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Balada para as meninas perdidas

LEONEL, Vange. Balada para as meninas perdidas. São Paulo: Summus, 2003.

Giulia Campos

Ilustração: Manuela Dib

Balada para as meninas perdidas é o primeiro e único romance da compositora, jornalista, cronista e sommelier de cervejas Vange Leonel (São Paulo, SP, 1963-2014). Quando se pesquisa sobre o livro, o primeiro plano é sempre sua classificação: “lésbico” ou “sáfico”. Embora a obra não seja muito pesquisada e, agora, muitos anos depois, seja uma das produções menos lembrada da autora, o romance é um importante componente da literatura lésbica brasileira dos anos 1990 e 2000, discutindo a cultura sáfica de seu tempo, de maneira quase sensorial.

Vange Leonel passou a dedicar-se à militância LGBTQIA+ após se assumir gay publicamente em 1995. A partir daí, a vivência das mulheres lésbicas tornou-se o pano de fundo de toda a sua produção literária. Começou a atuar como cronista na revista LGBT Sui Generis em 1997, um ano após o lançamento de seu segundo e último álbum solo como compositora e musicista, o EP Vermelho. Dessa parceria, que duraria três anos, Vange viria a compilar seus dois primeiros livros, as coletâneas de crônicas Lésbicas e Grrrls: garotas iradas, publicados em 1999 e 2001, respectivamente. Em 2003, Vange Leonel se aventurou com a publicação de Balada para as meninas perdidas, seu único romance.

A atmosfera que compõe a história é a da noite lésbica paulistana do início dos anos 2000. A narrativa centra-se em três principais personagens, ou, como se refere a narradora, “meninas perdidas”. A primeira é Wendy, chamada de “Ray-Ban” nos primeiros capítulos, uma mulher de cerca de 40 anos que, buscando retomar sua vida social após um longo período “enclausurada”, passa a frequentar uma balada chamada Neverland. O segundo núcleo é composto por Lelê e Belzinha, duas ex-namoradas e melhores amigas, que também frequentam o local e vivem lá suas tramas amorosas e aventuras. Wendy passa suas noites observando as garotas, mas, ao tentar aproximar-se, descobre que Lelê e Belzinha não podem vê-la. Ela é literalmente invisível para elas, precisando recorrer a bilhetes e outros objetos para se comunicar.

A obra é estruturada em pequenos capítulos, com cerca de três páginas cada, e cada capítulo é nomeado com títulos curtos como “Ray-Ban”, “Lelê” e “Neverland”. A escrita de Vange é fluida e informal, e a trama se desenrola rapidamente. A autora emprega uma enorme riqueza de detalhes para descrever o desejo e as trocas sexuais entre as personagens, criando cenas vívidas e marcantes.

A história é uma releitura de Peter Pan em um universo sáfico, com elementos homônimos bastante claros. Desde o nome das personagens e suas características até os nomes dos locais e outros elementos da trama, a obra faz referências explícitas à história original. Por exemplo, a balada frequentada pelas personagens é chamada de Neverland, e elas são frequentemente referidas como “meninas perdidas”. Belzinha é inúmeras vezes descrita como pequena, delicada e loira, características que remetem à personagem Sininho da produção cinematográfica de Peter Pan (1953). Da mesma forma, Lelê compartilha a vontade de nunca crescer, envolvendo-se de maneira intensa e passageira com outras “meninas perdidas”. Outras referências incluem o hábito de chamar cocaína de “pó de pirlimpimpim” e a própria trama da invisibilidade de Wendy.

Wendy é a primeira personagem a aparecer, descrita como uma mulher de 40 anos que se sente profundamente envelhecida: “havia se tocado de que por dentro estava com mais de oitenta, enquanto que por fora permanecia igual” (Leonel, 2003). É possível explorar a ideia de que a trama de sua invisibilidade possa estar associada ao etarismo presente na comunidade lésbica daquele período, visto que Wendy é frequentemente descrita como mais experiente e madura, enfrentando a crise dos 40 anos em um contexto de invisibilidade social (e não apenas literal) em relação ao outro núcleo da história. Outra interpretação é que Wendy possa ser uma representação mais direta e autoficcional da própria Vange Leonel, que também tinha 40 anos na época do lançamento do romance.

