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A extinção das abelhas

POLESSO, Natalia Borges. A extinção das abelhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

Bianca Magela Melo

Ilustração: Isis Gamell

De uns anos para cá, a percepção de um alarme vermelho na relação do humano com o restante do planeta extrapolou discussões científicas localizadas e, mais fortemente durante e após a pandemia de Covid-19, ganhou amplitude nas vozes de pensadores(as), líderes indígenas, pesquisadores(as) e escritores(as). Passou a ser tema essencial para refletir acerca da contemporaneidade em toda a sua constituição. Ao compor A extinção das abelhas (2021), Natalia Borges Polesso (Bento Gonçalves, RS, 1981) expressa-se a partir desse cenário de fatos e discursos.

O total desaparecimento das abelhas é o principal indicador do colapso da sociedade futura idealizada pela autora, medido pelo Colapsômetro, aplicativo que permite a qualquer pessoa da época acompanhar, em tempo real, o curso do desastre. O Brasil transformou-se em território distópico com desabastecimento generalizado, lixo tóxico, bairros desabitados, escassez de comida e criação de novos condomínios para super-ricos. O descaso com os animais, com as plantas e com a terra mostra sua radical coincidência com o descaso com determinadas vidas humanas, pois o governo explicitamente vai abandonando áreas carentes e limpando-as de pessoas e coisas.

As mulheres figuram como o elo mais frágil da situação, expostas à regulação de comportamentos e a violências físicas e sexuais, amplificando algo já percebido nos dias de hoje. É um livro protagonizado por mulheres. O núcleo principal se organiza em torno de Regina, de 40 anos, náufraga da situação do país e das relações íntimas: o pai morreu, a mãe deixou a casa e a filha quando esta tinha oito anos, e Regina não conseguiu firmar-se em nenhuma relação afetiva.

Vivendo com muito pouco, ela se vira como tradutora, garçonete e, em determinado momento, explorando fantasias sexuais na internet. A protagonista é mestra em teoria literária em uma época em que isso pouco significa para suprir sua sobrevivência. Em muitos momentos, sua mente apresenta-se cansada e confusa na tentativa de compreensão do país que ela herdou da nossa geração. Natália Borges Polesso não quis construir uma protagonista bem resolvida. Regina tem a fragilidade de quem se sente perdida e alheia em momento de emergência. Apesar de dolorosamente só, constantemente lhe surge uma mão estendida, sempre feminina: de uma paquera, da família que cuida dela desde a infância (o casal Denise e Eugênia e a filha Aline) ou das revolucionárias que ela conhece mais ao fim do livro.

O protagonismo feminino e a vivência lésbica são presenças aqui e nos outros livros de Polesso, a exemplo de Amora (vencedor do Prêmio Jabuti de 2016), em que todos os contos são protagonizados por mulheres lésbicas em diferentes estágios da vida. A recorrência é positiva para as explorações estilísticas e temáticas da autora, pois permite que o assunto seja abordado de modo orgânico e fluido, não representando questão de nenhum modo para a narrativa que se faz de dentro da situação. O preconceito e a perseguição, sempre retratados, vêm “de fora”, dos outros que não estão enfocados no primeiro plano.

A respeito das mulheres, A extinção das abelhas projeta uma pequena utopia na distopia ao sugerir que as redes de apoio, ancestralmente tecidas por elas, tornar-se-iam ilhas de salvação em meio ao colapso. São espaços em que seria possível viver sem a normatividade padrão dos nossos tempos: masculina, heterossexual e violenta. Pietra, uma das mulheres que Regina encontra na busca de alternativas de vida, explica: “quero fazer parte de uma nova configuração de mundo. Um mundo em que eu possa existir, um mundo de que eu possa gostar. Não aquele em que vivíamos, Regina, aquela invenção velha de mundo que colapsou em nossa cabeça”.

A autora maneja um grande número de pautas em A extinção das abelhas: o amor entre mulheres e ainda a situação histórico-social do Brasil, a tragédia do uso de agrotóxicos, a necropolítica de extermínio, a consciência pós-pandemia de Covid, a acadêmica que vive precariamente, a utopia de uma comunidade feminina, para citar algumas. Elas são quase sempre bem orquestradas. A dúvida aqui é Guadalupe, ou Lupe, mãe da protagonista, cujas experiências com uma trupe de circo são narradas de modo entrecortado ao enredo que foca em Regina. A ferida nomeada como mãe está lá representada para além do sentimento e da projeção da filha. Sabemos de fatos ocorridos a Lupe depois que saiu da casa familiar, mas apenas como acontecimentos remotos com saltos no tempo, resultando em pouco engajamento. E quando, após uma vida separada, há insinuação de um encontro entre as duas realidades, é frágil e quase dispensável: o acerto de contas diante da morte, cartas redigidas e não enviadas, uma geografia em vias de ser compartilhada.

É preciso salientar, contudo, o quão criativo em termos estilísticos é o modo de conexão entre os relatos sobre Regina e Lupe na primeira parte do livro. Em vez de finalização e ponto final, cada capítulo é encerrado abruptamente até descobrirmos que a palavra que faltava foi inserida como título do próximo, em uma bonita costura. Os procedimentos narrativos em geral são de uma escrita fragmentada que experimenta se direcionar pelo que os temas tratados sugerem. Natalia dividiu o romance em três partes. A primeira mostra o presente de Regina (futuro para nós) antes do grande colapso simultaneamente ao passado de sua mãe. A segunda é uma colagem de retratos da situação de mundo: trechos de noticiário e relatos científicos em que prevalece o tom ensaístico e reflexivo. O fluxo narrativo se quebra para preparar o terreno, afinal, à terceira parte, que é o relato de como funciona a vida depois do colapso consumado.

