LINS, Osman. A rainha dos cárceres da Grécia. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
Sayuri Grigório Matsuoka
Ilustração: Guilherme Franzoni
Osman Lins (Vitória de Santo Antão, PE, 1924 – São Paulo, SP, 1978) tornou-se escritor por vocação e, também por vocação, assumiu a literatura como modo de atuar no mundo, talvez porque assim pudesse encarar todos os desafios do ato da escrita. Os dois marcos de sua atividade como ficcionista foram O visitante, de 1955, e Domingo de Páscoa, conto publicado somente em 2013, 37 anos após sua morte.
Consciente das complexidades infinitas da escrita, Lins navegou por diferentes gêneros, atendendo a propósitos artísticos e teóricos. Frequentemente, ele mesclava essas duas perspectivas para refletir sobre a condição do escritor e os alcances da literatura, seja no cotidiano das pessoas ou em livros didáticos. Fora do âmbito ficcional, publicou crônicas e ensaios em jornais e revistas. Em sua tese de doutorado, orientada por Alfredo Bosi, Lins (1976) abordou um tema que lhe foi caro: a análise do espaço na prosa de Lima Barreto.
Sua preocupação com os rumos sociais diante dos eventos que afetavam a economia nacional e mundial no século XX e com as consequências disso para a cultura resultou em escritos como Guerra sem testemunhas e Um mundo estagnado. Nesse mesmo propósito, destaca-se a obra póstuma Evangelho na Taba, uma compilação de artigos e entrevistas concedidos por Lins a periódicos.
Em toda essa vasta produção intelectual, é possível observar temas recorrentes que refletem a personalidade literária de Lins, suas concepções estéticas e seus posicionamentos diante da realidade. Nesse sentido, pode-se dizer que uma preocupação constante em seus textos é a denúncia das práticas autoritárias da ditadura brasileira (1964-1985), que intoxicou o país por mais de vinte anos. Essas reflexões, de natureza política e econômica, aliadas a inquietações estéticas e narratológicas, reverberam por toda a sua obra, formando um quadro preciso do que ocorria nesse período. Assim, ler Lins é também um meio de perceber, com profundidade, os abusos que oprimiam o país e os sentimentos de impotência e indignação que eles despertavam.
A rainha dos cárceres da Grécia não foge a esse contexto e atende a essa demanda, reunindo concepções de cunho reflexivo que, ao serem aplicadas a episódios históricos, revelam mazelas sociais e pessoais. A designação romanesca configura-se aqui em seu sentido mais amplo, com o romance desafiando qualquer tentativa de imposição de limites. A partir dessa simbiose, a ficção reconstitui, em suas formas de expressão e em seus temas, aspectos das esferas econômica, social, política e cultural. O romance desprende-se dessas referências e circunstâncias, tornando-se a expressão mais aprofundada, ainda que abstrata, da realidade. Sua feição inacabada, sua existência em devir, favorecem a multiplicidade e a liberdade criativa.
O título remete a um romance intradiegético, isto é, um romance inserido no romance, como narrativa secundária, o que sinaliza o caráter metaliterário da obra. A rainha dos cárceres da Grécia, o romance criado na história, foi escrito por Julia Marquezine Enone, amante do narrador, morta precocemente. Esse motivo inicial permite a apresentação de elementos críticos da esfera de categorias narrativas, além de discussões sobre a realidade brasileira, sobretudo a das cidades de Recife e Olinda, que juntamente com a Grécia, lugar imaginário, compõem os cenários da obra de Júlia, apresentados em um desenho memorialístico feito pelo narrador, que se posiciona em São Paulo.
Marcada por um tom crítico-ensaísta, a narrativa de Lins aproxima-se de um tipo de escrita que se volta para si mesma, explorando suas estratégias ficcionais e valores essenciais. A presença massiva de escritores e obras, por meio de citações e referências, lembra o princípio intertextual da constituição literária, amplamente estudado nas décadas de 1960 e 1970, quando a teoria de Mikhail Bakhtin (2010, 2016) sobre o dialogismo chegou ao Ocidente por meio das leituras de Julia Kristeva (2012).
Um narrador que não se reconhece como escritor, mas como “alguém que se aventura no envolvente universo da escrita”. Assim se define o narrador de A rainha dos cárceres da Grécia. O universo da escrita funciona aí como um lugar que expõe as frágeis fronteiras entre ficção e realidade, com seus muitos pontos de reflexão sobre arte, cultura, política e sociedade. Nessa prerrogativa, Lins faz uma reflexão profunda sobre a escrita, a partir da experiência do ficcionista atento às indagações existenciais que se desprendem da observação artística da linguagem.
A compreensão de arte, nessa obra, pode ser vista como expressão estética, política e social, na medida em que esses elementos se entrelaçam para mostrar técnicas de composição literária. Nesse caso, especificamente, a ficção funciona como um aparato de encadeamentos em que as estratégias assumem um papel de destaque, pois os eventos surgem em meio a digressões inseridas no texto para revelar os meandros da linguagem e da organização das categorias narrativas.
