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O antigo futuro

RUFFATO, Luiz. O antigo futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Carlos Wender Sousa Silva

Ilustração: Carolina Vigna

O romance O antigo futuro (2022), do escritor mineiro Luiz Ruffato (Cataguases, MG, 1961), foi publicado em 2022. Em 2001, o autor publicou Eles eram muitos cavalos, seu romance de estreia, com o qual recebeu os prêmios APCA e Machado de Assis, também editado em vários países. O jornal O Globo elegeu essa obra um dos dez melhores livros de ficção da década. Ruffato também é autor de De mim já nem se lembra (2007), Estive em Lisboa e lembrei de você (2009) e Flores artificiais (2014). Sua produção foi ainda reconhecida com o prêmio Jabuti, em 2007, pelo romance Vista parcial da noite (2006) e, em 2015, na categoria infantil, pela obra A história verdadeira do sapo Luiz (2015). Em 2016, recebeu o prêmio internacional Hermann Hesse, na Alemanha.

O projeto literário de Ruffato é marcado pela associação entre elementos estéticos e políticos que subsidiam suas narrativas ficcionais. Seus personagens são marcadamente da classe média baixa brasileira, com todas as suas implicações e desdobramentos na sociedade como um todo. O texto ficcional do escritor se destaca pela pluralidade de vozes narrativas, fragmentação da narrativa, não linearidade e tantos outros recursos estilísticos e de linguagem que lhe dão uma característica literária própria. A cidade natal do autor, no interior mineiro, é utilizada como recurso literário para pensar o espaço urbano para além das grandes metrópoles. Os elementos precários e instáveis que constituem as relações sociais, as ruínas e rupturas que emergem dos conflitos dentro de uma comunidade política são instrumentos da produção do escritor. Ruffato explora as contradições da sociedade brasileira como desigualdade versus modernidade, contemporâneo versus conservador, progresso versus reacionário, centro versus interior-margem.  

Em O antigo futuro, desenha-se a história dos desafios políticos, econômicos e sociais impostos a uma família do início do século XX até os dias atuais, passando por várias gerações. O romance é dividido em cem breves capítulos, em quatro partes, que, de forma regressiva, adentram a história de Alex, um imigrante nos Estados Unidos. A narrativa percorre as transformações da vida desse personagem, de seus familiares e ascendentes. A família está submetida a disputas e embates que revelam, na verdade, não uma história familiar, mas a de todo um país. A desigualdade social, a violência e a marginalização que atravessam essa família, em diferentes momentos espaço-temporais, representam boa parte daquilo que a sociedade brasileira construiu ao longo do tempo e vai deixando de herança aos seus descendentes.  

Assim como em Estive em Lisboa e lembrei de você, O antigo futuro se desenvolve em torno da ilusão de prosperidade possibilitada pela emigração. O romance de 2009 é narrado em primeira pessoa e tem como protagonista Serginho, um brasileiro que emigra para Lisboa em busca de melhores condições de vida no país europeu. A narrativa é contada a partir da perspectiva de um imigrante ilegal. Em O antigo futuro, por sua vez, Alex vai para os Estados Unidos pensando em trabalhar e retornar ao Brasil em breve com mais dinheiro. E todos os que iam com esse desejo e esperança, no decorrer do tempo, percebiam que esse ideal não passava de uma ilusão construída pelas estruturas de poder. Pouco a pouco o corpo do personagem foi se adaptando às mudanças de estação e se conformando à vida de subserviência que lhe era imposta. Trabalhava até onze horas por dia, além do tempo despendido no transporte público. Trocava de emprego algumas vezes, ocupando sempre subempregos. Pouco a pouco percebia que nunca mais conseguiria retornar ao Brasil, um sonho mais e mais distante. No Brasil, tinha deixado o pai acamado, a irmã Jaqueline com uma depressão avassaladora, a cunhada Rivânia cuidando de todos com o dinheiro contado e a memória do irmão Bruno e do cunhado Vânderson, ambos assassinados pela violência das ruas de São Paulo. Alex enviava algum dinheiro à família para ajudar e guardava para si apenas o necessário para as despesas essenciais como aluguel, comida e transporte. Lazer, acesso aos bens materiais e imateriais que aquele país de “primeiro mundo” produzia ininterruptamente, qualidade de vida, nada disso estava incluso no pacote.