A resenha crítica “Sexo, música e verossimilhança embalam Vange Leonel”, publicada por Sérvio Dávila (2003) na Folha de São Paulo durante o lançamento do livro, destaca essas semelhanças e chama atenção para a atmosfera paulistana extremamente verossímil da obra. A descrição da vida noturna apresentada por Vange em Neverland demonstra uma observação atenta da noite sáfica de São Paulo, criando no leitor a vívida sensação de estar em Neverland durante uma noite paulistana no início dos anos 2000.

A maneira como Vange descreve a amizade entre Lelê e Belzinha é extremamente verossímil, capturando suas questões, dramas e relações de forma profunda. A complexidade na forma como essas mulheres se relacionam é descrita detalhadamente, com atenção aos seus fluxos de pensamento e processos relacionais. É a partir desses processos, que podem quase ser descritos como psicanalíticos, que a narradora constrói o enredo que apresenta.

O livro é, ainda, repleto de descrições acerca das características, opiniões e padrões de comportamento da comunidade lesbiana daquele período, e, embora peque em representatividade, sendo por vezes excessivamente arquetípico na descrição de suas (poucas) personagens negras e indígenas, é um totem de diversos marcadores culturais da comunidade LGBTQIA+ dos anos 1990 e 2000. Em colunas publicadas na Folha de São Paulo (21 anos depois do lançamento de Balada para as meninas perdidas) e no site LGBTQA+ A Capa, destaca-se a relevância da ampla descrição das cenas de sexo, retratadas com enorme riqueza de detalhes, criatividade e ludicidade.

A fortuna crítica em torno da obra é diminuta, uma vez que Vange Leonel produziu seu último trabalho literário em 2006, a peça Joana Evangelista, e obteve maior reconhecimento por sua carreira musical – com destaque para sua canção Noite preta, tema da novela Vamp – do que pela sua produção literária. No campo da literatura, a maior parte da pesquisa sobre sua obra concentra-se em suas crônicas, sendo, em alguns casos, relativamente recente e posterior ao falecimento da artista em 2014. Atualmente, o romance Balada para as meninas perdidas figura em inúmeras listas de livros LGBTQIA+ publicadas em blogs e artigos jornalísticos sobre literatura lésbica online, compõe trabalhos de conclusão de curso sobre a importância da literatura sáfica em acervos de bibliotecas públicas e aparece, junto com toda a obra de Vange Leonel, no site Poesia Gay Brasileira.

Balada para as meninas perdidas, o livro menos lembrado de Vange Leonel, é uma leitura divertida e representativa da literatura lésbica brasileira. A partir de sua narrativa, Vange retrata, com riqueza de detalhes, o universo sáfico. Utilizando uma estrutura de enredo simples e de fácil leitura, a autora explora com leveza as relações entre mulheres, seus dramas, questões e tesões, através do mistério da invisibilidade de Wendy. Vinte anos depois, a história tornou-se um retrato da cultura sáfica de seu tempo, oferecendo ao leitor um vislumbre da atmosfera palpável das baladas lésbicas paulistanas do início do milênio.

Para saber mais

A CAPA (s.d.). Coluna debate livro lésbico inspirado na história de Peter Pan. Cultura. A Capa. Disponível em: https://acapa.com.br/coluna-debate-livro-lesbico-inspirado-na-historia-de-peter-pan/. Acesso em: 25 jan. 2024.

CHASSOT, Mariele Cristina (2022). Livros no armário: percepções acerca da importância da literatura sáfica em acervos de bibliotecas públicas. Monografia (Graduação em Biblioteconomia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/258892. Acesso em: 25 jan. 2024.

DÁVILA, Sérgio (2003). Balada para as meninas perdidas: sexo, música e verossimilhança embalam Vange Leonel. Folha de São Paulo, 4 nov. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0411200312.htm. Acesso em: 25 jan. 2024.

LEONEL, Vange (2001). Grrrrls: garotas iradas. São Paulo: Summus.

LEONEL, Vange (1999). Lésbicas. Rio de Janeiro: Velocípede.

LIMA, Maria Isabel de Castro (2009). Cassandra, rios de lágrimas: uma leitura crítica dos inter(ditos). Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/93291/267494.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 25 jan. 2024.

PETER Pan (1953). Direção: Hamilton Luske, Clyde Geronimi e Wilfred Jackson. Produção: Walt Disney. EUA: RKO Radio. 77 min.

Iconografia

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Como citar:

CAMPOS, Giulia.
Balada para as meninas perdidas.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

15 out. 2024.

Disponível em:

2720.

Acessado em:

19 maio. 2025.