CRUZ, Eliana Alves. Nada digo de ti, que em ti não veja. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
Luan Sabino Siqueira
Ilustração: Cláudio Rodrigues
Assim como em seu romance anterior, O crime do cais do Valongo (2018), em Nada digo de ti, que em ti não veja (2020), Eliana Alves Cruz (Rio de Janeiro, RJ, 1966) mobiliza aspectos comuns aos romances de tipo policial com o intuito de armar uma intrincada teia narrativa recheada de elementos como amor, suspense, ação e drama. Localizando seus personagens historicamente no período colonial, mais precisamente no século XVIII, a autora empreende um retorno ao passado para discutir temas caros ao nosso presente.
Neste que é o seu terceiro romance histórico, Eliana Alves Cruz narra a trajetória de Vitória, uma travesti negra, ex-escravizada, que se vale da astúcia e de seus dons de vidência para sobreviver a um mundo e a um tempo que a todo o momento nega a existência de pessoas como ela. Ao se envolver amorosamente com Felipe Gama, homem branco pertencente a uma família de posses, Vitória, que, como nos informa o narrador, “sentia-se fêmea e não admitia que lhe dissessem o contrário”, é confrontada com as dores e as delícias de um relacionamento que, a priori, só pode ser experimentado nas sombras, fugindo aos preconceitos de ordem social, racial e moral. Felipe, por sua vez, é prometido em casamento desde a infância a Sianinha, personagem que, assim como ele, faz parte de uma família de cristãos-novos que, por medo da Inquisição, escondem a ascendência judaica.
A trama começa a se complicar com a chegada ao Brasil do inquisidor Frei Alexandre Saldanha Sardinha. Vindo de Portugal como representante do Tribunal do Santo Ofício, e interessado em enriquecer com a exploração do ouro em Minas Gerais, traz consigo a responsabilidade de julgar as possíveis infrações e pecados dos habitantes da colônia, causando temor em toda a população. É a partir desse momento que a figura de um misterioso delator surge, passando a ameaçar, pelo envio de cartas anônimas, não apenas a relação secreta do casal de protagonistas, Felipe e Vitória, como também a verdadeira origem dos Muniz e dos Gama.
Em torno dessa história de amor, ao mesmo tempo impossível e envolvente, forma-se um quadro social característico dos tempos coloniais, mas que, ainda hoje, persiste em apresentar seus resquícios na sociedade contemporânea. Dessa forma, tanto no presente quanto no passado, encontramos a violência contra as minorias, seja ela formada por negros, mulheres ou pessoas LGBTQIAP+; a perseguição religiosa, encarnada pela Inquisição; a cobiça e a ambição, que geram a exploração do homem pelo homem. Acerca deste último tema, o romance apresenta, de maneira bem detalhada, o modo como eram explorados os negros escravizados que trabalhavam nas minas de ouro. É pela voz de um deles que tomamos ciência dos horrores e das violências perpetradas por um sistema feito para moer gente, liquidando-as física e espiritualmente: “O barulho alto dos ferros, martelos e picaretas nas paredes não para por horas e horas e horas… É muito perigoso porque deixa capatazes e escravos surdos, e os que escavam, com o tempo, ficam cegos também por causa do pó e dos estilhaços que saem das pedras.”
O entrecho toma conta do miolo da história – que se passa entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais – quando parte das personagens seguem em comitiva rumo à região que, à época, era a responsável pela maior parte dos lucros da Colônia, o que atraía o interesse não apenas dos governantes da Metrópole como também de aventureiros locais e estrangeiros. É nesse momento que personagens como Zé Savalu e Balthazar Gama ganham destaque, e a autora imprime ao livro um tom de aventura que remete à tradição literária dos romances de capa e espada.
Savalu é um escravizado oriundo do Reino do Daomé e que, desde que chegou ao Brasil, sempre serviu aos Muniz. Apaixonado por Quitéria, outra escravizada, sofre com o assédio de Sianinha, que nutre pelos seus escravos de companhia uma estranha obsessão. Em função dessa perseguição, é enviado por Branca Muniz, mãe de Sianinha, para as Minas junto aos membros da comitiva, o que ele vislumbra como a grande oportunidade de conquistar tanto a sua quanto a liberdade dos seus, sobretudo a do seu futuro filho, representando a luta dos negros pelo fim da escravidão. É junto a Felipe que Zé Savalu descobre um mapa que contém um tesouro, que o ajudará futuramente na compra da sua liberdade. Balthazar Gama, por sua vez, é um homem rude e dominador, acostumado a violentar todos os que são mais fracos do que ele. Irmão mais velho de Felipe, é ele quem administra com mãos de ferro os negócios da família no território mineiro. Tomado como a expressão da crueldade, trata-se de um escravocrata que possui relações escusas com o contrabando de pedras preciosas.
