LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
Sayuri Grigório Matsuoka
Ilustração: Cláudio Rodrigues
Osman Lins (Vitória de Santo Antão, PE, 1924 – São Paulo, SP, 1978) nasceu no dia 5 de julho e, 16 dias depois, morreu sua mãe, Maria da Paz Mello Lins, aos 18 anos, em decorrência de complicações no parto. Além do filho recém-nascido, a jovem deixava mais de duzentos poemas, destruídos pelo esposo devastado pela dor da perda. Essa tragédia familiar talvez seja uma das razões pelas quais Lins fez da literatura um sacerdócio e da palavra, uma obsessão.
Em 1956, publica O viajante e, a partir daí, sua obra converte-se em um compromisso reiterado com a busca pela expressão mais apurada dos temas escolhidos. Há, entretanto, em meio aos quase trinta livros publicados pelo autor, três romances que se destacam por apresentarem um universo ficcional que se expande inadvertidamente além dos limites impostos pela forma: Nove, novena (1966), Avalovara (1973) e A rainha dos cárceres da Grécia (1976). Desses, Avalovara tem sido apontado pela crítica como a obra-prima do escritor.
Nesses romances, o traço perfeccionista de Lins faz-se sentir pelas frequentes reflexões sobre a escrita e sobre a impotência diante da inefabilidade da linguagem. Em Avalovara, pode-se dizer, consagra-se um estilo hermético em que os meandros narrativos usuais são definitivamente substituídos por construções experimentais. Nesse sentido, há um esforço contínuo em transfigurar as fórmulas conhecidas na expressão literária ficcional. O texto abre-se ao leitor por meio de epígrafes que bem poderiam indicar os temas presentes na obra: a reflexão sobre o romance, os mistérios do mundo, o papel da palavra no desvendamento desses mistérios, o amor e a presença de uma simbologia mágica dos números na ideia do cosmos.
Esse último aspecto, aliás, remete à frase em latim com a qual o leitor se depara na página seguinte, inserida em duas figuras, uma espiral e um quadrado. O quadrado, enquanto representação geométrica plana, constitui uma convenção imagética de uma abstração que se configura culturalmente como alusão ao que limita, ao que restringe e ao que prescreve. Seria, portanto, a representação simbólica do poder de contenção ilusório da língua diante das ideias, dos sentimentos e das sensações. Essa visão do texto enquanto meio limitante da realidade foi descrita por Lins, em entrevista a Edla Van Steen (2008), como uma jaula que comporta animais selvagens, com todos os seus instintos e reações sofreados, mas vivos e atuantes. Considerando-se as reflexões de um dos narradores sobre o ato da escrita, essa analogia poderia ser entendida como a necessidade da forma no fazer literário em um dado momento do aprendizado da escrita. Ao leitor, Lins oferece, em meio a esse embate entre limitação da forma e expressividade da criação, uma busca incessante pelo casamento feliz entre palavra e ideia. O resultado é uma experiência de liberdade para o leitor, que se depara com a riqueza de possibilidades significativas oferecidas pelo texto.
Indo além nessa investigação da importância das representações espaciais na obra, poder-se-ia pensar no quadrado como uma alusão às fórmulas estéticas europeias assimiladas, regurgitadas e cuspidas no processo de formação artística nacional, fator importante para a reflexão sobre a necessidade na criação literária de se desvencilhar dessas fórmulas para se pensar o sentido decolonial da literatura.
Inserida no quadrado, mas escapando aos seus limites, está a espiral, figura constituída por círculos em continuidade. Em uma perspectiva arquitetônica, esse modelo tem como qualidade o acréscimo de novas funções a cada volta. Em literatura, poderíamos considerar essa propriedade como um chamado à interação. No romance, a seleção criteriosa do vocabulário, estratégias como o uso de símbolos e a intercalação de títulos repetidos, além da construção narrativa polifônica (Bakhtin, 2010), exigem do leitor colaboração permanente. Observe-se aqui a importância da leitura nesse ato colaborativo que tem como objetivo também a interpretação. Sem esse movimento, a alusão ao processo de engenharia da linguagem literária não poderia, por exemplo, recuperar a referência a poemas de João Cabral de Melo Neto em que são nítidos os processos de racionalização estética.
