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Azul-corvo

LISBOA, Adriana. Azul-corvo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

Claudia Miranda da Silva Moura Franco
Ilustração: Carolina Vigna

O ser humano é, por assim dizer, povoado de “e se(s)”, um universo de possibilidades que invade a mente nos momentos mais diversos possíveis. Antonio Candido já dizia que é peculiar da natureza humana se entregar ao universo confabulado; seria essa a “mola propulsora” da literatura, esse momento de deslocamento, responsável pela criação de uma ideia, a recuperação de uma recordação e o fazer de uma memória. Poderia ser esse um momento catártico, abertura para que o inconsciente seja capaz de provocar ruídos em silêncios absurdamente gritantes, como no caso de narrativas que se debruçam sobre o terreno dos regimes totalitários e da repressão do Estado, rompendo o silêncio que, por muito tempo, permaneceu suspenso na falta de memória social e política do Brasil.

É precisamente essa ruptura do silêncio que realiza a narrativa de Adriana Lisboa (Rio de Janeiro, RJ, 1970), autora de Azul-corvo (2010). Adriana é também poeta, ensaísta e contista, tendo publicado os romances Sinfonia em branco (2001), Um beijo de colombina (2015), Rakushisha (2014), Hanói (2013) e Todos os santos (2019), além dos livros de poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2010), Deriva (2019) e O vivo (2021). Ela também escreveu o ensaio Todo o tempo que existe (2022) e o conto Caligrafias de sucesso (2009).Muitas de suas obras foram premiadas; entretanto, foi com Azul-corvo que a escritora alcançou os holofotes da crítica literária nacional e internacional.

O romance foi publicado pela primeira vez em 2010 pela editora Rocco. A história está ancorada no período da ditadura militar, com foco na Guerrilha do Araguaia, ocorrida no sudeste do Pará e norte de Goiás (região também chamada de Bico do Papagaio, hoje estado do Tocantins). Os guerrilheiros começaram a chegar à região por volta de 1966, pois a consideravam propícia para a luta armada, conforme proposto por Ângelo Arroyo. Esse guerrilheiro, que foi dirigente do Partido Comunista do Brasil, argumentava que a zona da mata oferecia condições de paridade para o combate, pois “o inimigo não pode usar tanques, artilharia, bombardeio aéreo de precisão etc. Tem de estar a pé como o guerrilheiro” (Arroyo, 1974 apud Campos Filho, 2012, p. 108).

Uma das características da ficção contemporânea no Brasil tem sido o resgate e o papel interpretativo de episódios políticos do país, e o romance Azul-corvo realiza o trabalho de recordação da Guerrilha do Araguaia, acionando um efeito imediato: “as molas do passado na memória e toda a engrenagem do reconhecimento”. A obra também recorda outras histórias e acontecimentos miúdos, como o apagamento da participação dos negros e das mulheres, além de questões de gênero, raça e até mesmo mestiçagem e imigração. Esses temas oferecem reflexões de caráter universal: “você é algo híbrido e impuro”, espaço para discussão sobre o ser negro/mestiço naquela época e atualmente.

Azul-corvo é uma história de perdas e buscas, mas também de reencontro, atravessada por episódios com inúmeras confluências discursivas que possibilitam observar a representação ficcional de fatos históricos. Como uma instância intertextual de dupla natureza estética, a obra se alimenta do factual para a criação ficcional, na qual a construção literária mobiliza modos de narrar tradicionais interseccionados por modalidades contemporâneas. Desse modo, sua estética se aproxima do proposto por Rancière, para quem a estética “designa um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento” (Rancière, 2009, p. 11-12).

A história de Evangeline, a Vanja, aproxima-se da história de muitos filhos e filhas durante o período da ditadura militar no Brasil, crianças que não se sabem, que desconhecem muito de si e, mais ainda, muito ou quase tudo sobre seus pais guerrilheiros. Estes foram aqueles que desceram do muro, assumiram um lado da história e perderam suas vidas por acreditarem em um ideal encapsulado na letra de Me and Bobby McGee: “Freedom’s just another word for nothin’ left to lose. Nothing don’t mean nothing honey if ain’t free, now now.” (“Liberdade é apenas uma outra palavra para nada mais a perder. Nada significa nada, meu bem, se não for livre”). Assim é apresentada Suzana, mãe de Vanja, uma mulher de espírito livre (admiradora de Janis Joplin), que se apaixona por Fernando, um ex-combatente da Guerrilha do Araguaia.

Após a morte da mãe, Vanja, então com treze anos, sentindo-se perdida, “em meio a lugar nenhum”, inicia uma jornada em busca de suas próprias raízes. Para tanto, é preciso mergulhar de cabeça na história de sua mãe e de dois homens que tiveram um papel importante em suas escolhas. A travessia da escrita vai do Rio de Janeiro até Lakewood, Colorado (EUA), e São João do Araguaia (Pará), sugerindo esses espaços fronteiriços como metáforas de um trânsito entre passado, presente e futuro.

