabar, a terra ficará estéril. Não dará mais nenhum alimento e todos morremos”. A partir desse encontro Tainá descobrirá que, diferente do que havia escutado durante sua vida inteira, eram os brancos os verdadeiros selvagens, pois não sabiam viver em comunidade, não cultivavam a empatia e exploravam, sem limites ou pudores, os recursos naturais.

Através da convivência com aqueles que a mantinham prisioneira, especialmente o xamã da aldeia e a jovem Luara, a protagonista adentra no território, nos hábitos, na cosmologia e no repertório yanomami: “A floresta respirava, tão viva quanto eu, que prosseguia enfileirada aos guerreiros e com o coração querendo saltar pela boca, demasiadamente pulsante. Seguia com meu peito no presente e no passado, com a voz de minha mãe me dizendo aos ouvidos que Urihinari, o ser da floresta, era soberano, e que o espírito do sol – Moth okari – tinha a língua ardente”.

O deslocamento geográfico da jovem se traduz, portanto, em travessias históricas, culturais, identitárias e linguísticas, pois são outros mundos, tão perto e ao mesmo tempo tão distantes do seu, que lhe são revelados nesse processo de despertencimento, como a própria narrativa caracteriza. Tião Rocha, por outro lado, recusa todos os convites para penetrar nesse outro universo com peito aberto e olhos e ouvidos atentos, como sua companheira de viagem fazia. Depois de tanto tramar, o jovem finalmente consegue fugir da aldeia, guiado o tempo inteiro pelo desejo de explorar o ouro da região. Tainá só o reencontrará um tempo depois, já tornado garimpeiro e totalmente seduzido pela ganância, como ela havia previsto. 

O processo de transformação da jovem Tainá se dá, entre outros motivos, ao beber o pó de yãkoana, alcançando assim um estado supremo de sabedoria para poder acessar os xapiri, espíritos de tudo que já foi vivo um dia, detentores da sabedoria ancestral. Por meio dessas experiências ela consegue conhecer o passado e ampliar seu olhar para o presente, encontrando respostas para as perguntas que a haviam levado até ali. Em dado momento ela se descobre “uma filha em escombros, xamã em formação, menina em desaviso de sina”, desvendando o paradeiro da mãe, conhecendo a identidade do pai e entendendo que aquele era seu novo lar. Cabe ressaltar que as passagens referentes aos momentos sublimes, de contato com os espíritos locais, se destacam na materialidade da obra com uma diferença de formatação: tais registros são inscritos com fonte branca em páginas com fundo preto, demarcando visualmente a diferença de linguagens e saberes mobilizados nessas visões, que a tornavam “diferente da menina que tinha chegado” ali.   

Em um desses momentos de revelação, Tainá testemunha – e os leitores também – o crime que vinha sendo antecipado ao longo da narrativa pela caracterização da relação exploratória dos homens brancos com a floresta. Trata-se do massacre de Xapiri, quando doze yanomami (entre mulheres, crianças e um bebê) são assassinados por Tião Rocha e seus companheiros de garimpo. Eles procuravam vingança depois do assassinato de um deles por indígenas que, por sua vez, vingavam companheiros mortos em uma emboscada. “Era um desajuste; mais do que isso, era uma vergonhosa atrocidade que minha aldeia estava prestes a enfrentar”. Aos mortos nesse episódio foi concedida a festa funerária tradicional, ritual necessário para que os seus espíritos pudessem descansar em paz. À Tainá, e aos leitores da obra, cabe espalhar as histórias do sofrimento e despojo do povo yanomami e de outras etnias indígenas, tragédias que há séculos se repetem sem cessar e que têm, na literatura de Sandra Godinho, um espaço de denúncia e revelação.  

Para saber mais

ANDREATTA, Elaine Pereira; SANTOS, José Benedito dos; OLIVEIRA, Rita Barbosa de [Orgs.] (2022) Cartografias do Norte: a produção literária de Sandra Godinho. São Carlos: Pedro & João Editores.

ROCHA, Jan (2007). Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas consequências. São Paulo: Ed. Casa Amarela.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras.

Iconografia

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Como citar:

SOBRENOME, Nome.
A secura dos ossos.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

13 mar. 2025.

Disponível em:

3413.

Acessado em:

19 maio. 2025.