A obra também se caracteriza como metarromance ensaístico por ser construída acerca da análise de um segundo livro. Assim, a tensão entre os estatutos ficcional, verbal e real da literatura assume um aspecto dialógico contínuo, no qual o leitor é convocado sistematicamente a refletir sobre os temas apresentados. O exame de categorias narrativas, como personagem e espaço, é um elemento marcante na obra, com especial atenção dada ao último pelo narrador. Tudo isso é devidamente referenciado ao modo da escritura acadêmica.
O formato do romance é o de um diário, no qual são registradas, dia a dia, as reflexões do narrador a partir da análise da obra metaliterária. A narrativa revela, pela observação do estilo da autora estudada, aspectos da forma literária que preocupam tanto a estrutura quanto o conteúdo de ordem social. Convocando o leitor a conhecer e refletir sobre o processo, o eu diegético, que se institui na escrita e no discurso, completa-se em um outro que é reconhecido no texto como princípio ontológico.
O estudo sobre o espaço também tem um lugar de destaque no livro e configura-se por meio de digressões do narrador a respeito dos cenários que caracterizam Recife, Olinda e Grécia, lugar imaginário. As cidades de Recife e Olinda surgem no romance de Julia Marquezine Enone a partir de uma dualidade entre cenários descritos de formas ora objetivas, geograficamente marcadas, ora fluidas, espacialmente indefinidas. Recife, sobretudo, configura-se na narrativa como um espaço complexo que se define topográfica e miticamente, chegando a absorver, em dado momento, a cidade de Olinda para formar com ela um todo espacial contínuo e complementar. Na Grécia, lugar também metafórico, dá-se a prisão de Maria de França, personagem do romance intradiegético. Nesse ponto, a descrição espacial assume um viés metafórico em que as designações locais dão lugar às descrições subjetivas.
O tema da loucura aparece na análise como um elemento norteador para a observação do funcionamento da linguagem como mecanismo de interpretação do mundo. Além disso, serve como ponto de partida para a discussão sobre o funcionamento da categoria personagem enquanto “dispositivo de mediação” e sua importância para a construção das leituras do texto.
Maria de França sofre dessa condição que, na análise ficcional, é colocada no plano social da obra. A loucura torna-se, então, um dos temas centrais do romance de Enone, servindo como apoio para a discussão de duas questões fundamentais na obra de Lins: a difusão ficcional em meio ao aparato linguístico e as concepções sociais regidas por formas discursivas. Na exposição desse tema, encontra-se uma chave para a compreensão da elaboração romanesca de Enone: disfarçar, com uma deformação, o que na verdade é uma tentativa de chegar ao âmago do isolamento humano.
Na metanarrativa, o tema da loucura também cria uma ambiência de oscilação entre o real e o imaginário, o que contrasta, em certo sentido, com o tom acadêmico da análise ficcional. O tom imaginativo destaca-se especialmente na referência espacial à Grécia, que, apesar de ser um lugar artificialmente nomeado, remete ao passado mítico da literatura ocidental.
O convite à leitura do romance fica ao leitor interessado em desvendar os meandros do fazer literário e estende-se a quem aceitar o desafio de enveredar por ensaios sobre arte, cultura, memória/história e literatura, diluídos na ficção. E ainda, a quem souber se desvencilhar dos impedimentos formais da linguagem acadêmica para apreciar a beleza dos termos técnicos que explicam o funcionamento da narrativa ficcional.
Os romances de Lins exemplificam essa liberdade criativa, desviando-se dos modelos correntes a cada publicação. Para ele, a experimentação parecia ser a motivação artística de suas composições, e o romance, o laboratório propício a essas fusões inovadoras.
Para saber mais
BAKHTIN, Mikhail (2016). Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34.
BAKHTIN, Mikhail (2010). Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
BOSI, Alfredo (2014). O Osman Lins que conheci. Eutomia, Recife, 13 (1): 172-176, jul. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/EUTOMIA/article/view/630. Acesso em: 20 jul. 2024.
CAMARGO, Flávio Pereira (2008). O discurso metaficcional em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. Latinoamérica – Revista de Estudios Latinoamericanos, n. 47, p. 9-36. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/328093852_O_discurso_metaficcional_em_A_rainha_dos_carceres_da_Grecia_De_Osman_Lins. Acesso em: 20 jul. 2024.
DALCASTAGNÈ, Regina (2002). Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 20, p. 33-77. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8925. Acesso em: 20 jul. 2024.
KRISTEVA, Julia (2012). Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva.
RIBEIRO, Renata Rocha (2009). A interpenetração romance-ensaio em A rainha dos cárceres da Grécia e Guerra sem testemunhas. In: FARIA, Zenia de; FERREIRA, Ermelinda (Orgs.). Osman Lins 85 anos: a harmonia de imponderáveis. Recife: Editora da UFPE. p. 209-226.
Iconografia