TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
Lilian Reichert Coelho
Ilustração: Espírito Objeto
Um cão uivando para a lua (1972) é o título do primeiro romance de Antônio Torres (Sátiro Dias, BA, 1940) e uma frase que atravessa outros livros do escritor baiano. O cão é o ser humano enlouquecido, perdido entre diversos medos: da sociedade brasileira que se expande com as ilusões do capitalismo para o urbano caótico, deteriorando os sujeitos e as relações; da pressão do mundo do trabalho, do consumo e do desemprego. E, apesar disso, reconhece a beleza da lua.
Em diversos romances, os personagens de Antônio Torres estão no limiar subjetivo e de tempos e espaços coexistentes e contraditórios, na vida pacata de algum povoado esquecido por Deus e ponto de expulsão de migrantes (nomeado ou não, o Junco, distrito de Inhambupe, hoje município de Sátiro Dias, na Bahia, cidade natal do escritor) ou na comodidade vazia da vida moderna da cidade grande. E se confortam na memória.
O cachorro e o lobo é o oitavo romance de Torres e o segundo livro da trilogia da migração, do suicídio e das memórias de Totonhim. A trilogia se iniciou com a publicação de Essa terra (1976) e foi concluída com Pelo fundo da agulha (2006). Em 2022, para comemorar os 50anos de atuação literária de Antônio Torres, a editora Record publicou a Trilogia Brasil, reunindo os três romances num único volume. No final do primeiro livro, o jovem Totonhim decide ir para São Paulo, seguindo a sina de seu irmão mais velho, Nelo, adorado pelos pais, que havia partido 20 anos antes em busca de melhores condições de vida e retorna derrotado. Sente-se impelido a deixar Junco rumo a São Paulo por temer a associação com o irmão suicida, condenado que jamais terá o perdão do povo nem de Deus, como apregoa o “aluado” Alcino na pequena praça do lugarejo que vive conforme o calendário dos festejos católicos.
O cachorro e o lobo é composto por cinco partes: “O telefonema”, “Manhã”, “Tarde”, “Noite” e “A despedida”. A ligação da irmã Noêmia provoca o deslocamento de Totonhim, após décadas de distância e silêncio, uma viagem que durará 24 horas. O cachorro e o lobo é o mais centrado em afetividades dentre os romances da trilogia, sem a aflição e a tristeza de Essa terra ou a melancolia do homem envelhecido, aposentado, sem esperança, de Pelo fundo da agulha, embora também esteja permeado pela constatação da permanência da dureza das condições de vida no povoado em face das modernidades e transformações entendidas pelo narrador como incontornáveis. Isso além dos fantasmas, sendo o mais notável o de Nelo.
O telefone é o artefato disparador da viagem e da memória, mas a imagem da modernidade mais acentuada à que o narrador recorre em O cachorro e o lobo é a antena parabólica, a condensar a tônica de um tempo que corrói mundos antigos rememorados com nostalgia. Ela simboliza mudanças irrefreáveis e interfere nas memórias de Totonhim, que acreditava na ideia de voltar para sua terra natal e reconhecê-la tal como era em sua infância e adolescência, oferecendo-lhe o conforto de um refúgio intacto. Entretanto, não nota tantas equivalências entre o que vê e o que retém na memória. Do passado – e da própria vida – sobra apenas um “caco de telha” da casa da infância. O olhar do narrador não é inocentemente nostálgico, mas de constatação, ao mesmo tempo perturbadora e fatalista, da cisão entre a contemporaneidade e o passado, entre São Paulo e o Junco.
O cachorro do título é o próprio narrador (tanto se refere ao cão uivando para a lua quanto ao fato de o pai e outros personagens o chamarem de “seu cachorro!”), e o lobo é o pai, Seu Totonho, que o filho esperava encontrar derrotado pelo tempo e pela precariedade do Junco. O pesquisador Rogério Gonçalves (2014) destaca que o cachorro pode ser interpretado como o filho domesticado pela sociedade urbana, enquanto o pai é o lobo em sua vida ainda livre.
O tema principal da narrativa é a celebração do reencontro atravessado pelas memórias, sem tensões ou apreensões, mesmo após décadas de ausência e silêncio de Totonhim. Tudo é aparentemente simples como a linguagem, com frases curtas, inserção de elementos da oralidade e do palavreado popular para fabular sobre o modo de ser das pessoas do Junco, principalmente do velho Totonho. A prosa se desenvolve na primeira pessoa e o tempo transcorre de modo linear; no entanto, a progressão é entrecortada por rememorações do narrador em movimentos temporais diversos que incluem imagens, referências literárias e do cancioneiro popular, comentários bem-humorados e espirituosos, ditos populares ou arremates jocosos sobre pessoas e situações.
