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Mulheres empilhadas

MELO, Patrícia. Mulheres empilhadas. São Paulo: LeYa, 2019.

Melissa Suárez

Ilustração: Manuela Dib

A estrutura de Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo (Assis, SP, 1962), é instigante e atrai a atenção do leitor desde a primeira página. A história da advogada e narradora-protagonista é contada em capítulos que vão de A a X, intercalados por minicapítulos numerados de 1 a 12. Esses minicapítulos são como epígrafes, que trazem narrativas sobre mulheres mortas por homens conhecidos delas e os motivos torpes do crime, como, por exemplo, a discussão acerca do volume da TV.

O escritório de advocacia onde a narradora trabalha passa a selecionar novos profissionais para cobrir os diversos mutirões de julgamentos de feminicídios em todo o país. Diante dessa oportunidade de trabalho, e após uma briga com o namorado, Amir, a advogada questiona-se: “Qual a opção de trabalho mais longe de São Paulo?”. Movida pelo desejo de se distanciar do trauma emocional do tapa desferido por Amir, ela toma a decisão de partir para o Acre.

Durante essa viagem, a protagonista mergulha nos registros de 180 processos de mulheres assassinadas na região. Ela se depara com relatos que vão desde os xingamentos proferidos pelos companheiros – o que poderia ser banal – até as formas cruéis de suas mortes. Esse mergulho na realidade brutal dos feminicídios a reconecta com a saudade de sua mãe, que também foi vítima de assassinato nos mesmos moldes. Abalada, ela desfaz as malas na cidade de Cruzeiro do Sul, preparando-se para enfrentar um novo desafio profissional e emocional. Porém, logo recebe um e-mail de Amir, acusando-a de infantil por tê-lo bloqueado no celular. A mensagem traz à tona a complexidade de seus sentimentos e a difícil jornada que está por vir.

No capítulo intitulado “Alpha”, a protagonista adentra subitamente a floresta. Por meio das visões da ayahuasca, ela dialoga com uma mulher “de tanto cabelo quanto poder”, com o seio esquerdo extirpado para melhor posicionar arco e flecha. Essa amazona revela que outras mulheres estão vindo: “icamiabas, mães, cafuzas, irmãs, negras, marias, lésbicas tremelicando de ódio, vingadoras”, todas em busca do homem mau, do homem estuprador, do homem assassino. Os capítulos nomeados com letras gregas compõem a terceira organização estrutural da narrativa, intercalando-se com os demais capítulos já mencionados. De alfa a eta, acompanhamos as incursões da narradora pela floresta amazônica durante suas frequentes visitas à aldeia dos Ch’askas. Inserida no ritual do cipó, a protagonista tem encontros oníricos com essas mulheres vingadoras, a Liga das Mulheres das Pedras Verdes.

Outros elementos que enriquecem essa trama são as citações de outros casos de feminicídio que a advogada protagonista pesquisa e cujos recortes de fotos e fatos compõem seu caderno de mulheres empilhadas. Inicialmente, os capítulos-epígrafes parecem ser parte desse álbum. É por meio dessa estruturação que Mulheres empilhadas se desenvolve em três tramas entrelaçadas, operando em dois planos: o da realidade concreta e o do inconsciente.

No plano da realidade concreta, a primeira trama é a investigação da morte de Txupira e de outras mulheres que a protagonista chega a conhecer e com quem convivera na cidade acreana. Txupira era uma adolescente de 14 anos, indígena da aldeia Kuratawa. Seu assassinato foi antecedido de estupro e tortura. As muitas evidências levam direto à acusação de três jovens playboys, “netos e tataranetos dos inventores do Acre”, o que tem influência em uma testemunha hesitante e na corrupção do júri. No decorrer do julgamento, outras mortes acontecem, sempre de mulheres que ousaram trazer provas, denunciar e encarar “os filhos dos poderosos”. Enquanto se envolve profundamente nessas investigações, até de forma muito pessoal, a narradora ainda precisa lidar com Amir e sua postura consistente de não aceitar o término do namoro, que compõe a segunda trama.

No plano do inconsciente, a liga de mulheres guerreiras é central ao terceiro enredo: a busca da protagonista por se lembrar do que viu aos quatro anos, no dia em que seu pai assassinou sua mãe. Dessa forma, no campo onírico, a busca e a perseguição das amazonas pelos matadores de mulheres para exercer sua vingança entrelaçam-se com a orientação da líder delas, a Mulher das Pedras Verdes, que serve como guia das lembranças reprimidas da narradora.

As visões alucinógenas proporcionadas pela ayahuasca revelam que essa liga de guerreiras icamiabas é bem-sucedida em suas duas missões. A primeira, matar os torturadores de Txupira, iniciando assim o plano de assassinar assassinos. Com a colaboração de Txupira e sua “vagina bumerangue”, livre como um pássaro, que tem a missão de aterrorizar e perseguir os matadores de mulheres. A segunda missão é escavar o que ficou soterrado por anos no subconsciente da narradora: o testemunho fundamental para que a morte de sua mãe não fosse considerada um acidente. E é só isso que a Liga das Pedras Verdes realmente consegue alterar no plano da realidade: o resgate da memória.

