VIGNA, Elvira. Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Elisangela Aparecida Lopes Fialho
Ilustração: Carolina Vigna
O último livro publicado por Elvira Vigna (Rio de Janeiro, RJ, 1947 – São Paulo, SP, 2017) envolve o leitor em uma trama aparentemente banal, porque incrustada no cotidiano das personagens, mas revela, em camadas profundas e pontuais, temáticas atuais presentes em pinceladas narrativas. O livro é composto por 212 páginas, sem indicação numérica de divisão dos capítulos, nas quais as mudanças de tempo e de ações são indicadas por espaçamentos e marcações gráficas sugestivas. Nele, deparamo-nos com a história de João, um ex-executivo de uma famosa empresa de reprografia que, em meio à vida simples e comum, reproduz, também, um comportamento que beira ao vício: o sexo com garotas de programas.
O cotidiano de João, no qual se encaixam os muitos encontros com as garotas das boates que ele frequenta, é contado por uma narradora que se aproxima do protagonista com o intuito de realizarem juntos um projeto: a reforma de uma editora à beira da falência, na qual ambos trabalham, ela como designer, ele como profissional de tecnologia. O título do livro faz referência a um conceito esclarecedor da trama. “Palimpsesto”, conforme o dicionário, é o termo usado para indicar os manuscritos que, ao serem raspados, revelam as escritas anteriores. De modo similar, nessa trama, a presença das “putas” dá-se em camadas, pois são muitas e se sobrepõem na história de João. Formam, assim, uma massa indistinta na cabeça dele e nos relatos que faz à narradora. Sobre isso, ela reflete: “Por muito tempo achei que ser novinha era uma fixação mais para a pedofilia da parte dele. Independente se era ou não, acho que também queria dizer que as garotas não tinham marcas. Que não havia nelas marcas de uma vida específica. Eram novinhas no sentido de que não tinham marcas, gestos, expressões, coisas que as individualizassem”.
O termo “palimpsesto” − de modo mais implícito − alia-se muito bem à economia narrativa da obra, principalmente porque a narradora-desenhista insere na trama interessantes observações metalinguísticas. Ela se vê no exercício do papel de terapeuta de João, já que é com ela que ele divide suas histórias: “ele precisa contar o que conta porque precisa se escutar falando e, assim, entender melhor o que viveu (…)”. A narradora também se sente um ser “invisível” nos diálogos mantidos com o protagonista: “Nas nossas conversas, ou o que chamo, na falta de melhor palavra, de conversas, sou um par de orelhas. Não existo de fato”. Outras mulheres também passam, sem existirem, pela vida do protagonista.
Da oitiva (ao sugerido monólogo de João), a narradora recria as histórias a seu modo e apresenta ao leitor muitas possibilidades de lê-las e compreendê-las. Uma marca do livro, sem dúvidas, são as digressões a respeito do modo como a narradora compõe as camadas da vida do outro – e da própria vida – e assim ela vai construindo o projeto-livro, por meio da sobreposição de fatos, hipóteses, opiniões e relativizações. Em alguns momentos, ela deixa claro o quanto João fala pouco, relata os fatos pela metade e afirma se fazer presente em cenas compartilhadas por João e seus amigos – todos homens –, exercendo, assim, sua onipresença e onisciência, muitas vezes por ela relativizadas.
Em meio aos relatos cotidianos e à construção do texto-trama, a narradora sem nome retoma referências literárias que ilustram a história do protagonista e também suas reflexões acerca desta. Em uma delas, cita um comentário realizado pelo seu professor sobre Grande sertão: veredas, o livro clássico de João Guimarães Rosa, no qual é dado destaque à palavra de Riobaldo como instrumento de revelação do que está por trás da superfície, da aparência. De certa forma, a narradora também revela o rosto por trás da máscara de João, ao registrar e refletir sobre suas angústias, seus receios e medos. A superficialidade da vida matrimonial é uma dessas revelações, pois o casamento com Lola – jovem, loura e linda – não basta para ele. Outra diz respeito à dificuldade de exercer o papel de pai, para quem o filho é um “quase desconhecido”.
