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A casca da serpente

VEIGA, José J. A casca da serpente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

Renan Henrique Messias de Paulo

Ilustração: Espírito Objeto

Entre 7 de novembro de 1896 e 5 de outubro de 1897, foi registrado no sertão da Bahia um conflito que marcou a história do Brasil. A Guerra de Canudos, como assim foi chamada, evidenciou o massacre do exército republicano em um Brasil que passava pela transição do seu sistema de governo.

Em 1902, o jornalista e escritor Euclides da Cunha (Catalão, RJ, 1866 – Piedade, RJ, 1909), após um intenso estudo de campo em Canudos, publicou a obra Os sertões, sendo a primeira contribuição literária, histórica e jornalística sobre o conflito. Dividido em três partes, a obra tece um importante estudo sobre a Guerra de Canudos e, sobretudo, sobre a figura de Antônio Conselheiro, o líder religioso que conduziu a população de Canudos durante a resistência.

Após 92 anos do fim da Guerra de Canudos e 87 anos da primeira publicação de Euclides da Cunha, o goiano José J. Veiga (Corumbá, GO, 1915 – Rio de Janeiro, RJ, 1999), já consolidado no mercado editorial brasileiro, publicou A casca da serpente, em 1989.

José J. Veiga foi um importante escritor brasileiro do século XX. Sua estreia na carreira literária se deu com a publicação de Os cavalinhos de platiplanto (1959), e ele rapidamente conquistou relevância no cenário nacional. Veiga acompanhou diversas transformações sociais, econômicas e políticas no Brasil, e sua produção literária foi profundamente influenciada por esses contextos, especialmente durante a Ditadura Militar (1964-1985), período marcado pela censura e perseguição que ditavam o modo de vida.

Apesar da atmosfera pesada e conturbada no período de 1964 a 1985, José J. Veiga não deixou de escrever e publicar seus trabalhos. Diante de um mundo perigoso, o autor utilizou o pano de fundo do contexto social e político em que vivia e elaborou romances e contos que dialogavam com o tempo presente. Sombras de reis barbudos é um exemplo disso. Publicado em 1972, o romance narra a criação da Companhia de Melhoramentos de Taitara, que, de forma tirânica, impõe uma série de regras que impedem a liberdade das personagens. Esse romance é uma crítica velada à ditadura e dá a ver como, durante o regime de exceção, José J. Veiga formalizou em suas obras uma alegoria e crítica à opressão e à censura, utilizando o surreal para ilustrar as realidades políticas sombrias e a falta de liberdade no Brasil.

Com o término da ditadura, José J. Veiga não abandonou os elementos fantásticos em suas obras. No entanto, com a publicação de A casca da serpente, há um enfoque diferente, em que a revisitação histórica é a principal temática.

Publicado em 1989 pela editora Bertrand Brasil, A casca da serpente apresenta uma história ficcionalizada sobre a Guerra de Canudos. O romance retrata o final da guerra, mas não a morte do líder religioso Antônio Conselheiro. Fingindo que ele havia sido derrotado pelas tropas republicanas, Conselheiro e seus seguidores têm a missão de construir uma nova Canudos.

O romance é dividido em cinco partes, que reconstroem desde o final da guerra e a farsa da morte de Conselheiro até o retiro dos sobreviventes para a construção de um novo espaço de resistência. Antônio Conselheiro era o líder religioso daqueles que o seguiam, e seu discurso religioso era sempre o mais importante e presente. No entanto, ele também criticava a política, especialmente em relação às transformações recentes no Brasil republicano. Segundo Conselheiro, a República significava a vinda do anticristo.

Vale destacar o tom autorreflexivo do romance. Ao reconstruir os eventos do final do século XIX com um olhar do século XX, o narrador permite que os leitores compreendam a história sob a perspectiva de uma época posterior. Assim, as conclusões sobre a guerra são suscetíveis aos juízos de valores do tempo presente.

Outro ponto interessante é a humanização da figura de Antônio Conselheiro. Durante a guerra e na formação de Canudos, o líder não era uma personagem aberta ao diálogo; suas ordens, pedidos e orientações eram seguidos sem resistência, seja por sua importância para a comunidade, seja por ser uma figura messiânica que todos seguiam na esperança de ele ser realmente o salvador, ou pela destreza de sua articulação política. Em A casca da serpente, Conselheiro muda e, de forma coletiva, tenta reconstruir Canudos, ouvindo a todos, inclusive a primeira personagem feminina a se reunir com o grupo na trama, Dona Marigarda, uma sobrinha distante de Conselheiro que, antes da guerra, jamais pensaria em se aproximar dele, apesar de o estimar muito, assim como todos no arraial.