A narração em primeira pessoa, sempre fluida e de tom íntimo, prevalece na maior parte do tempo por meio de um discorrer cronológico e racional de pensamentos e ações. Contudo, por vezes, ela se compõe de um fluxo de consciência, especialmente durante as visões do ritual do cipó e nos pensamentos da protagonista durante sua rotina lúcida e difícil no tribunal. Esse fluxo de consciência se intensifica particularmente quando os pensamentos são motivados pelo medo. Fazendo um contraponto, vários trechos do encontro da narradora com a Liga das Mulheres das Pedras Verdes são contados com uma nitidez racional.

O enredo de Mulheres empilhadas não só é feito da costura de consciente e inconsciente da personagem principal, como também emaranha ficção e realidade. “Digite ‘Morta pelo’ no Google”, diz Carla, a promotora do caso de Txupira, à narradora-protagonista. É um convite para que quem lê o romance faça o mesmo. O oráculo digital oferece complementos “marido”, “namorado”, “ex”, “pai”, da mesma forma que a narradora também encontra. Assim, se ainda não havia ocorrido ao leitor ou à leitora relacionar os capítulos-epígrafes a crimes reais brasileiros noticiados pela mídia, é nesse momento que essa composição fica evidente.

As epígrafes de 1 a 11 citam mulheres cujas mortes e nomes dos assassinos são facilmente encontrados por meio de uma rápida pesquisa. A única exceção é a epígrafe 12, que trata do assassinato de uma personagem que havia acabado de acontecer na narrativa. Em outro momento desse emaranhado, durante um encontro com as icamiabas via ayahuasca, a protagonista mistura a citação de nomes fictícios com os nomes de mulheres reais noticiadas nas epígrafes, criando uma fusão entre ficção e realidade.

Outro ponto de união entre ficção e realidade são os momentos didáticos da obra. O romance faz um breve traçado da história da anexação do território do Acre como estado brasileiro e de toda a tensão social-política que fez parte desse processo e que ainda estaria presente. Além disso, há a presença de longos comentários proferidos pelas advogadas da trama sobre os problemas do sistema judiciário brasileiro.

Essa obra é o décimo primeiro romance de Patrícia Melo, autora premiada nacional e internacionalmente, que se estabeleceu no cenário brasileiro como escritora de literatura policial. Vários dos seus romances delineiam-se na teia da violência social. No entanto, a grande maioria das obras anteriores da autora retratam personagens centrais masculinos, como em Acqua toffana (1994), O matador (1995) e Elogio da mentira (1998). Mulheres empilhadas é o primeiro romance de Melo que denuncia a situação da mulher na sociedade contemporânea e que ainda apresenta uma miríade de mulheres fortes e independentes como personagens centrais para a trama.

Mulheres empilhadas é um romance policial pouco convencional, destacando-se não apenas pelo caráter didático e pelo forte protagonismo feminino, mas também pela abertura à fantasia onírico-mística da liga das mulheres icamiabas. O fundamental desse policial não é descobrir quem matou Txupira; os assassinos são conhecidos desde o início. Em um dos feminicídios que ocorrem ao longo da obra, por exemplo, o responsável é revelado em poucas páginas. Também não é o objetivo da obra indagar o motivo do crime, que é frequentemente torpe, banal, ou reflete a violência e tensão social já conhecidas na região. A pergunta que fica é: esses homens serão punidos?

O fio condutor do romance é a valorização constante da denúncia. Falar sobre o crime, investigar, julgar e rememorar são apresentados como armas e escudos para a proteção das mulheres, garantindo sua sobrevivência física e psíquica. Mulheres empilhadas transcende a categoria de romance policial usado para criar consciência social nos leitores, reforçando a todo momento uma recomendação: apesar da dor, lembre; apesar do risco, denuncie. E ainda: tenha uma rede de apoio feminina. Afinal, é dessa forma que a narradora sobrevive.

É significativo que a narradora nunca seja nomeada nessa história repleta de nomes femininos, mas isso é positivo, pois o romance se embasa nos nomes das mortas. Ao não ser nomeada, a personagem principal reforça seu papel de sobrevivente. Sem um nome, a narradora pode representar qualquer mulher contemporânea, e muitas delas. Renascida de uma morte simbólica, a protagonista termina o romance com uma nova denúncia e vai dançar.

Para saber mais

AZEVEDO, Luciene (2021). A ficção e o documento: uma leitura de Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo, e de Garotas mortas, de Selva Almada. Matraga, Rio de Janeiro. v. 28, n. 52, p. 113-127. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/53201/36888. Acesso em: 25 jul. 2023.

COUTINHO, Ilmara Valois Bacelar Figueiredo (2022). Trajetórias de (des)aprendizagens em ​Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 37, p. 24-40. Disponível em: https://www.revistaveredas.org/index.php/ver/article/view/831. Acesso em: 25 jul. 2023.

MAGRI, Ieda (2021). Nova descida ao inferno: Patrícia Melo e as mulheres que matam. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 62, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37434. Acesso em: 26 jul. 2023.

Iconografia

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Como citar:

SUÁREZ, Melissa.
Mulheres empilhadas.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2630.

Acessado em:

19 maio. 2025.