A narradora também está em meio ao “palimpsesto de putas”, não somente porque ouve as histórias do protagonista, mas principalmente porque as registra e assim também as constrói. Outra razão para vislumbrarmos esse olhar de fora (que é também de dentro) diz respeito à aproximação dela com Mariana, uma jovem prostituta e mãe solo com quem divide o apartamento. O exercício da “profissão mais antiga do mundo” é retratado no livro como um negócio, uma disputa entre homens a fim de provar sua masculinidade, um jogo de poder, mas também um desejo de ser outros(as).
Nessa narrativa do cotidiano, a diversidade marca a constituição do núcleo de personagens e promove a presença de temas bastante atuais. Mariana, por exemplo, problematiza a visão estereotipada da garota de programa ao exercer sua função materna com zelo e carinho. Já Lola, a esposa de João, mantém-se como um enigma para o leitor ao longo de quase todo o livro, até mesmo em virtude de sua suposta ingenuidade quanto ao comportamento do marido. Lola não tem voz em boa parte da história, ela é “falada” pelo marido e “suposta” pela narradora. Contudo, Lola e a narradora se aproximam, e assim uma faceta distinta daquela mulher passa a ser revelada, criando, inclusive, uma cumplicidade entre ambas. É Lola quem irá protagonizar dois momentos de grande tensão na narrativa: a reversão quanto ao papel costumeiramente por ela desempenhado e a inércia conscientemente por ela escolhida que redundará no destino trágico de um colega de trabalho do marido.
O livro ainda aborda a marca do racismo quando trata da relação entre homens e mulheres negras. Laurien, por seu turno, aquele(a) que “sempre soube quem é”, faz surgir na história a discussão sobre o binarismo linguístico, retratado como uma limitação da língua, mas também do outro, da sociedade, o que se torna irrelevante para quem se conhece e, por isso, assume seu verdadeiro “eu”, mesmo que para isso seja necessário ir além das fronteiras socialmente impostas. Nas palavras da narradora sobre Laurien: “ser ele mesmo. Isso deve ter calado a boca de João, no quesito transgressão”.
Elvira Vigna escolhe, como elemento central do romance, um tabu social, o qual é abordado, revelado, por meio de olhares distintos e opiniões diversas. Um humor fino – ácido até – perpassa a trama. Um desses momentos se dá quando João realiza com os colegas de trabalho uma viagem para os Estados Unidos e, como lembrança, compra souvenirs falsificados para a família. Aqui, obviamente, por meio dos comentários da narradora, a visão de senso comum que exalta a cultura estrangeira e faz dela “a referência” se torna objeto de riso.
O entrelaçamento das histórias vividas pelas personagens, às quais se somam os comentários e as hipóteses, bem como as afirmações sobre a composição da narrativa, sustenta este romance em camadas, como retoma a narradora ao descrever o último encontro de João com uma prostitua: “Vem por cima de todas as outras. Lola incluída aí. Eu também. Nenhuma de nós de fato com uma existência separada. Só traços sobrepostos, confusos, não claros. Como se estivéssemos, todas nós, em um palimpsesto”. Também nós, os leitores, fazemos parte desta sobreposição que não se finda na página 212 do livro. Muito pelo contrário, nos lança de volta ao início da vida-história, em busca de respostas outras, de outras possibilidades.
Para saber mais
BARBERENA, Ricardo Araújo; FERRÃO, Ana Carolina Schmidt (2020). A força-silêncio do estereótipo: as vozes de Um palimpsesto de putas. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 33, p. 61-73. Disponível em: https://revistaveredas.org/index.php/ver/article/view/685/481. Acesso em: 22 mar. 2023.
FERRÃO, Ana Carolina Schmidt (2018). Desdobramentos da personagem prostituta: a guará subjetiva e o palimpsesto de estereótipos. Dissertação (Mestrado em Crítica literária) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/11376. Acesso em: 9 dez. 2023.
MOTA, Lia Duarte (2019). Um corpo de leitura. Estudos de Literatura Contemporânea, Brasília, n. 57, p. 1-9. Disponível em: http://repositorio.ufjf.br:8080/jspui/bitstream/ufjf/11190/1/Um%20corpo%20de%20leitura.pdf. Acesso em: 22 mar. 2023.
SANTOS, Gardênia Dias; GOMES, Carlos Magno (2021). Decolonizando a violência contra as mulheres subalternas em Elvira Vigna. Estudos de Literatura Contemporânea, Brasília, n. 57, p. 1-10.
Iconografia