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Quadrilátero (livro um: Matheus)

BOOS JÚNIOR, Adolfo. Quadrilátero (livro um: Matheus). São Paulo: Melhoramentos, 1986.

Eliane Maria Diniz Campos
Ilustração: Théo Crisóstomo

Quadrilátero (livro um: Matheus), de Adolfo Boos Júnior (Florianópolis, SC, 1931 – 2014), narra a história da chegada, no final do século XIX, de uma legião de colonos de origem alemã ao interior de Santa Catarina, revelando as lutas, as dores, os sonhos, as paixões e os vazios desses indivíduos. O livro ganhou o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira de 1986.

Além desse romance, Boos Júnior publicou As famílias (1980), A companheira noturna (1986) e Burabas (2005). O escritor participou de inúmeras coletâneas de autores do seu estado e integrou o Grupo Sul, que agitou o ambiente cultural da capital catarinense na década de 1950, embora tenha se juntado ao movimento quando este já estava quase finalizando as atividades.

A obra Quadrilátero é constituída por cinco blocos com base nos quatro elementos da natureza: ar, água, terra e fogo. O ar é referenciado por meio dos ventos, em seus mais diversos movimentos e efeitos. Em cada bloco, o leitor é convidado a penetrar um universo de sensações, sobretudo visuais e olfativas, que indicam a atmosfera da narrativa. A história aborda a chegada de imigrantes alemães, acompanhados por uma espécie de guia, um rapaz chamado Matheus, a um território fictício nomeado de Karlsburg. Para conferir ao texto o valor de documento histórico, o autor entremeia a narração com passagens e trechos que parecem extraídos de recortes de jornais ou depoimentos da época. Nesse sentido, apresenta personagens e espaços que comprovam o enredo criado.

Eglê Malheiros – jurada da comissão julgadora do concurso literário Nestlé de 1986 – no paratexto do livro, escreveu: “o texto tem densidade da tragédia. Não lhe perpassa um sorriso, e mesmo as brincadeiras infantis a gente as segue de coração apertado. Poderíamos resumir o romance como sendo um exercício sobre os sonhos e as paixões: o que sobra dos sonhos, legítimos ou inculcados, quando defrontados com a realidade, o que sobra das paixões quando se consomem”.

Numa estética que se aproxima do Realismo e do Naturalismo do final do século XIX, Quadrilátero narra a viagem de um grupo de alemães que sobe o rio Itajaí-Açu em busca da colônia fictícia de Karlsburg. Boos Júnior mostra ao leitor personagens exaustos e doentes, animalizados, vivendo em casebres, sem nenhum conforto. Homens e animais convivem em uma miséria e barbárie, mas com as promessas de civilização.

O livro traz alguns experimentos narrativos, como os pensamentos destacados em itálico, os diálogos com travessões no meio da página, com o objetivo de reproduzir as alternâncias do tom e da voz narrativa. Algumas vezes, Boos Júnior também emprega o recurso de apresentar as falas do narrador, introduzidas por travessão, indicando serem elas mais uma das vozes do texto, somando-se às dos personagens. Misturando ficção à realidade histórica e, simultaneamente, buscando configurar veracidade e validação para a história contada, o escritor se serve da técnica do encaixe, entremeando trechos de notícias de jornais e de documentos históricos (relatórios e cartas dos imigrantes), grafados com letras em caixa alta, com a própria narrativa.

O tema da imigração alemã no Brasil, trabalhado de forma antiépica pelo escritor, mostra-se como uma de suas contribuições mais louváveis. O romance de Boos Júnior estabelece, assim, um diálogo com obras do cânone nacional que também trazem à cena personagens e fatos da imigração alemã no Brasil tais como Canaã, de Graça Aranha (1868-1931), publicada em 1902, e Inocência, de Visconde de Taunay (1843-1899), publicada em 1872, numa reverência ao ambiente e à natureza.

Em um diálogo com o romantismo indigenista. Boos Júnior faz a leitura do indianismo numa chave decolonial e emancipatória: os indígenas de Quadrilátero sofrem inúmeras ofensas e ataques, são nomeados de “bugres” e não são representados em uma relação harmoniosa com o homem branco, tal como foi em Iracema, de José de Alencar (1829-1877), publicada em 1865.