Ao longo da narrativa, vão reunindo-se fragmentos da trajetória da família de Alex. Muitos desses retalhos e pedaços inacabados de uma história familiar, Alex tinha conseguido com o tio Gilberto, o Artista, o qual aparecia de vez em quando. O pai, Dagoberto, pouco falava sobre a família. A memória de Dagoberto estava em algumas poucas coisas que tinha consigo: o armário cinza cheio de ferramentas úteis e inúteis; a gata preta que surgira na garagem com quase nenhuma chance de vida, mas que conseguiu resistir e viver por longo período. Alex não tinha quase nenhuma memória da mãe. Sem fotografias, às vezes se perguntava por onde ela andava. Nos Estados Unidos, ele levava uma vida de desterrado, mas à qual já tinha de certa forma se conformado e acostumado. Não cogitava voltar ao Brasil, pois “as notícias que circulavam revelavam a extensão do pântano de corrupção, violência e ressentimento em que se afundava o país”. Mais valia um exilado apegado a uma suposta possibilidade de futuro do que preso num passado que insistia em permanecer. Alex e outros latino-americanos viviam à margem da sociedade nos EUA. Passavam os dias com medo de terem sua clandestinidade no país estrangeiro descoberta e então serem devolvidos ao país de origem, que também os colocava no limbo do mundo. Essas eram pessoas rejeitadas pelo território estrangeiro e pelo próprio país.

Em alguns dias quentes nos EUA, Alex relembrava também aquele dia quente de janeiro em que um sujeito atirou a queima-roupa em Bruno e Vânderson. E Alex então testemunhava, em seguida, o profundo silêncio que caía sobre o local e “vislumbrava os corpos do irmão e do cunhado inertes no chão”. Esse acontecimento o faz abandonar o país. Como consequência, deixa para trás toda a construção de uma história familiar, cultural e identitária. Sente que lhe foi imposto deixar tudo para fugir dessa lembrança e do sempre iminente risco de violência. Alex vivia agora a vida de um expatriado em meio à solidão, à saudade, à humilhação do dia a dia e à incerteza sobre o amanhã. “Alex já não conseguia olhar para o futuro, pois sabia que não há nada lá”. Ele aprendeu desde cedo que, pouco a pouco, a cidade engolia as pessoas que nela depositavam esperança. Do sonho, ficava apenas a memória de um “antigo futuro”. A experiência da família dele ao longo do século XX demonstrava isso. Sua ida para São Paulo, com uma mão na frente e outra atrás, também. Mudou-se antes e depois, movido pelo sonho de uma cidade – um país – que anunciava sucesso, dinheiro, prosperidade, paz, sossego, esperança. Algum lugar que lhe permitisse sonhar, enfim, construir um futuro.  

Ainda antes, o pai, Dagoberto, quis dar aos filhos a vida que nunca pôde ter. Sonhou a vida toda conseguir ter um lugar para chamar de seu. Quando criança, sua família tinha sido despejada várias vezes, abandonando brinquedos, amigos e memórias. Estavam sempre recomeçando. De endereço provisório em endereço provisório, Dagoberto imaginava futuros. Já adulto, sonhava com cada filho num pavimento do sobrado, os netos correndo alegres pelos cômodos. Ao rememorar a infância, Dagoberto lembrava também das conversas dos adultos sobre as dificuldades dos anos 1960 e da violência dos anos de chumbo da ditadura militar. Aléssio, o pai dele, anunciava à mãe que lá fora tinham derrubado o governo e que estavam atrás dos comunistas. Ela então interrogava o que eles, a família, tinham a ver com isso tudo. E Dagoberto ouvia da conversa entre os pais as ações totalitárias da ditadura, as prisões arbitrárias, as perseguições. Dagoberto ouviu falar de um regime que tornava os livros suspeitos, a poesia subversiva. O Padre que se recusava a abrir sua Igreja para comemorar o aniversário do regime totalitário que tinha se instaurado era perseguido, considerado criminoso. “O lema Brasil, ame-o ou deixe-o, a única coisa da Revolução de 64 da qual o pai discordava, em segredo”. 