Conselheiro muda: sua casca de serpente cai, assim como Canudos. No romance de Veiga, o líder da comunidade abdica das barbas grandes e mal cuidadas para assumir uma imagem mais jovial e sem as amarras do passado. Agora, não há mais o exagero de tentar pregar palavras sempre com o auxílio da Bíblia. O trauma da guerra transformou aquele personagem que, embora novo, ainda se mantinha na posição de liderança do grupo, mas com uma nova liderança, como o exemplo de conversar com mulheres: “Em Canudos, nunca ninguém viu o conselheiro conversar com mulher frente a frente, e parece que ele considerava essas criaturas como portadoras de malefícios para os homens”.

A casca da serpente é jogada fora, e um novo Antônio Conselheiro surge para contar uma nova história: “Desde que tirara a barba e jogara fora o camisolão de penitente, que parecia que ele andara fazendo uma limpeza também nas ideias: deixara o exagero das rezas e a mania de entender tudo pelo compasso da Bíblia e do fanatismo religioso”. Ele não era mais visto como o Conselheiro: agora era chamado de Tio Antônio.

 A reconstrução dos eventos históricos que Veiga faz em A casca da serpente também dá protagonismo aos sujeitos excêntricos. No romance de Veiga, os sertanejos permanecem vivos, resistentes à ofensiva violenta dos militares que tentaram destruir suas vidas. Ao reinserir os sertanejos na história, Veiga subverte os acontecimentos reais da história, mas, ao mesmo tempo, permite que esse ponto de vista seja contado e dá visibilidade aos personagens marginalizados pela própria história política do país.

A reconstrução de Canudos é feita no arraial de Itatimundé, uma localização fictícia centralizada no sertão nordestino. A reprodução do modo de vida daquela sociedade é regida pela forte presença da guerra, que dizimou muitas vidas e fez com que aquelas personagens lidassem com a nova realidade. Porém, o trauma da guerra não os impediu de ter autonomia e buscar força para reconstruir uma nova Canudos.

Diversos personagens são intrigantes, especialmente Marigarda, a sobrinha que ganha voz de liderança diante de tantos homens que estavam acostumados apenas a se ouvir; Dasdor, um garoto que aprende a se tornar um sertanejo muito inteligente; e o russo anarquista Pedro, que divide visões de construção de uma sociedade com Tio Antônio. Ambos trocam muitas conversas e escrevem o que seria o mundo ideal para eles: “Dª Marigarda um dia perguntou se eles estavam a fim de passar o mundo a limpo. Quem respondeu foi o tio. ‘O mundo não. Só este nosso pedaço de sertão. Não é, Sr. Pedro? Por enquanto. Quando tivermos arrumado o sertão, vamos cuidar do país. Depois atacaremos o mundo’”.

O romance conta com um narrador onisciente em terceira pessoa e, dessa forma, consegue-se perceber as reações das diversas personagens a respeito da vida cotidiana no novo arraial. A reconstrução segue um modelo menos autoritário e mais colaborativo, alinhado com a lógica de um mundo ideal e mais social, segundo Antônio Conselheiro.

A casca da serpente é um romance que subverte a noção de história ao recriar de maneira metaficcional o que seria o pós-Guerra de Canudos. José J. Veiga constrói uma narrativa que permite aos leitores tecer novos olhares sobre a figura histórica. Além disso, a humanização da personagem faz com que ela se aproxime ainda mais de um lugar de afeto, despertando a empatia e o carinho do leitor.

A obra traz à tona importantes debates para a sociedade não apenas de sua época de lançamento, mas também dos dias atuais. Entre esses debates, estão questões como os movimentos sociais, a desigualdade e a luta pela terra, os movimentos de resistência, o messianismo, além de provocações sobre a criação de um mundo menos desigual, violento e injusto.

Para saber mais

CARVALHO, Maria Luiza Ferreira Laboissière; CABRAL, Maria Wellitania de Oliveira (2008). História e metaficção na novela A casca da serpente, de José J. Veiga. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências, 11., 13 a 17 de julho de 2008, Universidade de São Paulo. Anais… Disponível em: http://www.abralic.org.br/Cong2008/AnaisOnline/Simpósio/pdf/42. Acesso em: 21 jul. 2024.

CUNHA, Euclides (2016). Os sertões. São Paulo: Martin Claret.

GUEDES, Rebeca Santos de Amorim (2010). Os sertões e A casca da serpente: a reescritura como ressignificação. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

PAULO, Renan Henrique Messias de (2023). Reler as ditaduras no Brasil e Portugal: o realismo mágico em Sombras de reis barbudos, de José J. Veiga, e O dia dos prodígios, de Lídia Jorge. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/19082. Acesso em: 21 jul. 2024.

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Como citar:

PAULO, Renan Henrique Messias de.
A casca da serpente.

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Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

2707.

Acessado em:

19 maio. 2025.