LEAL, Beatriz. Mulheres que mordem. Rio de Janeiro: Ímã Editorial, 2015.
Mariana Di Salvio Almeida
Ilustração: Manuela Dib
Finalista do 58º Prêmio Jabuti, Mulheres que mordem é o romance de estreia de Beatriz Leal (São Paulo, SP, 1985). Voz jovem e promissora da literatura brasileira, Leal mudou-se de São Paulo para Brasília em 2004, onde se formou em Jornalismo. Em 2020, publicou seu segundo romance, Os elefantes barrem. Trata-se de uma carreira ainda recente, mas que vem recebendo boa acolhida por parte da crítica especializada, embora ainda não haja um trabalho acadêmico de fôlego acerca de sua literatura.
Mulheres que mordem dialoga com uma corrente literária recente cujas obras lançam distintas perspectivas sobre as ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX justamente por imaginar um arquivo deliberadamente apagado pelos regimes militares com o intuito de se eximirem das sistemáticas violações aos direitos humanos. Por meio de uma narrativa curta, Beatriz Leal, em homenagem às Abuelas de la Plaza de Mayo, ficcionaliza a busca das abuelas por seus netos desaparecidos durante a ditadura militar argentina (1976-1983). A nota final do romance afirma esse papel no sentido de lançar mão a recursos propriamente literários para interpretar as lacunas das experiências vividas sob governos autoritários: “A ditadura na Argentina, os desaparecidos e as cerca de 500 crianças sequestradas e adotadas por famílias de militares e policiais da década de 1970 são reais. As Avós da Praça de Maio também são. O resto é ficção”.
O romance propõe-se a lidar pela ficção com o passado atroz que, embora sistematicamente apagado pelos militares, ainda reverbera no presente. Valendo-se de diferentes vozes, tempos, instâncias narrativas e gêneros, suas personagens principais – Elena, Clara, Rosa e Laura – formam uma teia cujos fios foram rompidos pelos efeitos mais cruéis da ditadura argentina. Com saltos temporais e geográficos nos 32 capítulos dispostos como peças de um jogo a ser armado pelo leitor, a obra evidencia essas personagens, seus papéis sociais, os temas próprios do universo feminino e, sobretudo, o legado de resistência das mulheres ao regime.
Elena, por meio do narrador onisciente, abre a narrativa em 1977. Há quatro pequenos capítulos dedicados a ela, intercalados pelos capítulos dedicados a Laura e pelas cartas de Rosa. Elena é mãe adotiva de Laura, casada com o torturador Ramiro García de los Rios e morre de câncer de útero quando a filha tinha oito anos de idade. Com Elena, surge o tema da maternidade e mostra-se uma mulher que prefere não pensar na profissão do marido e nas origens da filha. Ela desconhece sua própria história e não pode contá-la, sendo apresentada, assim, pelo narrador onisciente.
Por outro lado, Rosa surge em primeira pessoa nas cartas que escrevia de Buenos Aires (de 1981 a 1985) para Roberto, ex-namorado de sua filha Clara, torturada e assassinada após dar à luz um casal de gêmeos em um centro de detenção argentino. Pelas cartas de Rosa, que atravessam todo o romance, o leitor encontra um relato desesperado do processo de reconhecimento dos restos mortais de Clara; a decisão de se mudar para o abastado bairro da capital portenha, a Recoleta – onde moravam muitos militares –, com a esperança de encontrar seus netos desaparecidos; os poucos encontros com Laura como professora de piano, de quem desconfia ser avó; a descoberta de Ramiro sobre sua participação nas abuelas; e o pedido de socorro com o qual é finalizada a última carta, pois se dá conta de que Laura nunca mais voltará. A esperança de encontrar seus netos desaparecidos é o que a mantém viva.
Por sua vez, a Laura, a neta desaparecida, é negado um passado, o que gera uma profunda sensação de desencaixe: mudou-se para Brasília com o pai adotivo, Ramiro, com dez anos de idade, e nunca mais voltou a Buenos Aires e tampouco fala espanhol. A personagem, assim como Elena, é apresentada por um narrador onisciente: por imposição de Ramiro, não consegue contar a própria história.
