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A palavra que resta

GARDEL, Stênio. A palavra que resta. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Cláudio Rodrigues

A palavra que resta (2021) é o primeiro romance do escritor cearense Stênio Gardel (Limoeiro do Norte, CE, 1980), agraciado com o prêmio norte-americano National Book Award por sua tradução para o inglês em 2023, o que acabou por projetá-lo internacionalmente. O enredo, em primeiro plano, é centrado na difícil história de amor de Raimundo e Cícero, ambientada no sertão nordestino. Em segundo plano, trata das agruras enfrentadas por Raimundo para aprender a ler e desvendar o conteúdo da carta que Cícero lhe deixara ao se separarem.

No presente da narração, Raimundo Gaudêncio de Freitas está com 71 anos e escreve com dificuldade seu nome, com “um traço incerto, arredio ao toque do papel”, pois apenas recentemente tomara coragem para aprender a ler e escrever, “essa invenção de aprender depois de velho”. O maior desejo era poder ler a carta que seu amado havia lhe deixado 52 anos antes, “uma carta inteira. […] A carta guardava uma vida inteira”. Entretanto, no decorrer da narrativa, o leitor vai testemunhar a aceitação e compreensão de uma identidade que nasce a partir da escrita.

Raimundo e Cícero viviam na mesma comunidade sertaneja, e suas famílias eram vizinhas. Eles se conhecem desde criança e, com a chegada da adolescência, brota a paixão que perdura em um relacionamento amoroso às escondidas, interrompido quando ambas as famílias descobrem o que consideram um ato “imundo”. Castigado pelo pai e rejeitado pela mãe, que inclusive culpa sua “sujidade e impureza” de ter sido a causadora da morte de seus irmãos gêmeos alguns anos antes, Raimundo decide partir da casa paterna. Passa a trabalhar como ajudante de cargas, viajando com motoristas de caminhão pelo Brasil afora, sem outro destino senão o de sobreviver. Em um desses episódios, conhece a travesti Suzanný, com quem passa a morar e, finalmente, assume publicamente sua orientação sexual.

Fugindo da narração cronológica dos fatos, A palavra que resta possui um fluxo narrativo vertiginoso, entremeando os pensamentos de Raimundo, seu vaivém entre passado e presente dos fatos e as demais vozes que surgem na trama em discurso direto ou indireto livre. Segundo Diego Barbosa (2021), em matéria sobre o romance, isso explicaria a presença constante da oralidade na obra, que descortina uma “cartografia do preconceito e do silêncio”, desvelando um “machismo onipresente e feroz, além de se constituir como um retrato do Brasil profundo”.

 A palavra que resta trata de faltas: da palavra, do entendimento, da aceitação de um universo que nos é desconhecido e das possibilidades de amor que ainda são condenadas em nossa sociedade. A busca do protagonista pelo corpo da palavra é igualmente a busca por si mesmo, por compreender sua própria história e poder contar a todos que está apaixonado, mesmo que não haja “palavra que chegue [mas] o jeito é catar as poucas que tem e falar”. Caso essas palavras não deem conta, “se for preciso a gente briga, que não dá mais pra ficar apartado um do outro, pra separar vão ter que cortar nós dois, na carne, ir arrancando os pedaços da gente”.

 Os pedaços de carne de Raimundo são realmente arrancados nas surras contínuas que o pai lhe dá, tentando expurgar esse mal e “imundície” de seu corpo. No entanto, o desejo por Cícero e pela palavra, que se confundem o tempo todo na narração, só aumenta apesar da frustração de não poderem ser vivenciados: “e o estudo foi passando por mim desse jeito, a vontade tão perto, a escola se aproximando e se afastando”. O esforço incessante de elaborar sua história vai se construindo pelo pensamento que procura pelas palavras certas, mas que não saem de sua boca, porque elas permanecem “gritando aqui dentro […] gosto de Cícero sim, meu corpo pede o dele sim, forte, macho, duro, montando em cima de mim”.

A estrutura do romance é composta por quatro capítulos. No primeiro, presente e passado são intercalados para contar a história de Raimundo na comunidade sertaneja onde nasceu. No segundo, há uma volta a um passado mais distante, quando Raimundo conhece a trágica história do tio paterno. No terceiro, desenrola-se a vida de Raimundo após sair da casa dos pais e o encontro significativo com Suzanný. No quarto e último, Raimundo tece um longo monólogo com a família e com Cícero, após voltar à casa paterna para uma visita, explicando que amar alguém do mesmo sexo não “é pra ser coisa de morte, é pra ser coisa de vida”.

