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Berkeley em Bellagio

NOLL, João Gilberto. Berkeley em Bellagio. São Paulo: Objetiva, 2002.


Amanda Lacerda de Lacerda

Ilustração: Ruben Zacarias

“[…] eu vou, eu vou embora para um lugar que ainda não foi feito e que me espera entre a sombra da torre do convento ao norte e a velha figueira ao sul há mais de século sem se opor a nada”. Já nas primeiras páginas do romance Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll (Porto Alegre, RS, 1946-2017), depara-se com a representação de um deslocamento, questão central da obra. Narrado em primeira pessoa e eventualmente com a voz narrativa falando sobre si em terceira pessoa, o enredo é um emaranhado de pensamentos e fabulações. Em estado de suspensão, a contingência e o desenraizamento determinam o destino do protagonista, para onde ir e o que fazer.

As primeiras publicações de Noll datam dos anos 1980. Autor de cerca de 20 livros, foi vencedor do prêmio Jabuti em cinco ocasiões, a primeira como “Autor revelação” por seu romance de estreia, O cego e a dançarina (1980). O reconhecimento da crítica apenas se confirmaria ao longo dos anos. Alguns de seus livros, incluindo A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985), Mínimos, múltiplos, comuns (2003), Lorde (2004) e Acenos e afagos (2008), já foram adaptados para o cinema e o teatro, além de terem sido traduzidos para diversas línguas, como o espanhol, o inglês e o italiano. O romance Harmada (1993), também vencedor do Jabuti, consta da lista dos cem livros essenciais brasileiros de todos os tempos tempos e gêneros organizada pela revista Bravo!. Noll trabalhou como jornalista no Rio de Janeiro, onde viveu por cerca de vinte anos, mas é a cidade de Porto Alegre a grande personagem de suas narrativas. Berkeley em Bellagio foi publicado em 2002 e chegou a ser finalista do prêmio Portugal Telecom de 2003.

João é o narrador-protagonista dessa história. Na primeira passagem da obra, ele está situado no jardim do campus da Universidade de Califórnia, em Berkeley, onde trabalha como professor visitante ministrando aulas de Cultura Brasileira. De lá, em dado momento, segue para Bellagio, na Itália, após receber o convite de uma fundação norte-americana para integrar uma residência artística e, assim, escrever um novo romance. Porto Alegre é sua cidade natal, de onde emergem as imagens da infância, da juventude e do relacionamento com Leo. Aos processos burocráticos de solicitação de visto, mesclam-se as considerações subjetivas do narrador sobre viver no exterior como promessa de sucesso, prestígio acadêmico e estabilidade no mundo do trabalho. Os laços afetivos são precários; ele tem pouco ou nenhum contato com familiares e rompe o relacionamento sexual com Leo sem motivo muito claro. Estas três cidades formam uma tríade por onde transita o protagonista.

Os deslocamentos fazem com que João questione sua identidade, assumindo uma crise nesse aspecto. Os três lugares, habitados pelo narrador em tempos distintos e por razões diversas, são referências espaciais por onde transitam os pensamentos aparentemente desconexos. Da inquietação e do desconforto no processo de trânsito entre os lugares e no contato com os outros personagens, projetam-se frustrações, emoções e desejos de modo confuso, acumulado e não linear. Memórias se misturam a cenas imaginadas, a possibilidades que o narrador cogita, à imaginação sobre os rumos de sua própria vida. Na contemporaneidade, a identidade é, em si, compreendida em sua fluidez, inconstância e provisoriedade. Ao mesmo tempo, segue sendo uma busca para os indivíduos, assumindo-se como algo construído num presente em permanente transformação.

Em uma digressão do narrador, fica-se sabendo que, antes de viajar para Berkeley, João sofre um acidente doméstico: ele cai, bate a cabeça e é socorrido pelo companheiro Leo. Essa cena pode ser compreendida como uma síntese das aparentes desconexões do narrar em primeira pessoa. Em entrevista para a publicação literária Rascunho, Noll afirmou: “Eu uso muito a pressa e o emergencial na minha sintaxe, por exemplo. São sintaxes, em geral, muito longas, que querem justamente alcançar o simultaneísmo. Por isso, são longas. Elas não têm tempo para o ponto final. O que é ponto vira vírgula” (Noll, 2009). A narrativa de Berkeley em Bellagio se desenvolve em cerca de cem páginas, todas compostas por apenas um parágrafo. A representação estética dos deslocamentos e da identidade em construção faz uso de recursos como fluxo de consciência, monólogo interior e o discurso indireto-livre. O tempo é descontínuo. Fica sugerida uma sequência nos locais de deslocamento do personagem, mas não é possível precisar se ele passa meses ou anos fora de Porto Alegre.

