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Afonso Contínuo, Santo de Altar

CELINA, Lindanor. Afonso Contínuo, Santo de Altar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Sheila Jeane Schulz Persike

Ilustração: Dona Dora

Quarto romance de Lindanor Celina Coelho Casha (Castanhal, PA, 1917 – Paris, França, 2003), Afonso Contínuo, Santo de Altar apresenta, por meio de fluxo de consciência, as impressões e inquietudes de Afonso Romano dos Santos Reis, o contínuo de um Tribunal de Justiça de Belém do Pará. O termo “contínuo” designa uma espécie de “faz-tudo”; na obra, grande parte do tempo de Afonso é despendido em preparar e servir cafés aos membros do tribunal. E, frequentemente, é a realização das atividades mais banais e cotidianas que instiga a torrente de pensamentos do narrador. Pela natureza de seu cargo, que exige que ele percorra as salas e os gabinetes do recinto, acaba por conhecer os acontecimentos sucedidos no tribunal, sejam eles escancarados ou velados. E pelo seu traço intrinsicamente curioso, desvenda as individualidades e peculiaridades de cada pessoa com quem convive, examinadas de acordo com sua visão de mundo.

O embasamento da expressão “Santo de Altar”, descrita no título da obra, deriva indiretamente desse desejo íntimo de Afonso em agradar a Deus e Nossa Senhora. Apesar de Afonso se perceber como ser humano, capaz de passar a vida buscando a santidade, sem nunca de fato a encontrar – pois é pecador por natureza —, ele almeja o que pode alcançar: uma vida de “pecados menores”. Com isso, ao mesmo tempo que se deleita com intrigas e boatos que circulam em seu ambiente de trabalho, aos demais deixa transparecer a aparência de santo, demonstrando desaprovação e repreendendo esporadicamente os maledicentes, de forma contundente. Devido a essa falsa aparência benevolente, costumam chamá-lo de “Santo de Altar” — alcunha da qual se apropria em certo grau. Tanto é difundida tal convicção que D. Dulce, personagem tida como exemplar, pede a Afonso que ore por seu filho doente, intercedendo junto a Deus para que, compadecido pelo apelo de um homem tão justo, proceda com a tão sonhada cura. Até o padre que escuta suas confissões, mesmo ciente dos pecados reincidentes, o aconselha constantemente a ajustar suas condutas, a fim de se tornar realmente um “Santo de Altar”, na tentativa de transformá-lo.

O texto em Afonso Contínuo, Santo de Altar é escrito sob a ótica do fluxo de consciência, técnica literária que se embrenha na psique humana e apresenta os pensamentos de um personagem em fluxo contínuo, não linear, ou seja, na sequência em que ocorrem, fugindo da realidade espaço/tempo. O fluxo de consciência pode ser, de início, um pouco caótico, pois, como Celina define no romance, o “pensamento é cavalo desembestado”. Se uma pessoa registrasse seus pensamentos em determinado período, notaria saltos temporais, passado-presente-futuro coexistindo, sem a linha temporal sujeita pela realidade externa. A autora acentua a fluidez do fluxo de consciência por meio de várias características, tais como ausência de divisão por capítulos, parágrafos frequentemente iniciados por letras minúsculas e/ou finalizados com vírgulas e a alternância abrupta de ideias diferentes dentro de um mesmo raciocínio.

Como todas as descrições, diálogos e apresentação de ideias ocorrem via monólogo interno, os demais personagens são conhecidos apenas pelo ponto de vista parcial de Afonso. Essa perspectiva não necessariamente representa a verdade sobre essas pessoas. Em contrapartida, como os pensamentos de Afonso são revelados sem filtro, o leitor tem acesso ao que se passa em seu âmago, nos recônditos de sua alma. Não há como esconder nem seus piores pensamentos intrusivos, maldosos ou controversos.

Outro traço da obra é a apresentação do linguajar e dos costumes regionais ao abordar temas de caráter universal. Afonso é órfão de mãe e não teve a presença do pai em sua criação. Tem pouquíssima educação formal, contexto que se reflete no uso de uma linguagem coloquial, informal e por vezes extremamente crua e indecorosa. O romance começa com imagens fortes e alegações impactantes, situando o leitor no perfil de escrita utilizado e despertando sua curiosidade para acompanhar os desdobramentos da narrativa.

Uma vez compreendido o título da obra e a forma como é escrita, fica implícito que o texto é bem-humorado. Os personagens frequentemente são cínicos, irônicos e o praguejar é comum. Esse humor natural, sem esforço, presente em uma conversa entre pessoas que se conhecem e convivem constantemente, torna a leitura envolvente e autêntica.

Celina apresenta a regionalidade paraense como verdadeira conhecedora, já que nasceu em Castanhal, mudou-se ainda jovem para Bragança e, posteriormente, aos 11 anos, para Belém, onde estudou em um internato. Seu amor pelo estado do Pará levou-a a eternizá-lo em seus escritos, repletos de traços regionais e biográficos. Em Afonso Contínuo, Santo de Altar (publicado aos 69 anos), o enredo percorre as cidades nas quais a própria Celina viveu, apresentando a linguagem regional que ouviu, as características das pessoas com quem conviveu e as situações que presenciou, direta ou indiretamente.

Celina foi funcionária pública e, em entrevistas, relembrou que “em vez de estar fazendo meu trabalho, ficava escrevendo coisinhas, versinhos”, atitude idêntica à da personagem D. Clara, que também se inspirava nos ocorridos no tribunal para seus escritos, assim como sua criadora. Seu primeiro romance, Menina que vem de Itaiara, foi inspirado em Bragança, mas Celina inventou o nome Itaiara para disfarçar o fato de ter usado um prefeito real de Bragança como base para um personagem. Outro exemplo é a personagem Marcela, uma francesa. Vencedora de um concurso de redação da Aliança Francesa em 1957, Celina ganhou uma viagem para a França, país pelo qual se apaixonou e para o qual voltou para fixar residência em 1974, lecionando na Universidade de Lille III. Ela viveu muitos anos na França, falecendo em Paris em 2003, aos 85 anos de idade.

