LISBOA, Adriana. Sinfonia em branco. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
Papoula Rubra
Ilustração: Liana Abreu
Uma pintura na memória de Tomás, artista de meia-idade frustrado, autoexilado em uma cidade sem nome no interior do Rio de Janeiro, inicia o romance Sinfonia em branco. Ele pensa na musa de sua juventude, Maria Inês, e o curso da narrativa poderia ser mais uma escrita sobre um artista ou intelectual desiludido apaixonado por uma mulher impossível. Contudo, os atravessamentos do tempo e do espaço pouco a pouco transformam o que seria um clichê em uma imersão histórico-psicológica. Uma narrativa que conjuga passados e presentes, intimidade familiar e contexto social, para dizer da experiência de duas mulheres, de duas irmãs. O que seria um lugar-comum do homem incompreendido e mal-amado é substituído pela pergunta que aos poucos se instala, ainda que imprecisa nas palavras, na mente e nos afetos do leitor: qual a dimensão dos impactos de um abuso infantil?
Fiel ao título escolhido para sua trama, Adriana Lisboa (Rio de Janeiro, RJ, 1970) promove uma ópera literária. Sinfonia em branco, vencedor do prêmio José Saramago, é o segundo romance da autora, também finalista do Prix des Lectrices de Elle (França) e PEN Translation Award (EUA), além de traduzido para o inglês, alemão, árabe, italiano, francês, romeno, turco, espanhol, croata, polonês e esloveno (direitos vendidos também na China, Albânia, Índia e Ucrânia).
O primeiro capítulo apresenta as personagens e os contextos. Tomás é obcecado pela imagem da pintura de Whistler, A garota de branco, ou Sinfonia em branco nº 1. E, apaixonado pela obra de arte que enxerga em Maria Inês, ele pensa em pintá-la até acabar-se, perdido, desolado numa pintura que começou antes dele, antes do encontro com a moça de branco cujo vestido fora da irmã dela, Clarice. Maria Inês era uma menina ousada e tornou-se uma mulher rica. Casou-se com o primo de segundo grau que desde o início de sua apresentação no livro está com ela. Na infância, plantaram uma árvore de dinheiro (parece que deu certo).
É a partir da irmã de Maria Inês, a Clarice − personagem que inicialmente parece coadjuvante −, que a narrativa começa a tomar forma. Ela tem marcas no punho, sugerindo uma tentativa de suicídio, mas isso não é dito. É divorciada de Xavier, sobre o qual só sabemos ter uma caminhonete vermelha, o que também não é dito diretamente. Os silêncios diante dos tabus são reproduzidos na escrita de Lisboa, ambientando-nos na relação familiar de silêncios opressores e amor anêmico no qual vivem as irmãs.
O cenário da infância de Maria Inês e Clarice sobrevive pela herança. Clarice mora por ali e Tomás, sabe-se lá a razão, compra parte da terra de sua ex-amada. Tudo parece pairar em torno de Maria Inês, quando ela está presente nas imagens passadas e atuais ou nas memórias daqueles que, isolados no interior, elaboram dela a ausência, o afastamento, o magnetismo que exerceu sobre eles. Maria Inês é uma incógnita sedutora, trabalhada estrategicamente para levar o leitor, num caminho sem volta, às evidências explícitas da incógnita real, da qual ele, talvez, se soubéssemos de cara, fugiria.
A escrita da autora não marca diálogos ou transições no tempo. São os personagens em momentos temáticos que demarcam a divisão interna do capítulo. Quanto ao tempo presente/memória e diálogos, estão no meio do texto, numa fluidez de correnteza que não autoriza o dispersar da leitura. Lisboa, bacharel em música, especialista em flauta transversa, mestre e doutora em literatura, também sabe pintar, e é o que faz a partir desta narrativa. Furtiva e sorrateira, tal as estradas de terra oscilantes no clima entre a poeira e a lama, Sinfonia em branco confronta o leitor e sua inesperada ingenuidade, lembrando-o repetidamente de que nem tudo o que parece é e, aquilo que é, pode ser insuportável ao ponto de só aceitarmos sua existência como a ilusão de um pesadelo. Ciente de nossa fragilidade diante de realidades hostis, a autora mostra o inadmissível, utilizando-se da artimanha de pinceladas de romance e drama, só para nos levar a olhar o que nos recusaríamos a ver se soubéssemos antes.