Um dos pontos de convergência da trama é o encontro com Suzanný, figura que ameaça a verdade que Raimundo insiste em esconder. O corpo híbrido da mulher trans permite que a personagem se questione sobre sua própria sexualidade; contudo, é a coragem da nova amiga que o anima a se assumir e seguir em frente para escrever sua própria história. Enquanto no presente da narração Raimundo se sente envergonhado de voltar à escola para aprender a ler na velhice, ela lhe explica que a vergonha “é sentimento que não se aproveita” e que a única vez em que se sentiu envergonhada foi ao tentar explicar ao pai sobre seu desajuste como uma mulher num corpo masculino, utilizando a imagem de um copo cheio de pedras. As pedras, segundo ela, não se ajustam ao copo como a água, elas deixam espaços vazios e “eu me sinto pedra dentro do meu corpo”. Por não ter tido a coragem necessária de se assumir diante do pai, acaba sendo expulsa de casa: “Ele só viu a vergonha […] Quem é que quer viver com vergonha dentro de casa? Chutou ela pra fora e me arrastou junto, pronto, de que me serviu a vergonha?”.

Suzanný torna-se a colega de casa que aconselha e orienta, e na qual Raimundo se espelha para começar a mudar o rumo de sua vida. A decisão de assumir sua homossexualidade é equiparada à de se alfabetizar, “é quase como eu aprendendo a ler e a escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia?”. Poder conversar abertamente com Suzanný é libertador, porque “as palavras tinham um som diferente quando eram iguais às palavras de dentro de mim”.

Conforme se formam as palavras libertadoras em seu próprio pensamento, o protagonista de A palavra que resta começa a costurar sua própria narrativa. A visita à casa paterna e o reencontro com a irmã Marcinha depois de décadas vão descortinando diálogos com o passado nos quais ele busca por sua identidade, sempre munido da correspondência que, na leitura de Natalia Timerman (2021), comporta o futuro de uma vida inteira que já se tornou passado. O “silêncio portado por carta não lida se torna vazio”, que só poderá ser preenchido pelas palavras do romance que transbordam como as cheias do rio na cidade natal, que demarca a vida com os encontros furtivos dos amantes e a morte devido à grande tragédia vivida pela família Freitas.

As águas do rio, bem com as da cheia que inundam a casa paterna, marcam o antes representado pela cruz, a morte e a impossibilidade de se viver um amor que se repete a cada geração da família de Raimundo, e o depois, com as possibilidades de diálogo entre os amantes que vão sendo enunciadas. Um vazio que vai sendo preenchido pela escrita no caderno novo que ele ganhou de Suzanný, no qual versões do reencontro dos dois vão sendo registradas, e a voz de um Cícero ausente surge mencionando a correspondência: “ele vai ouvir o que escrevi na carta, vai ouvir e vai vir me pegar, pra gente sair desse fim de mundo e ser feliz”.

A palavra que resta ultrapassa qualquer classificação como romance de gênero ou literatura queer por penetrar na essência de seres múltiplos, ampliando os horizontes de compreensão do humano mediante um texto poeticamente elaborado que evoca as mais belas imagens universais da literatura para abordar temas como amor, autoaceitação, violência e exclusão social. Assim, a carta, o rio, a cruz, o cinema e os corpos se materializam na escrita de Raimundo Gaudêncio de Freitas através de um olhar que revela ternura e dor, mas, acima de tudo, a coragem de assumir quem se é.

Para saber mais

BARBOSA, Diego (2021). A palavra que resta, de Stênio Gardel, e a força da carta que guarda uma vida. Diário do Nordeste, Fortaleza. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/a-palavra-que-resta-de-stenio-gardel-e-a-forca-da-carta-que-guarda-uma-vida-1.3074140. Acesso em: 30 abr. 2024.

BEZERRA, Thátilla Ruanna Dias (2023). Homofobia familiar em A palavra que resta de Stênio Gardel. Revista Educação e Contexto, Goiânia, v. 2, n. 2. Disponível em: https://revistaseduc.educacao.go.gov.br/index.php/rec/article/view/109/67. Acesso em: 30 abr. 2024.

SUZARTE, Eduardo Mezzavilla (2022). A fragmentação do romance em A palavra que resta, de Stênio Gardel. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

TIMERMAN, Natalia (2021). As tantas margens do rio. Quatro cinco um, n. 46. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/literatura/literatura-brasileira/as-tantas-margens-do-rio/. Acesso em: 14 jun. 2024.

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Como citar:

HAMPEL, Juliana Florentino.
A palavra que resta.

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brasileira 

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Brasília. 

10 mar. 2025.

Disponível em:

3312.

Acessado em:

19 maio. 2025.