A narrativa adentra também a infância de Aléssio, sua relação com os pais. Os Bortoletto sobreviviam da agricultura que produziam ao longo do ano. Os pais tinham nove filhos, Aléssio era o caçula. Aléssio, que sonhou ter família grande, fazia de tudo para que os filhos estudassem e não tivessem o mesmo destino que o seu. Renunciava aos seus sonhos para assegurar os dos filhos; “[…] falava para a mulher, Estou plantando hoje para que eles colham daqui a alguns anos”. Dos ascendentes dessa família, percorre-se também as transformações dos Bortoletto ainda no início do século XX. Abramo, seus pais e irmãos, em busca de um futuro, entraram num navio em Gênova rumo ao Rio de Janeiro. Viajaram na terceira classe, num local que parecia prisão. A comida é insuficiente e ruim. “O calor tornou-se insuportável, a catinga que emanava dos corpos suados se misturava ao fedor de vômito, de urina e de fezes, nauseando o ambiente”. O pai levava consigo nessa viagem a esperança de nunca mais passar fome, frio nem humilhação. A mãe lamentava que não mais iria ver seus parentes nem chorar seus mortos. No Brasil, já mais adulto, Abramo trabalhou tirando leite, capinando, aguando a horta, enquanto Emma, sua companheira, cuidava dos bichos e das tarefas domésticas. Percorrendo essa vida de miséria e humilhações, enxotado de fazenda por coronel e capataz, Abramo ouviu do seu pai, que estava enfermo numa cama, o último suspiro e sussurro: “Domàn è futuro, per noi non c’è futuro – Amanhã é futuro, para nós não há futuro”.

O antigo futuro é exatamente sobre esse futuro que está por vir, anunciado há gerações que vão se sucedendo umas às outras. A degradação social, as desigualdades que se fixaram na estrutura da nossa sociedade, as rupturas, as expulsões, as imposições econômicas, culturais e étnicas, todos os diferentes instrumentos de dominação servem cotidianamente para impedir que esse tão esperado futuro enfim chegue. Tudo isso resulta em violência, desterritorialização, rompimentos que vão modificando a concepção de cada sujeito em relação ao mundo, a si mesmo e a todos a sua volta. Em busca do futuro, as pessoas se distanciam, caem no esquecimento, sobrepõem o imediatismo do presente brutal sobre as memórias e os afetos que tentam guardar de outras pessoas. A narrativa apresenta uma realidade que nos faz lembrar que essa estrutura de organização social e política tem retirado de nós talvez aquilo que tenhamos de mais importante: nossa possibilidade de sonhar o futuro.  

Para saber mais

DELGADO, Gabriel Estides (2014). A negociação social do espaço em inferno provisório, de Luiz Ruffato. 2014. 93 f. Dissertação (Mestrado em Literatura). Universidade de Brasília, Brasília.

PELLEGRINI, Tânia (2020). A refração do realismo em Luiz Ruffato: um inferno permanente. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (59), 1–14.

SILVA CASAIS, Allysson Augusto (2022). A Cataguases de Luiz Ruffato: a experiência urbana no interior mineiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (65), 1–13.

TONUS, José Leonardo (2013). O discurso sobre a precariedade em Luiz Ruffato e Arlindo Gonçalves. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (41), 47–59.

Iconografia

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Como citar:

SILVA, Carlos Wender Sousa.
O antigo futuro.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

03 out. 2024.

Disponível em:

2672.

Acessado em:

19 maio. 2025.