O olhar do narrador para o personagem do pai, seu Totonho, ambos Antão por nascimento, é de sensibilidade movida não apenas pelo amor filial, mas pela ternura por um ser humano ao mesmo tempo raro e comum. A admiração pelo pai transborda tanto das lembranças quanto de diálogos (imaginados e acontecidos) e do convívio de apenas um dia. Enquanto a família repele o velho por ser alcoólatra, por falar com fantasmas e galinhas e se opor às modernidades que já chegaram ao Junco, Totonhim vê amorosidade intuitiva e espontânea em sua acolhida, em sua relação telúrica com a natureza, a antiga casa e as pessoas do lugar. Mas tudo isso não pertence a ele, que deve regressar à vida de funcionário público na cidade grande, à mulher e aos filhos.
Seu Totonho é o guardião de um mundo antigo e ainda resistente, em processo de perda de uma autenticidade popular. A simplicidade do pai fascina Totonhim, comparada à vida na capital financeira do país, que é apenas aludida em O cachorro e o lobo. Seu Totonho não é um homem simplório; ao contrário, é um personagem que representa uma das imagens presentes no imaginário sobre o sertanejo como aquele que dribla as adversidades com humor. Totonhim, não, talvez por se sentir fracassado. Por isso precisa tanto da memória e da terra natal, da família, da primeira namorada, da época passada que idealiza, mas vê como perdida. Essa melancolia ante a própria vida pode ser associada também ao país e aos resultados dos discursos e práticas sobre o progresso, ambos culminando em fracasso.
Os encontros e o empenho memorialístico preenchem as 24 horas de Totonhim no Junco, confirmando a possibilidade de relações humanas próximas e afetivas, mesmo no mundo de hoje (talvez não para Totonhim na sua vida na capital). A esses movimentos conjugam-se análises e comentários sociais ou filosóficos que não se configuram como meros toques decorativos ou pausas narrativas, mas como revelação de uma ética de resistência ao mundo que se transforma a partir das tensões entre o local e o global, o sertão e a metrópole.
As diferenças entre a vida em centros urbanos e no interior são ainda desafios para a arte, o pensamento social, as políticas públicas, demarcando o imaginário social e a literatura brasileira contemporânea, com os debates sobre regionalismo e a ênfase da produção sobre contextos urbanos. Torres dialoga com a literatura canônica que tematiza o sertão (ALMEIDA, 2021), propondo uma leitura que se desvia de idealizações ou da tragédia da seca, da fome e do coronelismo. Num presente como o da terceira década do século XXI, em que a visão dominante sobre o rural transita da ideologia do atraso para uma imagem positiva do agronegócio, a afirmação de Antônio Torres sobre progresso e desenvolvimento como falácias que impactam nas subjetividades de narradores e personagens no Brasil contemporâneo pelo processo da globalização permanece relevante. O cachorro e o lobo interessa a pesquisadores/as dos regionalismos e das relações entre literatura e memória.
Para saber mais
ALMEIDA, Adriana Soares de (2021). A morte de si pelo sertão da memória: uma análise do universo literário de Antônio Torres. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
GONÇALVES, Rogério Gustavo (2014). O cachorro e o lobo, de Antônio Torres: e edificação de um sertão ameno. Revista Verbo de Minas, v. 15, n. 26, p. 74-90. Disponível em: https://seer.uniacademia.edu.br/index.php/verboDeMinas/article/view/466. Acesso em: 26 jul. 2023.
GONÇALVES, Rogério Gustavo (2014). O percurso da memória nos romances de Antônio Torres: a constituição do eu na fronteira entre o sertão e a cidade. Tese (Doutorado Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo.
SANTOS, Clélia Gomes dos (2020). As recorrências e metamorfoses da fuga: os desdobramentos da migração nordestina em narrativas de Antônio Torres. Dissertação (Mestrado em Letras) – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Candeias.
SILVEIRA, Manoela Falcon (2014). A reconfiguração da nordestinidade: imagens do espaço Nordeste em Árido Movie, 2000 Nordestes e na trilogia do escritor Antônio Torres. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
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