No terceiro plano, uma pedreira na paisagem de fundo terminando num abismo onde borboletas coloridas vertiginosas se lançam nele. Em segundo plano, uma casa de colonos indigna do título, apenas um banheiro, simples, quadrada, quase morta tais as cores pastéis da obra que se revela, pouco a pouco, lentamente, alcançando o primeiro plano, que encerra uma família nuclear interiorana: um pai silencioso e mirrado; uma mãe delgada, com todos os atributos para ser bela sem sê-lo; duas crianças, duas meninas, duas irmãs, futuras mulheres feitas de água e sal; cozinheiras-empregadas que fazem parte da família sem nada ganhar dela para além da obrigação. A pobreza do entorno, convivendo impassível, banal, como uma criança sem pernas que consegue segurar a fralda; uma família na rua; uma irmã no sinal pedindo dinheiro, vendendo chiclete, no Rio de Janeiro – território transitório que corta o espaço-tempo de Sinfonia em branco. Menos que banal, o lugar ignoraria o regime militar acontecendo, alheio a tudo, afinal, era uma fazenda em uma cidade fora do mapa.
A pintura surpreende melodiosa, revela ardilosamente não ter molduras e sequer ser óleo sobre tela, compõe o cenário opaco de uma ópera melancólica, dura, triste, jamais melodramática. É proibido o extremo das emoções. Proibido, um refrão. A sinfonia ocasionalmente se manifesta explicitamente por meio de trilhas sonoras mencionadas pela autora, não autoriza desgrudar os ouvidos dos olhos, música erudita chiclete revelando clichês deformados nos tempos tramados sem pudor, uma trama quase cruel que captura a pessoa leitora naquele cenário, o mesmo que engoliu Tomás.
O que quer essa ópera sufocada por cheiros de tinta, formalidades, abandonos e violências negligenciadas? Sadismo da autora impelir seus leitores, instalando-lhes a vertigem das borboletas abismais, a náusea viajante entre tempos-trauma a olhar pela porta entreaberta junto à Maria Inês, nos levando a macular o branco ingênuo das fantasias sociais? O romance pinta, canta, toca, dança, sem paixão, fulgor ou emoções exacerbadas (proibidas), entre longos silêncios absolutos ou ruidosos, um realismo cru, belo por sua composição, em que não se poderia imaginar beleza alguma.
Situa o eco das consequências de uma violência em vidas que a ultrapassam, que jamais se pensariam afetadas por ela, a ausência de remorso do agressor sustentado em uma cultura de pudor hipócrita e na infantilização do masculino – responsável por nada, exceto, em certas conjunturas, por prover. Seriam as borboletas diante do abismo, recorrentes na narrativa, o refrão que, entre os outros presentes no romance, expressam esse eco? Uma menção ao efeito borboleta?
Sinfonia em branco, no olho da produção literária contemporânea, aproxima-se da obra de arte modernista que a tia Berenice, abandonada pelo noivo, músico argentino, não apreciava, mas engoliu por ele. As mulheres ali engoliram segredos mais devassos por um “ele” e de outro Ele invisível, na figura do pai, do filho e do espírito santo, também. Cada uma teve um destino, uma reação, um posicionamento no mundo.
As palavras armadas pela narradora, sem muitas inferências políticas diretas, centradas na trama, nas personagens, na história, na estilística do texto-pintura-música, enfim ópera, encenam mulheres diante de suas condições desafortunadas no plural, deslocadas da condição unívoca Mulher, confundindo essa percepção residual que invisibiliza existências femininas ante as trajetórias únicas das personagens. Devastadoras que sejam suas trilhas, são construídas por elas, ao menos a partir de algum momento ou que seja por um mísero instante “Do tamanho de um gesto de perfume que uma mulher largasse no ar”.
Para saber mais
FÉLIX, Regina R. (2011). Tom, volume e arranjo no chiaroscuro da memória: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 37, janeiro-junho, p. 93-103. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9732/8595. Acesso em: 20 maio 2024.
GUIZZO, Antonio Rediver; MELO, Milena Karoline de Moura; FERREIRA, Marcela da Fonseca (2020). Quem é Lina? O apagamento da violência contra a mulher negra como denúncia social em Sinfonia em branco de Adriana Lisboa. Memorare, Tubarão, v. 7, n. 1, jan./jun., p. 223-238. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/341555826_Quem_e_Lina_O_apagamento_da_violencia_contra_a_mulher_negra_como_denuncia_social_em_sinfonia_em_branco_de_Adriana_Lisboa. Acesso em: 20 maio 2024.
LOUSA, Pilar Lago e (2019). Rompendo silêncios: questões de gênero e memória em Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa. Revista de Estudos Literários da UEMS, Campo Grande, [S. l.], v. 3, n. 20, p. 30-51. Disponível em: https://periodicosonline.uems.br/index.php/REV/article/view/3156. Acesso em: 20 maio 2024.
SANTOS, Deivis Nascimento; AFONSO NETO, João Paulo (2014). Sinfonia não-reconciliada: o tempo aiônico no romance Sinfonia em branco de Adriana Lisboa. Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade, Igarapé, v. 3, n. 2, p. 289-305. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/867. Acesso em: 20 maio 2024.
Iconografia