ARNAUD, Marília. Liturgia do fim. São Paulo: Tordesilhas, 2016.
Vizette Priscila Seidel
Ilustração: Liana Timm
Marília Arnaud (Campina Grande, PB, 1960), autora de Liturgia do fim (2016), é graduada em Direito, reside em João Pessoa e trabalha no Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba. Começou sua vida literária na década de 1980, escrevendo crônicas para jornais paraibanos que foram publicadas no livro Sentimento marginal (1987), uma produção independente. Seu primeiro livro de contos, A menina de Cipango (1994), venceu o Concurso Literário da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba – Prêmio José Vieira de Melo. Em 1996, publicou a coletânea de contos Os campos noturnos do coração, vencedora do concurso promovido pela Universidade Federal da Paraíba – Prêmio Novos Autores Paraibanos. Marília já participou de várias coletâneas nacionais e estreou no romance em 2012 com Suíte de silêncios. Em 2013, publicou seu primeiro livro para o público infantojuvenil, Salomão, o elefante. Em 2020, lançou o romance O pássaro secreto, publicado em formato digital pela KPD, plataforma de autopublicação da Amazon, e vencedor do Prêmio Kindle de Literatura.
Dentre suas obras, em 2016, Marília Arnaud publicou seu terceiro romance, Liturgia do fim, pela editora Tordesilhas. Esse romance é apresentado a partir das lembranças do narrador-protagonista Inácio Boaventura e é produzido a partir de uma narrativa ficcional que explora um espaço patriarcal – a fazenda Perdição. A descrição da fazenda e da região é detalhada na obra, em que a regionalidade permite a recriação desse espaço como um meio simbólico para reconfigurar as experiências vividas pelos personagens. O narrador relembra sua vida e a de sua família, revelando a complexidade do ser humano, a dificuldade de enfrentar seus problemas e a busca do seu verdadeiro eu. A partir de sua tragédia familiar, o narrador reconstrói conflitos e suas decorrentes consequências. É uma obra intimista, de ritmo lento, em que o presente e o passado se misturam constantemente nas memórias do narrador-protagonista.
Sobre a questão do regionalismo, é importante fazer um adendo: a obra se passa quase toda no interior do Brasil e o espaço é crucial para o desenvolvimento do enredo. Dessa maneira, Chiappini (1995), pesquisadora contemporânea que estuda o regionalismo, desconstrói o conceito de regionalismo enquanto tendência temática de regiões rurais, abordando-o como um modo de formas híbridas. Os escritores contemporâneos utilizam a escrita urbana direcionada para esse público e, ao mesmo tempo, por meio da ficção, apresentam o homem rural em seus aspectos interiores, transcendendo os limites locais e atingindo um nível simbólico e, consequentemente, universal. Para a pesquisadora, “o universal se realiza no particular”, e é esse particular que interessa na obra, porque todos os acontecimentos decorrem do espaço em que vivem, e a própria repetição dos erros das personagens está ligada ao espaço interiorano brasileiro.
Na obra, a potência do espaço acontece como reflexo de um determinado contexto social e histórico. A região, ficcionalizada, torna-se um parâmetro de como as relações inter e intrapessoais se relacionam com aquele local, revelando que o espaço, para além de uma mera ambientação, é matéria para compreender os motivos dos conflitos que constituem o enredo (ARAÚJO, 2020).
O romance é dividido em dez capítulos, os quais não são nomeados. A história se inicia com a partida de Inácio Boaventura de sua casa, a fazenda Perdição, onde o protagonista passou sua infância e adolescência. Sua saída de casa não é voluntária; ela ocorre devido a uma briga com seu pai, Joaquim Boaventura. No entanto, o leitor só descobrirá o motivo da briga no decorrer da rememoração. O narrador apresenta a relação com sua mãe, Adalgisa, uma mulher que vive, sem contestar, nos moldes patriarcais, suportando todas as violências desse sistema na convivência diária com seu marido e a sociedade: “Indignava-me de que naquela reverência a papai e devoção à família vivesse esquecida de si mesma (…)”. Após a ida de Inácio para a cidade, onde morou por trinta anos, ele se casa com Ieda, e o casal tem uma filha, Isabela. Adalgisa o visitava com frequência. Foi professora e, enquanto Inácio estudava, enviava todo o seu ordenado a ele. Quando Inácio a questionou sobre como seu pai permitia isso, Adalgisa nunca falou sobre o assunto.
Durante a faculdade, Inácio conheceu Ieda, com quem teve um relacionamento e se casou. Eles tiveram uma filha, Isabela. Apesar de todas as críticas que Inácio tinha em relação ao pai, repetiu muitas de suas ações durante o casamento. Inácio, professor de literatura e escritor, traiu a esposa e a abandonou junto à sua filha, mesmo antes de sair de casa. Ieda, uma mulher independente e também professora, sofreu e implorou pela presença do marido. O próprio Inácio admite suas falhas: “Naquele momento, o último que passávamos juntos, confessei-me a imensidão da minha falta com aquela mulher, uma falta que eu não conseguiria reparar mesmo se vivesse cem anos, mesmo se tivesse a oportunidade de mais uma existência”.
