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O ano em que conheci meus pais

MORAES, Toni. O ano em que conheci meus pais. São Paulo: Monomito, 2017.

Samara Lima

Ilustração: Dona Dora

Já faz mais de três décadas que presenciamos o retorno da democracia no Brasil, após o golpe militar de 1964, mas as opressões vivenciadas por todos aqueles que o regime chamava de subversivos ainda permanecem latentes em nosso imaginário coletivo. Durante muito tempo, coube às famílias e às vítimas registrar suas experiências e testemunhos das barbaridades cometidas contra os direitos humanos. Da mesma forma, a literatura e tantas outras produções artísticas e culturais, como uma espécie de vontade ética, desempenharam e ainda vêm desempenhando um papel fundamental de suplência em relação à história nacional, não só contribuindo para o processo de construção de memórias coletivas e individuais e expondo os perigos engendrados pelo silenciamento, como também se estabelecendo como um espaço de elaboração do luto.

Foi justamente pensando nessas questões e na capacidade de a ficção lidar com temas e vivências impronunciáveis que Toni Moraes (Belém, PA, 1986) estreou na cena literária com a obra O ano em que conheci meus pais (2017), publicada pela editora Monomito. Toni Moraes é arquiteto, editor, escritor e pesquisador de literatura. Nasceu no Pará e radicou-se em São Paulo em 2010, a fim de iniciar uma pós-graduação em mercado imobiliário. Já publicou uma coletânea de contos também pela editora Monomito e recentemente lançou seu segundo romance, Morto não me serves de nada (2023), pela editora Folheando. Aí, estamos diante de uma narrativa ambientada entre Argentina e Brasil que busca, dentre tantas outras coisas, refletir sobre o contexto social e político da América do Sul e a ascensão de ideias reacionárias nos dois países, apontando mais uma vez para o investimento no cruzamento entre literatura e política, realidade e ficção, na composição de suas obras.

O livro O ano em que conheci meus pais desenvolve sua ação central em 1989, época de efervescência política no Brasil (a primeira eleição presidencial direta desde a década de 60) e no mundo (a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria), e aborda a temática da ditadura militar, concentrando-se no impacto desse período histórico na memória do protagonista, Jonas Damasceno. A obra é narrada em terceira pessoa por um narrador onisciente, que assume a perspectiva do protagonista do romance, muitas vezes dando a impressão de que estamos acompanhando a narrativa a partir do seu ponto de vista. Por meio desse narrador, somos apresentados à trajetória do jovem jornalista nascido em Belém e criado pelos avós, Odílio e Verônica, na capital paulista. Ele quer contar boas histórias, registrar os fatos, ainda que não saiba quais.

No início do relato, ficamos sabendo que Jonas somente conheceu seus pais por meio de fotografias, pois eles morreram em um acidente automobilístico quando ele tinha apenas três anos. O grande dilema da sua vida, que também é o mote principal do romance, é ter crescido carregando “um vazio em sua biografia” que nem mesmo os esforços dos familiares foram capazes de preencher: “A falta de passado e desinteresse pelo futuro prendiam-no ao presente”. É quando ele decide assistir a uma palestra do militante político Ciro Pessanha, na PUC-Rio, que sua trajetória se transforma, uma vez que diversas dúvidas sobre seu passado vêm à tona: questionado sobre seu nome – que é o mesmo de seu pai – fica sabendo que seus pais foram militantes na época da ditadura militar.

É interessante notar que o título do romance, assim como o desenvolvimento do enredo, se assemelha ao filme O ano em que meus pais saíram de férias (2006), dirigido por Cao Hamburger. O filme é um drama brasileiro que, a partir da perspectiva de um garoto de 12 anos chamado Mauro e apaixonado por futebol, narra sua preocupação com a demora da volta dos seus pais que saíram de “férias”. O drama que envolve o filme é que, na verdade, os pais do garoto não foram passear, mas, sim, obrigados a fugir por serem de esquerda, tendo que deixar a criança com o avô paterno. A vida do garoto, então, sofre uma mudança drástica e o que o consola é acompanhar o desenvolvimento da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo. O diálogo entre as duas produções nos mostra não só o trabalho com a temática nas diferentes práticas artísticas, mas também a preocupação atual em resgatar um evento traumático a fim de reimaginar a ruína e narrar um passado que ainda foge de nossa apreensão.

A obra transcorre em diferentes cenários, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belém e Marabá, espaços detalhadamente descritos a fim de criar uma espécie de cartografia dos lugares pelos quais os personagens circulam. Ao lado do amigo Domenico, um artista plástico que enfrenta seus próprios problemas e precisa lidar com a sua condição de soropositivo em uma época na qual o tratamento era inacessível e a morte inevitável, Jonas percorre as cidades em busca dos supostos conhecidos de seus pais a fim de conseguir informações para entender os acontecimentos que culminaram na morte deles, encontrando, muitas vezes, apenas “perguntas e incertezas”.

Enquanto o protagonista tenta resgatar as peças que faltam para compor o seu passado, Domenico, que encarna a figura daquele que enfrenta o mundo ao seu modo e contradiz as imposições sociais, busca viver intensamente o presente, pois não vê perspectiva de futuro. Na busca por sua identidade, é desvelada uma rede de questões políticas (publicações jornalísticas falsas, opressão às pessoas que lutavam contra o regime vigente na época e, principalmente, as tentativas do Estado de velar a Guerrilha do Araguaia) e familiares.

A obra conta com pequenos flashbacks que aparecem no início de cada capítulo do livro na forma de cartas. Sem remetente e destinatário claros, essas cartas expõem as lutas com os companheiros contra o regime ditatorial na década de 70 e pela sobrevivência. Entregam ao leitor mais da narrativa principal à medida que o que vai sendo contado aí mescla-se com a vida do protagonista. Se, por um lado, as imbricações entre personagens, tempos narrativos e resoluções dos imbróglios da trama parecem indicar a habilidade do autor em construir uma trama com diversas camadas sem perder o núcleo da narrativa, por outro, a obra é marcada desde o início pela obstinação em costurar todos os elementos a ponto de não deixar margem para que o leitor por si só desvende os mistérios.

Em O ano em que conheci meus pais, somos conduzidos ao embate entre a verdade e a mentira, o presente e o passado, os eventos coletivos do país e a vida íntima dos personagens. Neste sentido, a obra assume grande relevância ao tentar retratar, por meio da ficção, o período de regime de exceção, isto é, “o corte […] profundo demais no estado democrático brasileiro”, e os vestígios do autoritarismo que persistem no Brasil, em especial no Pará, onde as consequências da ditadura ainda são apagadas e silenciadas, expondo um dos episódios mais violentos da história do estado, a Guerrilha do Araguaia. Toni Moraes tem como referência literária o autor Milton Hatoum e dele parece ter herdado, além das descrições estéticas dos espaços retratados e o jogo com as fronteiras entre ficção e realidade, a vontade de visibilizar o Norte e, sobretudo, lançar um olhar crítico para a nossa própria história.

Para saber mais

MORAES, Toni. Entrevista com Toni Moraes da Monomito Editorial // Criador de Mundos. [Entrevista concedida a Juliano Alves]. São Paulo, 25 out 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mAfuWTFy3UA&t=497s. Acesso em: 22 jul. 2023.

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Como citar:

LIMA, Samara.
O ano em que conheci meus pais.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

03 out. 2024.

Disponível em:

2671.

Acessado em:

19 maio. 2025.