A trama expõe ponderações sobre características humanas individuais, ao mesmo tempo que questiona a sociedade e suas instituições coletivas. No âmbito particular, por exemplo, Afonso é religioso, mas comete seus pecados e sofre por isso. Ele planeja formas de não mais pecar, mas nunca as concretiza. Em uma característica tipicamente brasileira, o narrador sempre promete a Nossa Senhora que buscará ser mais virtuoso após o próximo Carnaval. É uma luta interna entre praticar o bem e ceder ao mal.

No âmbito coletivo, há uma luta análoga, demonstrada por meio da crítica às hipocrisias, injustiças, e da sensação de superioridade que pode existir em cargos de poder e autoridade. Celina expõe as características humanas, suas contradições, seus dilemas, suas satisfações, em uma teia que por vezes faz rir e, por outras, silenciar e ponderar.

Celina estrutura as digressões e retomadas dos pensamentos de forma a causar processos disruptivos. É comum Afonso tecer elogios a um personagem específico e, sem nem ao menos finalizar a ideia por completo, abruptamente metamorfoseá-los em críticas categóricas. Esses aspectos disruptivos são direcionados a toda a gama de personagens: padres, juízes, funcionários públicos de todas as instâncias e cidadãos em geral. Por exemplo, Afonso preza muito pela religião, mas não se comporta como um fiel deslumbrado. Ele enxerga e questiona as atitudes dos padres com os quais convive – há os que seguem os princípios cristãos e outros que enveredaram pelo caminho mundano. O mesmo ocorre com o presidente do Tribunal de Justiça – Consciença – pelo qual tem, concomitantemente, alta consideração e extrema repulsa. Entre seus colegas de trabalho, considera D. Clara uma amiga próxima, ao passo que critica e desaprova atitudes e comportamentos que lhe são confiados sob o véu do apreço. Imoralidade, hipocrisia e crueldade são apresentadas de forma muitas vezes crua, porém é destacado que os indivíduos que as praticam também têm seus aspectos benevolentes, caridosos e agradáveis. Por isso, o texto é tão relevante hoje quanto era na época de lançamento.

Da mesma forma, o narrador transita entre se compadecer dos outros e julgá-los. Mas por que um sujeito que se vê como inerentemente empático, capaz de se emocionar ao evocar situações lamentáveis ocorridas aos seus conhecidos, em contrapartida, não consegue abster-se de julgá-los por suas ações e omissões? Suas “sentenças” são tão contundentes e regulares que contrastam demais com o fato de se ver (e ser visto) como empático, praticamente um Santo de Altar. Ora, isso quase insinua uma forma de Afonso compensar e absolver seus próprios erros, uma sensação de “ao relevar as falhas dos outros, em contrapartida, suas próprias falhas serão relevadas”. E vai além: favores recebidos são vistos por ele como dívidas, as quais amortiza com bondade e indulgência.

Celina cria uma pequena amostra do imensurável humano, fazendo caber em um cômodo de repartição pública discussões, diálogos e debates que abarcariam o universo. Mas o faz de forma engraçada e bem-humorada. Em sua obra, há a contemplação do real sentido de “ser humano”: não há indivíduo totalmente bom ou mau. Está, antes, entremeado de ambiguidades e imprecisões, oscilando entre infinitas possibilidades de escolha, agindo muitas vezes na base de tentativa e erro. Porém, apesar de todos serem imperfeitos, há um instinto quase inerente ao ser humano de olhar ao redor e fazer juízo sobre o ambiente que o cerca, com base em um ponto de vista pessoal, subjetivo e abstrato. E, entre os escalados para decidir sobre o destino dos cidadãos, o verdadeiro juiz do Tribunal de Justiça de Belém acaba sendo Afonso, o contínuo.

Para saber mais

CELINA, Lindanor (1995). De Mãos Dadas. Entrevista a Lindanor Celina. [Entrevista concedida a] Maria Júlia Guerra. Radio e Televisão de Portugal. Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-lindanor-celina/. Acesso em: 1 fev. 2024.

GUERRA, Gutemberg Armando Diniz (2017). O processo criativo de Lindanor Celina. Revista Sentidos da Cultura, Belém, v. 4, n. 6, p. 9-21. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/sentidos/article/view/1426. Acesso em: 1 fev. 2024.

PEREIRA, Danglei de Castro (2021). A modernidade em Afonso Contínuo: Santo de Altar, de Lindanor Celina. Revista de Letras Norte@mentos, Sinop, v. 13, n. 34, p. 163-174. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/norteamentos/article/view/7648. Acesso em: 1 fev. 2024.

PINTO, Elias Ribeiro (2017). Lindanor e o demônio da escrita. Revista Sentidos da Cultura, Belém, v. 4, n. 7, p. 117-124. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/sentidos/article/view/1480. Acesso em: 1 fev. 2024.

REIS, Gleice do Socorro Bittencourt dos (2020). O cavalo desembestado do pensamento: fluxo de consciência como condutor da narrativa em Afonso Contínuo, Santo de altar, de Lindanor Celina. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade Federal do Pará, Belém.

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Como citar:

PERSIKE, Sheila Jeane Schulz.
Afonso Contínuo, Santo de Altar.

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Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

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Acessado em:

19 maio. 2025.