CALLADO, Antônio. Reflexos do baile. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
Eugenia Zerbini
Ilustração: Théo Crisóstomo
De certo modo, Reflexos do baile é um ponto fora da curva na obra de Antônio Callado (Niterói, RJ, 1917 – Rio de Janeiro, RJ, 1997). O autor, que sempre primou pelo estilo realista e pela narrativa linear, adota nesse romance um estilo fragmentário e uma forma anárquica, combinação que confere ao livro ares de alegoria e de romance experimental. O enredo é tecido em torno do sequestro, no Rio de Janeiro, de um diplomata estrangeiro por militantes contra a ditadura, com vistas à liberação de prisioneiros políticos. De fato, quatro desses sequestros ocorreram no Brasil entre 1969 e 1970. Se o alvo previsto era a rainha da Inglaterra (que realmente visitou o Brasil em 1968), a trama fez com que o sequestro recaísse sobre o embaixador norte-americano, durante o baile que dá título ao livro.
Publicado em 1976, Reflexos do baile segue o propósito de literatura abraçado por Callado de retratar a realidade política brasileira, no caminho inaugurado por Quarup (1967) e seguido em Bar Don Juan (1971). Em Quarup, o escritor se debruça sobre a vida de um jovem ao longo dos dez anos entre o suicídio de Getúlio Vargas e o golpe militar de 1964, culminando com sua adesão à luta armada. Em Bar Don Juan, o autor se detém sobre os projetos de contrarrevolução da intelectualidade carioca, diante do acirramento do regime, com a decretação do AI-5, em 1968. Reflexos do baile trata da ação concreta, ainda que delirante, contra a ditadura e suas consequências. Conforme o estudo crítico que acompanha uma das reedições do romance (2014), assinado por Ligia Chiappini, Callado foi uma “vocação empenhada”, como definida pelo crítico e professor universitário Antonio Candido de Mello e Sousa: uma ficção que se propõe a contribuir para o conhecimento e a descoberta do país.
Antônio Callado foi jornalista e trabalhou em jornais cariocas, na BBC londrina e na rádio francesa. Escreveu para teatro, além de ter dirigido a adaptação da Enciclopédia Britânica para a sua versão nacional, a Enciclopédia Barsa, lançada em 1963. Em seguida ao golpe de 1964, foi preso. Em 1968, como redator do Jornal do Brasil, foi enviado ao Vietnã para cobrir a guerra. Na volta, foi preso novamente. Como professor convidado, lecionou em Cambridge, na Inglaterra, e na Universidade de Columbia, em Nova York. Recebeu prêmios no Brasil e no exterior, ingressando na Academia Brasileira de Letras em 1994.
Em Reflexos do baile, Callado impõe ao leitor o dever de montar a narrativa com os elementos que ele disponibiliza. Ao oferecer, ao mesmo tempo, uma forma desafiadora e um conteúdo alegórico, o autor talvez almejasse driblar a censura da ditadura. O autor, na construção de sua narrativa estilhaçada, lança mão de cartas, páginas de diário, bilhetes e relatórios administrativos, banindo a figura do narrador. Embora haja uma proximidade com o romance epistolar, a obra não se enquadra totalmente nesse gênero. Por outro lado, sem receio de assumir ares de paródia, os personagens, caricatos, agem dentro de uma linha do tempo implodida. Há referências à carta de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento, ao traslado dos restos mortais de Pedro I de Portugal para o Brasil e à transferência do corpo de Inês de Castro. Esses elementos compõem um jogo entre o Pedro I da independência brasileira e o Pedro I do século XIV português. O baile da Ilha Fiscal, na véspera da queda do império brasileiro, no século XIX, é trazido à pauta porque o sequestro relatado no livro foi arquitetado para ocorrer durante um baile de gala. Os sequestradores, segundo os planos, providenciariam o corte de energia no Rio de Janeiro para facilitar o sequestro, da mesma forma que o capitão Pompílio de Albuquerque, republicano do final do império, planejou a explosão da rede carioca de gás para sequestrar a família imperial e declarar a República.
Nessa trilha tortuosa, é útil saber que a estrutura é dividida em três partes, separadas em função do baile e do sequestro: a véspera, a noite sem trevas e o dia da ressaca. São também três os grupos de personagens: diplomatas, terroristas e os elementos da repressão. Os nomes que aparecem no início dos documentos são os dos destinatários. Começando pelos diplomatas: o embaixador português, Antônio de Carvalhaes, tipo rançoso e reacionário, que manda cartas ao filho em Portugal. O diplomata brasileiro aposentado, Rufino, que escreve um diário, perdido nas lembranças dos fidalgos antepassados portugueses e na infância idílica, em um Rio de Janeiro que não existe mais. Ambos têm por vizinho o embaixador inglês, Sir Henry Dewar. O embaixador norte-americano, Jack Clay, dá-se a conhecer por meio da correspondência com a mulher, que ficou nos Estados Unidos. Um tradutor traduz essas cartas, escritas em inglês, deixando comentários em notas de rodapé.
Entre os contestadores do regime, Juliana, a filha pródiga do diplomata brasileiro, que retorna à casa do pai para ajudar no sequestro, é apaixonada por Beto, subversivo que age junto a uma comunidade em Piraí, que será inundada para a construção da represa que fornecerá energia elétrica ao Rio de Janeiro. No texto, é frequente a menção a Canudos, também inundada após a derrota de Antônio Conselheiro. Beto, esse beato moderno, tem por codinome “Das águas” e é venerado pela comunidade pela qual luta.
Em uma ação da polícia, o que acontece a Beto e a dor de Juliana são gatilhos para que ela efetive o sequestro. Na empreitada, colaboram outros dissidentes que lutam contra a ditadura, às vezes usando o próprio nome, às vezes codinomes (mais uma camada a ser decifrada): Amália, companheira de luta de origem simples, que inveja Juliana (com quem talvez divida o amor de Beto); Mejía, responsável pelo corte de energia na noite do sequestro, além de Bernardo, Vitor e Dirceu, o cabeça do grupo.
O aparelho de repressão manifesta-se por meio de relatórios em que fica exposto o uso de tortura nos interrogatórios. Um relatório ao secretário de Segurança é a parte final da história. Entretanto, há um arremate: Petrópolis, 1974-1976. Local e data, em itálico, detalhe que suscita indagações.
Apesar de a crítica e o público considerarem Quarup sua obra-prima, Callado confessou, em entrevista a Ligia Chiappini (apud Cruz, 2013), que Reflexos do baile, sob o ponto de vista estilístico, foi seu melhor romance. No entanto, ele reconheceu que a fragmentação da narrativa afastou um número considerável de leitores.
Para saber mais
CRUZ, Claudia Helena da (2013). A historicidade da obra literária à luz da estética da recepção: Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976) e Sempreviva (1981) de Antônio Callado. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 27., 22 a 26 jul., 2013, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Anais… Natal: UFRN, p. 1-13. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548874923_b8b76edeae1c00ccaad5586bf0e95278.pdf. Acesso em: 16 mai. 2024.
DALCASTAGNÉ, Regina (2020). O espaço da dor: o regime de 1964 no romance brasileiro. Brasília: Editora da UnB. Disponível em: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/54/233/930. Acesso em: 23 abr. 2024.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes (2014). Callado e a vocação empenhada do romance brasileiro: estudo crítico. In: CALLADO, Antônio. Reflexos do baile. Rio de Janeiro: José Olympio. Disponível em: https://www.blogletras.com/2010/02/callado-e-vocacao-empenhada-do-romance.html. Acesso em: 23 abr. 2024.
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