Esta parte da narrativa demonstra que as violências do patriarcado não estão apenas nas regiões interioranas do Brasil, mas sim em todas as regiões, como é apresentado no relacionamento de Ieda e Inácio em uma grande cidade. Após abandonar sua esposa e filha, Inácio retorna à fazenda Perdição, que é, segundo as palavras da escritora Maria Valéria Rezende, na orelha do livro, “(…) significativamente chamada de Perdição (…)”. Lá, reencontra seu pai, único membro vivo de sua família. Nesse reencontro, o que mais incomoda o protagonista é a indiferença do pai sobre os acontecimentos do passado, ao agir como se nada tivesse acontecido.
A partir da rememoração, o protagonista traz detalhes de diversos problemas familiares, como a loucura de sua tia Florinda – irmã de seu pai – e sua irmã Ifigênia. Ifigênia é apresentada como uma garota forte e insubmissa, que não se adequa a esse mundo patriarcal e cristão, o que acarreta vários conflitos no enredo e castigos do pai. Ela não aceitou ser alfabetizada em escolas, ninguém tinha paciência com ela, exceto sua mãe, que conseguiu ensiná-la a ler e escrever. Ifigênia questionava o que e quem era Deus, o que incomodava muito sua mãe e, principalmente, seu pai. Por exemplo, quando ela foi obrigada por seu pai a fazer a primeira comunhão, com “(…) a testa ungida em cruz, cuspiu o corpo de Cristo umedecido de vinho e saliva na palma da própria mão e, sem hesitar, diante da surpresa de todos, estendeu-a para o sacerdote, recusando com a cabeça (…)”. Após o ocorrido, seu pai a arrastou para fora da igreja, “(…) espumando pelos cantos da boca e rosnando sem parar satanás, satanás, cão preto dos infernos, como te atreves a renegar Jesus?”. Toda a família, incluindo a mãe e os irmãos, estava aflita, mas Ifigênia era a única que parecia tranquila com o que acabara de acontecer.
No meio dos fluxos de memória de Inácio, ele conta sobre seu relacionamento amoroso com sua irmã, a qual ele diz ser seu único e verdadeiro amor. Quando o pai, Joaquim, descobre a gravidez de Ifigênia e a espanca, querendo saber com quem ela se relacionou, Inácio dá um soco no pai e diz ser ele próprio o namorado de Ifigênia. Nesse momento, os irmãos são expulsos de casa. Ifigênia vai para a casa de uma tia, enquanto Inácio vai para a cidade estudar. O protagonista rememora: “(…) das lembranças daquele dia, da imagem de mamãe abraçada a Ifigênia, limpando-lhe o sangue da face, consolando-a, consolando-se, perdoa teu pai, filha, as pessoas fazem coisas horríveis quando sentem medo (…)”.
Uma parte importante da obra é a construção das personagens. Todas do núcleo principal têm muita profundidade, questões e problematizações. Inácio, por exemplo, é bastante plausível, já que, por mais que critique seu pai, ele se torna um reflexo do contexto patriarcal em que viveu e repete muitas ações que antes o deixavam indignado. Adalgisa, Ifigênia, tia Florinda e Ieda são apresentadas em suas vivências, os conflitos e consequências sofridas, por terem que aguentar as desgraças, o suicídio, a loucura e o abandono. Os conflitos são muito próximos da realidade e, em alguns momentos, as falhas do protagonista se sobressaem, causando indignação, principalmente quando contrastadas com o questionamento e enfrentamento de Ifigênia e das outras mulheres ao redor de Inácio.
Pode-se dizer que é uma obra atual, que recria as vivências que se originam em lugares como o interior do Brasil, mas que, ao mesmo tempo, excedem os limites espaciais. Como foi apresentado, o sistema patriarcal está presente em toda a sociedade, mesmo que a fazenda Perdição seja um espaço metafórico e um reflexo desse contexto (ARAÚJO, 2020).
Para saber mais
ARAÚJO, Rayana Alves (2020). Consequências do patriarcado em crise, em Liturgia do Fim, de Marília Arnaud. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande. Disponível em: http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/22937. Acesso em: 15 dez. 2023.
CHIAPPINNI, Lígia (2013). Regionalismos e regionalidades num mundo supostamente global. In: MACIEL, Diógenes André Vieira (Org.). Memórias da Borborema: reflexões em torno de regional. Campina Grande: Abralic, 2013. p. 27-40. Disponível em: https://abralic.org.br/downloads/livros-produzidos-pela-gestao/02-MEMORIAS-DA-BORBOREMA.pdf. Acesso em: 15 dez. 2023.
COSTA, Patrícia Valéria Vieira da (2020). Na contramão da generalização: a literatura regionalista, um sistema vivo. Sociopoética, n. 1, p. 51-60. Disponível em: https://revista.uepb.edu.br/SOCIOPOETICA/article/view/1658. Acesso em: 15 dez. 2023.
Iconografia