O romance é dividido em cinco blocos e, em cada um deles, uma ambiência é provocada. Sempre, no entanto, numa perspectiva trágica e mórbida. No primeiro bloco, “Os Ventos”, o autor apresenta personagens em múltiplas cenas em tempo e espaço diversos. A cena “inicial” dramatiza uma espécie de inundação, com vento forte que vem do mar e circunda uma casa. Há a presença de um homem, uma mulher, um grupo de homens em volta de uma mesa e prostitutas se arrumando. Citam-se, então, quatro nomes de personagens. Abruptamente, vem uma outra cena de uma mulher nua, numa baia com um cavalo, e uma referência a um homem de fivelas. A forma de apresentar os diálogos com travessão no meio da folha causa um certo estranhamento ao leitor. Há um travessão também para a fala do narrador, indicando que a voz do narrador é uma voz tal qual a voz dos personagens. Nesse bloco, a embriaguez e o ambiente inóspito são os protagonistas. A sensação é a de um nevoeiro constante. Nesse bloco, talvez pela presença do fluxo de consciência, não fica evidente ao leitor uma história em ordem linear. Revela-se a presença de um homem velho, em uma botega, acompanhado de seus “demônios”.

No segundo bloco, “As águas”, um grupo de pessoas viaja em uma embarcação. Há a sensação de uma viagem entrecortada por paradas em ilhas e encostas. Os personagens – homens, mulheres e crianças – são representados por suas dores e incertezas. Os diálogos são monossilábicos. O texto é constantemente alternado com uma espécie de insígnias sobre a colônia de Karlsburg.

No terceiro bloco, “A terra”, há o relato da chegada de famílias de imigrantes à colônia, fictícia, de Karlsburg. Eles saem da embarcação e desembarcam na terra sonhada. Esse bloco mostra as dificuldades enfrentadas e as relações humanas nesse processo de fixação e adaptação na nova terra. Nessa parte, a história linear começa a se desenvolver, pois a relação triangular dos personagens Matheus, Natália e Arnold, bem como a de Matheus, Natália e Paula, confere dinamicidade à narrativa.

O quarto bloco, “O fogo”, traz o clímax da narrativa: as paixões são exploradas, além de outros acontecimentos, tanto no que diz respeito à classe trabalhadora imigrante quanto à aristocrática Companhia de Imigração. Por fim, no quinto bloco, “Os ventos”, a história retoma sua abertura, trazendo um tempo relativamente “bom”, com os ventos de leste, e o fechamento da trajetória de Matheus.

Preservadas as possibilidades de leituras e interpretações diversas, o romance de Boos Júnior é indicado para leitores que se interessam pela temática da imigração. Até então, a condição realista da situação dos imigrantes e dos confrontos entre colonos e povos indígenas era tema que tinha sido bem pouco explorado na literatura brasileira. Ademais, o texto explora as relações interpessoais no contexto da imigração, evidenciando as dinâmicas de poder. Essa abordagem contribui para humanizar tanto os personagens quanto a condição em que se encontram.

Para saber mais

DEBUS, Eliane Santana Dias (2009). Quadrilátero: as impressões olfativas como desencadeadoras de desejo: uma leitura do romance Quadrilátero – Livro um: Matheus, de Adolfo Boos Júnior. Caderno Seminal Digital, Rio de Janeiro, v. 11, n. 11, p. 178-188. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/6bb8/8684f4515ed7eefd5f1054f3e9f614e4ff6f.pdf. Acesso em: 29 maio 2024.

TONUS, José Leonardo (2012). O imigrante na literatura brasileira: instrumentalização de uma figura literária. In: DALCASTAGNÈ, Regina; MATA, Anderson Luís Nunes da (Orgs.). Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte. p. 93-101.

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Como citar:

CAMPOS, Eliane Maria Diniz.
Quadrilátero (livro um: Matheus).

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literatura 

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contemporânea, 

Brasília. 

13 mar. 2025.

Disponível em:

3293.

Acessado em:

19 maio. 2025.