Merece destaque a segunda seção do livro pela suspensão que promove com a linearidade. Pequenos capítulos trazem notícias do colapso, sem narrador definido, apresentadas pelo caótico e impessoal dispositivo de selecionar e divulgar informações – mais ou menos como nos acostumamos a ver. Elas vêm como déjà vu do que conhecemos ou ouvimos dizer como notícias que rolamos descompromissadamente: os desastres da mineradora Vale ou o nome real de agrotóxicos proibidos no mundo e liberados no Brasil. Ou ainda a imensidão de mais de 1,6 milhão de quilômetros quadrados da maior ilha de lixo plástico do mundo, mapeada em 2015, em expedição de cientistas que navegaram um trecho do oceano Pacífico entre o Havaí e a Califórnia. “Temos sede. Há mais plástico do que peixes no mar”.

Selecionados e inseridos na ficção, os fatos ganham concretude como causas das consequências que vemos no mundo habitado pelas personagens. O drama da existência de Regina e de Guadalupe coincide e tem peso tão significativo quanto o drama da agonia do planeta, provocada pela ação humana. Essa perspectiva do colapso instigado pelo descompromisso social também é retratada pela autora em Corpos secos (Alfaguara, 2020), obra coletiva (em conjunto com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado) a respeito de uma enfermidade acachapante, a doença do corpo seco, causada pelo uso descontrolado de agrotóxicos no Brasil.

Apresentando A extinção das abelhas (em seu Instagram), a autora, também doutora em teoria da literatura, afirmou que sua escrita foi impactada por leituras teóricas de Donna Haraway (filósofa e zoóloga norte-americana), Timothy Morton (filósofo e crítico literário inglês) e Ailton Krenak (escritor, pensador e líder indígena brasileiro), todos(as) pensadores(as) que podem ser agrupados(as) no termo “ecocrítica”. A princípio, Polesso relatou, o plano era escrever um romance sobre o futuro: “mas a certa altura percebi que era sobre o presente. Por isso digo que é realismo especulativo. Tudo já está, e nos alcança cedo ou tarde”.

Ao resenhar o livro, Enio Vieira (2021) refletiu acerca do quanto narrar sentimentos como o do iminente colapso exigiria outras formas de contar histórias: “Acho que surgiu em 2020 uma nova sensibilidade brasileira para imaginar o futuro. O primeiro passo é, sem dúvida, reconhecer o desmoronamento do presente”. Ao lado de Polesso, ele lista como empenhados no mesmo esforço José Falero, Jeferson Tenório, Edimilson de Almeida Pereira, Bernardo Carvalho, Ana Paula Maia, Daniel Galera e Michel Laub.

Para esses nomes (ou para a maioria) mencionados por Vieira, pode-se afirmar que há pelo menos uma coincidência de procedimento: o tom ensaístico às vezes aparecendo diretamente, às vezes como reflexão das personagens. Quando Regina cruza por terra a fronteira do Brasil com a Argentina, vem-lhe, simultaneamente, a consciência do ambiente e o equívoco da humanidade em sua época, uma boa ilustração do sopro ensaístico eventual do texto de Natalia Borges Polesso: “Regina se perguntou o que determinava quando ou onde as coisas tinham início ou fim. O quê? Quem? (…) Desejou não saber nada sobre horizontes e expectativas, desejou a ignorância em parte conquistada, em parte ilusória”.

É de Theodor Adorno, no texto clássico “O ensaio como forma”, a opinião de que o ensaio “não quer captar o eterno nem destilá-lo do transitório; prefere perenizar o transitório”. E talvez a fotografia que essas ficções vêm fazendo do transitório – nós, humanos?; um certo modo de ser em vias de sucumbir? – seja mesmo uma boa conexão entre os(as) autores(as). Novo e simultaneamente velho procedimento que salienta também a pertinência de falar, ainda hoje, em realismos como o fez Polesso – agora no plural, pois para além de um movimento literário, ele aponta para aspectos reconhecíveis de nossa dinâmica social e de pensamento.

Para saber mais

LEITE, Karoline Alves; OLIVEIRA, Rita Barbosa de (2019). Amor entre Amoras: a vivência lésbica nos contos de Natalia Borges Polesso. Trama, Marechal Cândido Rondon, v. 15, n. 34, p. 101-109.

POLESSO, Natalia Borges (2020). Sobre literatura lésbica e ocupação de espaços. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (61), 1–14. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2316-4018611. Acesso em: 17 fev. 2024.

VIEIRA, Enio. (2021). “Em ‘A extinção das abelhas’, Natalia Borges Polesso pensa a vida após o colapso”. Revista Bula, dez.2021. Disponível em: https://www.revistabula.com /46742-em-a-extincao-das-abelhas-natalia-borges-polesso-pensa-a-vida-apos-o-colapso/. Acesso em: 18 fev. 2024.

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Como citar:

MELO, Bianca Magela.
A extinção das abelhas.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

3003.

Acessado em:

19 maio. 2025.