Em Nada digo de ti, que em ti não veja todos os personagens apresentam motivos para guardar segredos, seja por suas práticas sociais consideradas pelo código legislativo da época como ilegais, seja pela impossibilidade de assumir os seus próprios desejos ou a sua verdadeira identidade. Ameaçados pelas leis contidas nas Ordenações Filipinas, espécie de código penal, a narrativa parece sustentar a tese de que, em um mundo onde a liberdade não é um princípio, todos acabam precisando de subterfúgios e mascaramentos para sobreviver, sobretudo aqueles que apontam o dedo para acusar: “Branca jamais questionou os costumes familiares, pois faziam parte naturalmente de sua vida, não vendo conflito neles. No entanto, aos poucos foi se dando conta da urgência em manter absoluto silêncio sobre a intimidade do lar.”
No que diz respeito à construção da narrativa, o romance se divide em cinco partes, que vão apresentando os fatos de maneira progressiva. Para tanto, a autora lança mão de uma série de estratégias a fim de que o leitor tome conhecimento das intrigas que enredam a trama, como a incorporação de outros gêneros textuais no corpo do texto a exemplo de cartas anônimas e trechos de diários, elementos que ajudam a desvendar os mistérios lançados ao longo da história. Nesse sentido, peça importante da maior parte das intrigas que movimentam o enredo é Diogo. Tio de Sianinha, foi transformado em vigário para escamotear a origem judia da família Muniz. Contudo, sua paixão reprimida por Felipe faz com que ele acabe traindo as duas famílias ao ameaçar revelar não apenas o relacionamento do noivo de sua sobrinha com Vitória como também o segredo dos Muniz e dos Gama.
Além disso, outro ponto que chama a atenção do leitor é a figura do narrador. Construído como uma voz onisciente, ele possui o conhecimento da totalidade dos fatos a serem narrados, traduzindo os sentimentos e as reações das personagens e fazendo comentários espirituosos, cheios de ironia e mordacidade: “sou um confesso bisbilhoteiro, um fofoqueiro dos mais terríveis. Acabo revelando tudo o que vejo sem dó ou enfeites […] Está aí: o futuro é a residência do sonho, da expectativa, das realizações e do ridículo. Que estranha família!”. Ao final, a voz que narra revela ser a de Kitembo, um nkisi que nas religiões de matriz afro-brasileira representa o tempo, sendo, portanto, o responsável por trazer ao público do presente os eventos do passado, ao mesmo tempo que projeta a possibilidade de um futuro que possa romper com as violências de outrora.
Atualmente, Eliana Alves Cruz tem se firmado como um dos nomes mais relevantes da literatura brasileira contemporânea de autoria negra. Ao construir uma obra em que o diálogo com eventos históricos ganha centralidade em seus enredos, sobretudo aqueles que se relacionam com a formação da população negra no Brasil, a autora reafirma a pesquisa de arquivo e dá novo sentido para a vida daqueles sujeitos que foram vistos como infames, para retomarmos Foucault, sendo esse um valoroso exercício de capacidade fabulatória.
Para saber mais
ARRIAGADA, Raul Ignacio Valdivia (2021). Nada digo de ti, que em ti não veja, de Eliana Alvez Cruz: uma análise literária e comparativa do romance histórico sob o olhar feminino. Revista Decifrar, v. 9, n. 18, p. 50-59.
AUGUSTO, Guilherme (2020). Novo romance de Eliana Alves Cruz expõe o apartheid brasileiro. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2020/06/29/interna_cultura,1160714/novo-romance-de-eliana-alves-cruz-expoe-o-apartheid-brasileiro.shtml. Acesso em: 28 maio 2023.
BARBOSA, Roberta Tiburcio (2022). Diálogos interculturais em Nada digo de ti, que em ti não veja. Travessias Interativas, v. 12, n. 25, p. 272–280. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/Travessias/article/view/16764. Acesso em: 30 maio 2023.
FOUCAULT, Michel (2018). A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. 10. ed. Lisboa: Nova Vega. p. 89-128.
ROSSI, Clóvis (2011). Nem fim do mundo nem mundo novo. Folha de S. Paulo.
Iconografia