Em Avalovara, além dessa requisição à participação do leitor para a construção de sentidos, pode-se entender a espiral como uma representação simbólica da infinitude, que também pode ser percebida a partir da repetição da frase SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, inscrita no quadrado e que, lida e relida à exaustão, acaba por se tornar uma espécie de mantra cuja sonoridade circular conduz o leitor ao esquecimento da ruptura, do fim.
Nessas aproximações, Avalovara parece encontrar em alguns pontos o Ulisses de Joyce para aí ajustar-se, em uma acepção comparativista, a uma ideia autorreflexiva da linguagem literária, não apenas em um jogo de contiguidade literária, mas como meio epifânico da existência. Nesse sentido, tem-se em Avalovara um significado metafísico da literatura em que “eu” e “escrita” fundem-se para alcançar uma verdade ansiada ou preencher um vazio existencial, tudo circunspecto à apresentação e à síntese de um modelo estético que aproxima o paradigma europeu do brasileiro, sobretudo o nordestino, com o desenvolvimento de técnicas tomadas às atitudes e não às formas propriamente. É, portanto, um romance que faz uso do monólogo interior e que, assim como o Ulisses de Joyce, descreve um percurso adivinhatório que desemboca num sentido transcendente. Esse aspecto hierático da escrita lembra ainda o sagrado da literatura em Borges na Biblioteca de Babel e no Evangelho de Marcos. O romance presta-se, então, a essa intertextualidade que cita por alusão para dar continuidade ao sentido interrompido pela limitação das páginas e do livro.
Reunindo diferentes técnicas, Avalovara traz um experimentalismo que se estrutura na aproximação entre os modelos europeus vanguardistas e na criação literária da América Latina, sendo também sua estrutura de jogo e a independência temporal entre as sequências motivo de associação ao Rayuela, de Cortázar.
Os três elementos, as palavras, o quadrado e a espiral também encerram chaves de compreensão para o texto do romance que se articula em torno do encontro entre Abel, Anneliese Roos, Cecília e ʘ. Cada uma dessas mulheres tem sua materialidade textual constituída em processos de figuração poético-simbólica. Anneliese Roos, alemã, em quem Abel reconhece cidades europeias e com quem estabelece uma comunicação frustrada ao tentar falar do nordeste brasileiro, sentindo as limitações das palavras e os distanciamentos culturais. Cecília, ou Cercília ou Ercília, confunde-se com Olinda. A tensão erótica entre os diferentes eus de Cecília e Abel realiza-se em todas as suas possibilidades de gênero até consubstanciar-se na morte. ʘ, a terceira amante, paradoxalmente é ser de palavras, é construída narrativamente como pessoa, mas num jogo labiríntico de inversão configura-se como texto para Abel. Esse artifício atende à menção à espiral, atribuindo-lhe mais um significado e mais uma chave de interpretação na narrativa. ʘ representa a escrita e sua propriedade circular.
Por meio dessa trama amorosa, concretiza-se o projeto do livro, que parece sintetizar o processo de formação do escritor nacional. Nesse sentido, Roos representa o contato com a forma imposta, colonizadora, os modelos a serem seguidos enquanto as habilidades literárias são desenvolvidas; Cecília, a descoberta identitária, a sujeição orgiástica aos prazeres da multiplicidade cultural e linguística. E ʘ, a transposição dessas informações e experiências para o texto artístico, receptáculo sagrado, em que tudo isso será escrito e transformado.
Para saber mais
BAKHTIN, Mikhail (2010). Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
BOSI, Alfredo (2014). O Osman Lins que conheci. Eutomia, Recife, 13 (1): 172-176, jul. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/EUTOMIA/article/view/630. Acesso em: 20 jul. 2024.
CORTÁZAR, Julio (2003). Rayuela. Madrid: Cátedra.
DALCASTAGNÈ, Regina (2000). O tempo. In: DALCASTAGNÈ, Regina. A garganta das coisas: movimentos de Avalovara de Osman Lins. Brasília: Editora da UnB. p. 109-131.
STEEN, Edla Van (2008). Viver e escrever. v. 2. Porto Alegre: L&PM.
Iconografia