Genette (1979) aborda os aspectos de frequência no ato de narrar como meios de escrita que homologam a história. Nesse caso, a repetição “concha azul-corvo” torna-se o elemento que condensa muito da personalidade de Vanja. A concha, como moradia, busca a identificação de um espaço que lhe desperte pertencimento; a cor azul, a mais imaterial das cores, sugere vazio pela sensação de infinito que proporciona; e o corvo pode ser interpretado por meio da simbologia de solidão que o permeia, primeiro como símbolo de isolamento voluntário e, em segundo plano, pela esperança de um amanhã, pois suas características demiúrgicas permitem atrelar seu signo a aspectos divinos.

A menção ao poema de Marianne Moore The Fish, que diz: “through black jade. Of the crow-blue mussel-shells, one keeps/adjusting the ash-heaps” (“Através do jade preto. Das conchas do mexilhão azul-corvo, alguém continua/ajustando os montes de cinzas”), fortalece a ideia de meandros e daquilo que permanece oculto.

Luigi Pareyson (1950), ao tratar do verossímil na poética de Aristóteles, trabalha a ideia do acontecível e do possível, estabelecendo uma ponte entre História (acontecido) e Poesia (o possível). A literatura se vale desse entrelugar, para fazer emergir o todo possível, acontecível, acontecido ou não. Nesse caso, embora o tecido historiográfico contribua para a identificação das questões históricas durante o período da ditadura militar e as guerrilhas ocorridas na região amazônica, a ficção se ancora nas narrativas daqueles que desconhecem sua própria história. A personagem Vanja é a ficcionalização da realidade de muitos filhos, filhas e familiares que vivem e morrem todos os dias, no imaginário do não saber sobre o paradeiro do corpo dos seus entes queridos assassinados na ditadura. A verossimilhança está ancorada justamente nesse não saber.

A narrativa dialoga também com outro tipo de desaparecimento: o da história política do Brasil, uma nação que insiste em repassar o passado de forma reelaborada e frequentemente violenta. A imbricação entre passado e presente é a via por onde transita o leitor, refletindo sobre os impactos do ontem. A falta de informações e a necessidade de construir memórias fazem da narrativa um ato de justiça, pois, conforme já afirmou Ricoeur (2007, p. 101), “o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”, pode se ancorar no efeito do esquecimento como agente detonador da memória e da história. Assim, pela lembrança, a literatura pode ser o veículo pelo qual a memória social se reaviva, revelando o horror e a violência desse período como experiência estética. Vanja e o ex-marido de sua mãe, Fernando, ex-guerrilheiro combatente no Araguaia, experienciam a “sombra potencial do passado” e, em suas próprias vivências, os deslocamentos entre o tempo de suas histórias pessoais, o conhecimento de fatos até então desconhecidos para Vanja, e a certeza de que “nada será como antes”. O conhecimento tem dessas coisas: proporcionar mergulhos em abismos imensos e descobrir a própria história na história do outro. Provocar ruídos no silêncio histórico do desconhecimento da história política do país é recuperar a memória desse período e questionar a falta de respostas e o silêncio quanto aos inúmeros corpos ainda desaparecidos.

Seria, então, a falta de memória, ou o não enxergar do período, o maior responsável pela falta de percepção crítica pessoal e social da ditadura? Na perspectiva estética, observa-se que, para Merleau-Ponty (2013), “a arte é uma apercepção pessoal. Coloco esta apercepção na sensação e peço à inteligência organizá-la em obra” (p. 116). Significaria essa falta de visão a responsável pela invisibilidade da morte e violência praticada nesse período, assim, arte como “operação de expressão” (p. 119), pode tornar acessível “aos mais ‘humanos’ dos homens o espetáculo de que participam sem perceber” (p. 120). A percepção é um movimento de busca; Merleau Ponty aponta que “a profundidade é sempre nova, exige que a busquem, não “uma vez na vida senão por uma vida toda” (p. 293). Quanto mais imersas na busca pelo acontecimento histórico e seus desdobramentos, mais próximas as pessoas estarão das descobertas dos “vazios” de sua espacialidade memorial.

Para saber mais

BRAUCKS, Noraci Cristiane Michel; BARZOTTO, Leoné Astride (2016). Mobilidades culturais em Azul-corvo, de Adriana Lisboa. Raído, v. 9, n. 20, p. 191-201.

CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa (1997). Guerrilha do Araguaia – Esquerda em Armas. Goiânia: Universidade Federal de Goiás.

GENETTE, Gérard (1979). Discurso da narrativa: ensaio de método. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia.

MERLEAU-PONTY, Maurice (2013). A dúvida de Cézanne. In: O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Cosac & Naify.

PAREYSON, Luigi (1989). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.

PIZZUTTI, Geovana Turella (2023). A memória coletiva em relação à protagonista na obra Azul-corvo, de Adriana Lisboa. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.

RANCIÈRE, Jacques (2009). O inconsciente estético. São Paulo: 34.

REIS, Marina (2015). Identidade e pertencimento em Azul-corvo de Adriana Lisboa. Monografia (Bacharelado em Português) – Stockholms Universet, Estocolmo. Disponível em: https://www.divaportal.org/smash/get/diva2:848981/FULLTEXT01.pdf. Acesso: 05 mar. 2024.

RICŒUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp.

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Como citar:

FRANCO, Claudia Miranda da Silva Moura.
Azul-corvo.

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Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

2710.

Acessado em:

19 maio. 2025.