SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.
Mykaelle de Sousa Ferreira
Ilustração: Mika
Publicado pela primeira vez em 1981, o livro de ficção Em liberdade, escrito pelo professor e crítico literário Silviano Santiago (Rio de Janeiro, RJ, 1936) foi vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance em 1982. A data de publicação da obra coincide com o início do período de abertura democrática no Brasil, após quase duas décadas ininterruptas de ditadura militar (1964-1985).
O enredo de Em liberdade desdobra-se como um relato biográfico de autoria do escritor alagoano Graciliano Ramos, um diário ficcional inventado por Santiago. Narrado em primeira pessoa, o relato conta a história dos dias que sucedem a saída de Graciliano da prisão política no ano de 1937, que corresponde ao período do Estado Novo (1937-1945). Nesse sentido, como sugere o título da obra, a liberdade concedida a Graciliano Ramos servirá como um ponto de partida para Santiago escrever a respeito do autoritarismo que ameaçou intelectuais brasileiros, muitos dos quais foram perseguidos e silenciados durante os anos de chumbo. No entanto, o livro não se restringe apenas ao contexto de sua publicação, mas aborda o modo como o autoritarismo sempre esteve presente na história da sociedade brasileira.
Santiago parte de uma situação verídica, isto é, a prisão de Graciliano Ramos, para se apropriar do personagem do escritor alagoano, figura emblemática da literatura brasileira. Essa real intenção, no entanto, não é revelada ao leitor, mas encoberta desde a nota do editor no início do livro, o próprio Santiago, cuja versão relata as circunstâncias que o levaram à posse dos manuscritos do diário (que não existiu) de Graciliano Ramos. Tal recurso, evidentemente, se estende por toda a narrativa. Contudo, o leitor poderá perceber, na epígrafe da obra, uma evidência sobre o jogo textual que será desenvolvido por Santiago: “Vou construir o meu Graciliano Ramos”, diz a citação de Otto Maria Carpeaux. Além disso, uma espécie de subtítulo é inserida na primeira página do livro, reiterando se tratar de “uma ficção de Silviano Santiago”, ou seja, a história narrada é fruto da imaginação do ensaísta. Cabe notar, no entanto, que Santiago conduz uma minuciosa pesquisa historiográfica para compor o livro, como evidenciado pela descrição detalhada de diversos espaços narrativos, endereços e datas, entre outros elementos.
O estilo do texto traz um tom ficcional e intimista, no qual o autor-personagem entra nos meandros da memória e das dores pessoais e questiona os limites da ficção e o papel do intelectual na sociedade brasileira. Embora a linguagem do livro seja simples, promovendo uma leitura fluída, é também um texto que traz diversas camadas de interpretação e exige uma tomada de posicionamento crítico.
A narrativa é dividida em duas partes, que correspondem aproximadamente aos três meses vivenciados pelo escritor-personagem na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro e março de 1937, como o demonstram os títulos dos capítulos que são apresentados sob a forma de um diário. A primeira parte transcorre no ano de 1937, no espaço da residência do romancista José Lins do Rego, responsável por hospedar Graciliano no Largo dos Leões, Rio de Janeiro. Já a segunda parte se passa no mesmo ano, porém em um cenário diferente: a pensão de dona Elvira, localizada no bairro do Catete.
A princípio, ainda abalado por circunstâncias recentes, o narrador-personagem relembra as angústias vivenciadas no cárcere, enquanto reflete sobre as dificuldades de levar adiante o próprio trabalho como escritor. Após a prisão, Graciliano se vê como um homem de saúde frágil diante de uma situação financeira precária. É nesse sentido que o autor se descreve como alguém que perde a sua identidade. Escrever, portanto, é a forma que ele encontra para resistir – e sobreviver.
O que ambas as partes da narrativa têm em comum são as descrições de cenas do cotidiano de Graciliano alternadas com uma reflexão crítica afiada, fruto de sua atuação política indissociável de sua obra literária. Sua prisão expõe o desagrado que o escritor alagoano causa nos donos do poder, “a posição incômoda que ocupam os intelectuais quando manifestam publicamente o desejo de uma sociedade menos injusta”.
Ao longo da narrativa, Graciliano busca recompor a própria vida ao defender a alegria do corpo diante da tristeza. Ressalta-se, por exemplo, o modo como a viagem à cidade de São Paulo, a pedido do amigo José Lins do Rego, contribui para suscitar a criatividade do escritor-personagem, que retorna decidido a dar início a um projeto literário mais abrangente: escrever sobre o poeta inconfidente do século XVIII Cláudio Manuel da Costa. Não seria apenas uma biografia, mas ele o tomaria como um personagem, realizando o mesmo movimento de Santiago em relação a Graciliano.
Quarenta anos após sua primeira publicação, é possível reafirmar a importância dessa obra literária para diversas gerações de leitores. Sem dúvida, esse é um livro fundamental para se pensar a respeito da história política e cultural do Brasil e sobre a importância da manutenção da democracia.
Para saber mais
HELENA, Lucia (2011). Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 23, p. 179-190. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8996. Acesso em: 04 jul. 2023.
SANTIAGO, Silviano (2020). Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis. Recife: Companhia Editora de Pernambuco.
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