Nos capítulos dedicados a ela, a jovem somatiza esse passado do qual não tem conhecimento. Emocionalmente, desenvolve bulimia e “cria problemas porque é viciada em executar soluções” para esquecer o passado. No entanto, ainda assim, a jovem busca, quando já não mais mora com o pai, com quem tem uma relação distante, resgatar a memória de sua infância em Buenos Aires. Pela língua espanhola, gatilho para o resgate da memória, Laura é transportada para a infância, desestabilizando-a a ponto de desistir de uma busca tão essencial quanto dolorosa sobre a sua própria identidade. Mas não só, o romance polifônico também traz vozes de dois personagens masculinos – as consultas psicológicas do torturador Ramiro García de los Ríos e as duas cartas de Roberto, pelos quais, além das cartas de Rosa, Clara toma corpo na narrativa.
As seis consultas ocorridas em 1992, em Brasília, dão voz ao torturador. Ramiro surge como um sujeito ambíguo, que clama seus atos brutais como parte do ofício de um profissional competente. Também nelas há a descrição de cenas de torturas, estupros e do processo desumanização das vítimas diretas da ditadura. Há a narração da morte de Clara, que se recusou a falar durante a sessão de tortura.
Elena, Clara, Rosa e Laura são mulheres que mordem e, por isso, sobrevivem e resistem como conseguem. São plantas carnívoras – como as que estão na capa do romance – e dependem, simbolicamente, de mordidas para seguir vivendo. Elena evitava pensar nas origens da própria filha; Clara resistia a falar durante a sessão de tortura mordendo a própria boca; Rosa, em sua busca desesperada, mordia e roía as unhas tamanha era a sua angústia; e Laura, que somatizou todo esse passado atroz do qual não tem conhecimento, costumava morder as escovas de dente.
Fernando Perlatto (2017) comenta que a linguagem literária possui “recursos formais diferenciados” e, por isso, pode ser “particularmente frutífera (…) para a elaboração de representações mais complexas e multifacetadas de experiências vividas sob governos autoritários”. Mulheres que mordem parece ser exemplar nesse sentido. O romance, mediante frases curtas e diretas, explora os saltos temporais e geográficos (Buenos Aires, Brasília e Búzios), a polifonia, entre outros recursos, para abordar como a ditadura dilacerou a vida de mulheres provenientes da classe média argentina e como elas representaram uma faceta importante de resistência ao regime. Desse modo, embora estejam excluídas dessa representatividade as camadas sociais menos abastadas, o romance de Leal busca despertar a memória de resistência feminina durante a ditadura militar argentina, dando corporeidade aos sujeitos que, com o tempo, tendem a se tornar apenas números, e escancarando, via ficção, a violência levada a cabo pelos governos autoritários da América Latina.
Para saber mais
CENTENARO, Natasha (2018). Morder para viver e escrever para lembrar: Mulheres que mordem, de Beatriz Leal, e a rememoração do tempo que não pode ser esquecido na América Latina. Travessias, Cascavel, v. 12, n. 1, p. 160-176. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/19369. Acesso: 10 jul. 2023.
GOMES, Gínia Maria (2020). Exílio em Mulheres que mordem, de Beatriz Leal. In: GOMES, Gínia Maria (org.). Narrativas brasileira contemporâneas: memórias da repressão. Porto Alegre: Editora Polifonia, p. 133-157.
PERLATTO, Fernando (2017). História, literatura e ditadura brasileira: historiografia e ficções no contexto do cinquentenário do golpe de 1964. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 62, p. 721-740.
PINHEIRO, Alexandra dos Santos (2021). Mulheres que mordem, de Beatriz Leal: novos textos, velhos temas. Scripta Uniandrade, Curitiba, v. 19, n. 1, p. 281-299. Disponível em: https://revista.uniandrade.br/index.php/ScriptaUniandrade/article/view/2053. Acesso: 10 jul. 2023.
SAFATLE, Vladimir (2012). Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 237-252.
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