Ainda sob o aspecto da reflexão sobre uma identidade, os diferentes idiomas – português, inglês e italiano – são fator de inquietação para o protagonista. O fato de não falar inglês ou italiano e não se sentir motivado a aprender essas novas línguas reforça o sentimento de desajuste. A língua portuguesa atua como âncora de sua identidade, o “cárcere do idioma do qual não pretendia sair”. Em dado momento da obra, João se vê “pensando em inglês”. Com isso, toma contato com o estrangeiro interior a si mesmo e experimenta uma desvinculação com esse único laço de sua terra natal. À inquietação, somam-se o desamparo e a incerteza sobre a possibilidade de retomar esta conexão. As elocubrações do narrador sobre as diferenças linguísticas e a comunicação entre falantes de diversos idiomas revela uma interessante dimensão metaficcional da obra.

As experiências sexuais seguem alinhadas a essa dinâmica de fluidez e inconstância. João se relaciona com homens e mulheres, mas não se autodenomina homossexual ou bissexual: a mobilidade das relações estará pautada primordialmente no desejo, dispensando classificações. A sexualidade, assim como o corpo, desloca-se. Sem essa definição, o corpo do protagonista ocupa um entre-lugar e, por isso, transita. Os contatos são fugazes e dispensam a interação linguística, superando a barreira do idioma. O sexo torna-se campo e possibilidade de troca efetiva, ainda que efêmera.

Maria, uma antropóloga brasileira que João conhece em Berkeley, protagoniza a primeira relação sexual da narrativa, seguida por outras com homens e mulheres, geralmente marcadas pelo contato efêmero. As descrições são bastante explícitas, beiram o pornográfico, mas são também carregadas de metáforas que aludem a diferentes esferas da vida pública. As experiências sexuais de João constroem uma forma de desterritorialização e de recusa das compreensões hegemônicas ligadas à heteronormatividade. Desse modo, o autor exercita uma escrita queer no sentido da problematização dos binarismos homem-mulher, masculino-feminino, como em afirmações do protagonista: “Me sentia em transição. Não era mais homem sem me encarnar no papel de mulher”.

A ressignificação da sacralidade de símbolos religiosos é argumento para uma forte cena do romance: “O Deus que foi levado pelo escritor porto-alegrense para atrás de uma cortina malcheirosa pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar como um bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho mas em leite que o nosso senhor gaúcho engoliu aos poucos, na carestia da idade, lembrando-se da Primeira Comunhão, terço nas mãos, ar de bem-aventurança”. O “Deus” mencionado no trecho é um funcionário da sala de refeições em Bellagio, com quem João tem uma relação sexual atrás das cortinas do salão principal. A imagem carrega crueza na analogia que estabelece com símbolos cristãos. O sacramento da eucaristia fica sugerido tanto pela referência explícita à “Primeira Comunhão” quanto no jogo de palavras com o substantivo “carestia”.

Estrangeiro de si mesmo é a experiência do deslocamento que proporcionará ao protagonista um encontro com suas diferentes dimensões e reforçará a busca por uma forma de enraizamento que, inevitavelmente, o faz pensar em Porto Alegre: “Que importância teria a decifração do mundo para quem queria só voltar para casa de onde talvez nem precisasse ter saído? Que importância teria a semântica da prosa mais esclarecida a quem só ansiava se abraçar ao seu quintal?”. As perguntas que o romance dispõe ao leitor são índices da contemporaneidade líquida, efêmera, de itinerários cambiantes e incertos. Ao final da narrativa, Leo apresenta sua filha Sarita, que é prontamente acolhida pelo protagonista, compondo uma família em particular, já que viverão os três juntos.

Autor da geração de Caio Fernando Abreu, Fernando Morais e Marcelo Rubens Paiva, Noll consolida sua obra ao explorar, como seus contemporâneos, alguns dos grandes dilemas da atualidade. Em Berkeley em Bellagio, é central a condição de deslocamento no espaço, no tempo, no contato sexual-afetivo e seus desdobramentos. O romance é promissor ao construir esteticamente o estado de trânsito vivido pelo protagonista, que percorre caminhos e deslinda novas compreensões sobre formas e tratos com o enraizamento social-histórico-familiar.

Para saber mais

NOLL, João Gilberto (2009). Paiol literário com João Gilberto Noll. Rascunho, Curitiba, n. 116. Disponível em: https://rascunho.com.br/paiol-literario/joao-gilberto-noll/. Acesso em: 28 jan. 2024.

OLCESE, Santiago (2015). Circuitos transnacionales de la literatura: João Gilberto Noll y el umbral de la convivencia. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 46, p. 327-342. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10085/8911. Acesso em: 28 jan. 2024.

SANT’ANNA, Evandro (2020). O queer como gesto profano em João Gilberto Noll. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 61, p. 1-13. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/35247/27934. Acesso em: 28 jan. 2024.

TEIXEIRA, Glauciane Reis (2017). Identidade à deriva: uma leitura de Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll. Revista Prâksis, Novo Hamburgo, n. 14, p. 39-50. Disponível em: https://periodicos.feevale.br/seer/index.php/revistapraksis/article/view/1266. Acesso em: 28 jan. 2024.

Iconografia

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Como citar:

LACERDA, Amanda Lacerda de.
Berkeley em Bellagio.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

2998.

Acessado em:

19 maio. 2025.